Comentários à Carta do Além: a falta de seriedade como causa da perdição dessa alma (com áudio e texto)

Santo do Dia, 20 de agosto de 1983

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

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 [É feita a leitura da Carta do Além]

 

Deve chamar-nos a atenção, na esplêndida narração que aqui foi feita – com tantas garantias da autorização da autoridade eclesiástica competente -, o seguinte fato: tomada a biografia dessa moça como ela está posta aqui, grosso modo se poderia dizer, segundo o conceito de muita gente, que se tratava de uma boa moça.

Eu tive a impressão – precisando mais o meu pensamento – , que cada um de nós, [se] consultasse sobre essa moça as pessoas que conhece na faculdade, no lugar de trabalho, qualquer outro lugar assim, a resposta seria: “Não, era uma boa moça; era uma moça como qualquer uma, que levava a vida dela como podia. Como é normal, ela era jovem, gostava dos prazeres; mas, olhe, os prazeres que ela menciona, em última análise, são prazeres que não têm nada de extraordinário”.

“Ela gostava do quê? De sair com seu marido, de fazer excursões. Gostava de ter móveis finos, gostava de ter um bom automóvel. Ela se encantava com as coisas correntes da vida. Trabalhava. No local de trabalho, era colega dessa outra jovem (a quem lhe escreveu essa Carta do Além); era uma pessoa produtiva portanto. Vê-se que era alegre, desejosa das alegrias da vida. De um contato agradável, útil para as outras. Tinha uma razão de ser dentro da sociedade. Tomada esta como ambiente de produção e de consumo, ela consumia, mas produzia. Era um elemento positivo, era uma boa moça!”

Se eu quisesse fazer uma pesquisa aqui, diria o seguinte: aqueles dos senhores – nos ambientes que freqüentam – podem afirmar que pelo menos metade das pessoas desse ambiente (tomariam a atitude acima descrita)…? Seria de uma tal candura, que nem vale a pena fazer a pergunta. Os senhores mesmo começam a exclamar.

Alguém poderia objetar: “Mas a opinião dessa pessoa a respeito de Deus? Afinal, não cria em Deus! Ou, se cria em Deus, era de modo muito vago, muito apagado, muito pálido. Ela não tinha verdadeira fé: passava diante do Santíssimo Sacramento e fazia uma pequena vênia apenas, porque não acreditava na presença real”.

Ora, ela era católica. E se chegou a perder a Fé, cometeu o mais atroz dos pecados. Porque a Fé é a raiz de todas as outras virtudes. Quem perde a Fé perde todo o edifício das virtudes; a árvore das virtudes, na sua raiz. Como pode conservar qualquer coisa? Uma pessoa que perdeu a Fé, nunca a perde sem culpa própria.

Perder a Fé, necessariamente, é um pecado. Não é por um equívoco intelectual, por um raciocínio mal feito; poderia ser que a pessoa raciocinasse mal a respeito da Fé. Como todo homem é falível e pode enganar-se em qualquer matéria, pode enganar-se também em matéria religiosa. E, portanto, o homem poderia – em tese – perder a Fé, sem cair em pecado.

Mas acontece que Deus, que dá a assistência de sua graça a toda criatura, nunca permitirá que lhe falte as luzes necessárias para distinguir a verdadeira Fé da irreligião, ou das religiões falsas. De maneira que não tem dúvida que esta assistência da graça assegura à pessoa a certeza de escolher a verdadeira religião. E, se a pessoa perde a Fé católica, certamente é por pecado próprio. Esta [condenada] descreve como a perdeu. Os senhores verão a descrição de como ela a perdeu.

Ela perdeu a Fé não por imoralidade, não por corrupção, mas porque lhe era incômodo, em função da vida, aceitar as verdades da religião. No panorama total da existência, a presença de Deus e das verdades da religião a incomodavam: por isso ela deixou de lado a religião. Ou seja, ela não pôs de lado Deus porque dEle duvidasse; mas porque Deus lhe era inoportuno! E ela O expulsou, com a ponta do pé, do panorama de sua vida! É o que está escrito! É o que está escrito (na Carta do Além)!

Se fossemos dizer: “Ela é uma pessoa do mundo, comum, não é uma boa moça”, qual seria a resposta? “Oh! Não raciocine assim! Deus é muito misericordioso. Deus teria pena dela, não a deixaria morrer sem uma última graça, sem uma última ajuda, pois ela não era uma pessoa má. Deus haveria de chamá-la a Si por alguma fórmula. E ela aí, certamente, se abriria para Deus. Portanto, nós devemos esperar que Deus a salve. Deus não trata as almas assim. Ele é um Pai cheio de misericórdia. Então, provavelmente, essa moça se salvará. Não seja pessimista…”

E a pessoa que opinasse tão favoravelmente em relação a essa moça que foi para o inferno, tal pessoa se separaria de nós, cheia de ódio de nós! É um ponto que não falha. Quem é indulgente para com o pecador, a ponto de ter uma solidariedade conivente com o pecado, esta, odeia aquele que é bom. E, em todos esses advogados do pecado, os senhores encontrarão gente que nos odeia.

Essa moça, realmente, não foi objeto de uma última graça? Foi! Mas em que condições foi? Da seguinte maneira:

Uma manhã de domingo em que se sentia muito bem, o dia estava muito bonito, particularmente atraente… Seu ídolo era o prazer de viver, o prazer da excursão de automóvel com o marido – não, portanto, prazer diretamente do pecado, mas o prazer da vida enquanto vida – dar aos sentidos a oportunidade de se deliciarem e, com isso, trazer alguma alegria para a alma. O desejo desse prazer inundava sua alma. E ela estava ávida disso, mas não sabia que tinha chegado ao fim.

Está narrado com muita precisão nessa descrição, em cuja autenticidade eu acredito. Ou seja, acredito que foi uma alma que se encontra no inferno que – obrigada por Deus – escreveu essa carta, para dar base a meditações como essas.

Ela teve um momento ápice da vontade de viver de um modo agradável, fácil e despreocupado e – nesse momento ápice – entrou a graça e lhe disse: “Tu bem poderias ir à missa!” Os senhores devem se lembrar que houve isso: “Tu bem poderias ir à missa!”

E aí ela cometeu um pecado que se acrescentava aos outros, mas estava na lógica de todos os outros. Ela disse: “Não, e eu vou acabar com essas idéias na minha cabeça para não me perturbarem o prazer de viver”. Mas notem: “para não me perturbarem o prazer”, na aparência inocente, em si mesmo não pecaminoso, de uma jovem esposa que vai dar um passeio com seu marido. Podia-se conceber uma jovem esposa que vai à missa com seu marido; comungam ambos, tomam automóvel e vão passear. Não há o menor pecado nisso.

Qual foi o mal da atitude dela? É que não quis dar para Deus a pequena faixa de tempo que era assistir uma missa. Ela não quis passar pelo dissabor de recolher os seus sentidos – esparsos pelo prazer da manhã de sol – na penumbra de uma Catedral! Ela não quis suspender por um instante a delectação, o saboreamento daqueles prazeres que vinham, para se concentrar em alguma coisa mais alta.

Em uma palavra: ela não quis ser séria! Porque a seriedade traz isso consigo. A seriedade impõe que nos privemos do saborear das coisas, ao menos por um instante, e que cogitemos em coisas que não nos dêem alegria sensível; que pensemos em coisas que nos inspirem um olhar recolhido, enlevado, um olhar abnegado e adorante! Um olhar cheio de dedicação. Um olhar propício a considerar a Cruz! Essa é a seriedade!

Ora, essa moça, como tantas pessoas de seu tempo – que ainda é do meu; em 1937, eu tinha 29 anos, quando esse fato se deu e ela morreu – essa moça atirada assim ao inferno, o que não quis foi ter um momento só de seriedade, para olhar de frente as coisas.

E o mais curioso, o mais terrível, é que as pessoas que acham que ela era boa, simpatizam com ela por esta falta de seriedade. Porque ela vivia perpetuamente no prazer. Alegre, conivente com todo mundo, aprovando todo mundo, e procurando se divertir em sincronia com os outros.

Como ela era uma peça na máquina da alegria geral, por isso, gostavam dela. Se fosse séria, se fosse recolhida, se, ao encontrá-la, alguém visse o olhar dela cheio de preocupação e lhe perguntasse: “No que pensas?” e ela dissesse: “Rezo!” e dissessem: “Rezas por ti?” ela dissesse: “Não. Rezo para que as almas que no momento estão morrendo não caiam no inferno”, isto produziria um gelo.

“O quê?! Você é moça assim, e está pensando nas almas que estão morrendo? Pense em quem vive, não pense em quem morre. Diante de você a esteira de vida se desdobra longa; e você – sua tonta! – pensa em morte? Pegue o pandeiro na mão e saia saltando: Viva a vida! Porque esse é seu ídolo!”

“Tu me perturbas com teu pensamento! Ainda mais se teu pensamento é para os que morrem, e podem cair no inferno! Mas o inferno? Simplesmente essa reflexão me cresta todas as apetências de diversão, de leviandade, de frivolidade que fazem a alegria de minha vida. Eu não posso suportar isso, detesto isso!”

“Ah! Eu não quero mais me encontrar com você. Porque ainda que você, depois, seja agradável, seja amável, seja gentil, eu vou passar essa tarde inteira olhando para você e pensando: no fundo do olhar dela eu vejo que ela está preocupada com coisas grandes, com coisas sérias. E eu tenho horror às coisas sérias! Eu tenho horror às coisas grandes. Porque eu quero as coisas frívolas, as coisas leves; digamos mais: as coisas levianas. Eu quero o efêmero, eu quero o que passa, que faz rir; eu quero o que faz saltar, cantar e pular! Eu não quero o que faz pensar. Eu não quero o que faz lutar. Eu não quero o que leva a Cruz de Cristo! Eu quero o pandeiro para me divertir!”

Ora, eu pergunto aos senhores, quantas pessoas há assim hoje?…

E o viver fora da seriedade é um vício como a droga. Uma pessoa que vive fora da seriedade é viciada como um drogado. E para voltar ao campo augusto da seriedade ela tem mais dificuldade do que um fumante em parar de fumar –  é terrível um fumante parar de fumar –, do que um preguiçoso deixar de sê-lo e trabalhar, do que um drogado em deixar sua droga!

É terrível esse hábito, essa forma de preguiça pela qual a alma vive no leve, vive no zéfiro; vive nos ventos alísios de que falávamos à tarde. E por isso é amável, agradável, doce; todo mundo gosta dela. Essa forma de leviandade e de preguiça é um dos piores, senão o pior vício da alma.

Ora, o que os senhores encontram hoje em dia no homem é isso! A grande maioria dos homens sofre muito, porque quer de todas as maneiras agarrar-se a essa ilusão. E, dia e noite, o que o homem tem é isso. O que é a televisão? E porque a televisão de tal maneira se propaga?

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, é natural. A televisão leva para dentro de casa aspectos todos da vida, mil notícias a respeito da vida e a pessoa, naturalmente curiosa em saber o que se passa, ligando apenas aquele botão, tem informações do mundo inteiro. Mas não são informações escritas, Dr. Plinio. A gente vê as cenas, vê os personagens. Como é que pode a televisão não impressionar?”

Eu teria vontade de dizer: Se a televisão mostrasse a realidade total, se descrevesse – ao par de todos os aspectos por onde a vida é agradável – os aspectos da morte, e houvesse uma hora dos agonizantes – na televisão – em que televisionasse gente morrendo, ia alguém ligar essa televisão? A “TV MORTE”, como seria recebida?…

A morte faz ou não faz parte da realidade total? A “TV DOR” filma a história dos que sofreram hoje, mas dos que sofreram seriamente, dos que sofreram tragicamente, dos que não sofreram perdas materiais mas perdas espirituais! Filme a história daquela mãe que viu hoje, pela 1ª vez, a filha prevaricar e que passou o dia chorando aos pés de um crucifixo ou de uma imagem de Nossa Senhora. Filme a história daquela esposa fiel que o marido abandonou e que ficou carregada de filhos em casa, que não sabe como resolver o caso deles. Filme a história daquele outro, que tinha um bom amigo e o abandonou cheio de desprezo porque era um amigo monótono, porque era um amigo que não ia para a perdição e se jogou nas rodas da perdição! Filme a história de todos aqueles que são bons e  são perseguidos porque são bons, e que resistem à perseguição.

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Fra Angelico – O Juízo Final – detalhe (c. 1435 – 1440)
Museum Gemäldegalerie der Staatlichen Museen, Berlin

Isso não faz parte da realidade total? Entretanto, se a TV desse isso, quem iria ver a TV?

A “TV INFERNO”! Eu pergunto: Quem iria vê-la? As almas se crestando! Eu dei, in illo tempore, várias descrições, do Cornélio a Lápide [1] e outros autores, do terror do inferno. Eu queria ver, se houvesse um pouco de TV disso, quem é que iria ver essa hora.

Não é verdade que a TV dá a realidade. Ela dá uma realidade amputada, uma realidade mutilada; ao gosto das almas como essa Ani [que escreveu a Carta do Além] se perdeu; ela é calculada para essas almas, e forma almas assim. E é, por isso mesmo, uma máquina de perdição, porque ela cria a ilusão de que é só isso a realidade, quando a realidade é total.

A pessoa aceita essa ilusão por culpa própria e atira-se nessa concepção da vida. E depois de ter expulso a Deus e tudo quanto é sublime, sério e nobre – a Santa Igreja, Nossa Senhora – de seu panorama, a pessoa constrói o panorama TV: do que é engraçadinho, do que é agradável, do que é divertido, do que é novo. Às vezes alguma coisa sensacional, trágica, mas para descansar apenas do eterno sorriso. E muito de passagem, muito de passagem. Logo depois volta para a leviandade e forma esse estado de espírito pelo qual a pessoa calcula que só essa vida existe. E, o que não for viver essa vida pensando nessa vida, é simplesmente transformar essa vida num inferno.

Os senhores tomem a Revolução gnóstica e igualitária [N.d.C.: sobre o sentido da palavra “Revolução” ver a “Advertência” acima], e eu lhes pergunto: porque ela vai de tal maneira para frente? E os senhores encontrarão a resposta aqui. É que muitos dos que são bons – e que poderiam ser melhores – se cansam do peso da seriedade, se cansam do peso da Sublimidade, se cansam do peso das preocupações. E, porque se cansam desse peso, o jogam no chão! Miseráveis eles, que não compreendem que atiram ao chão a Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a pura verdade.

Nosso Senhor nos pôs nessa terra para sofrermos e merecermos. E, assim, darmos a glória a Ele e irmos ao Céu! Não foi dado ao homem, nem sequer aos Anjos criados no Paraíso Celeste, conquistar a glória eterna sem passar por uma provação. Adão – Eva, criada logo depois, tirada de uma costela dele no Paraíso Terrestre – foi tentado e caiu! Quer dizer, é preciso sofrer. É preciso ter em vista os fins eternos do homem para compreender que é preciso resistir à tentação. E nós, por causa do pecado original de Adão, temos “n” tentações ao longo da vida, além dos pecados atuais, dos pecados de nossos maiores, etc., etc., que são razões de tentações para nós. Nós temos “n” tentações e temos que ser sérios!

Porque esse é o panorama da vida. E, fora disso, a vida não é nada. Nós carregamos com isso nossa Cruz, porque o sofrimento de cada homem é a Cruz dele. E assim como Nosso Senhor Jesus Cristo carregou sua Cruz, assim também temos que carregar a nossa Cruz, assim como se acredita piedosamente que Ele, ao receber a Cruz, a osculou com emoção e com alegria. Essa é a minha Cruz!

Quando somos provados devemos absolutamente oscular o nosso sofrimento e dizer: “Tu és minha Cruz!” E a seriedade – que nos convoca para pensarmos, para ponderarmos, para estarmos com o espírito preparado para a luta, para os imprevistos maus, para a resistência às nossas próprias misérias, etc. – essa seriedade, nós devemos oscular e dizer: “És para mim a imagem do Santo Lenho que me salvou!” Em vez de nós abominarmos aquilo que nos traz sofrimento, devemos osculá-lo e amá-lo.

Não devemos fugir do sofrimento como diante de um espantalho ou de um fantasma. Devemos entrar na série das ogivas do sofrimento ao longo da vida, que nos conduzem ao vitral magnífico da morte que se abre de par em par e nós vemos o Céu! É assim que nós devemos fazer.

Eu sei por experiência própria – por improvável que pareça, já tive a vossa idade… – o que é o peso da seriedade quando se tem a vossa idade [N.d.C.: o Prof. Plinio estava se dirigindo ao um auditório composto majoritariamente por jovens]. Eu vivi numa época muito mais festiva, muito mais saltitante, muito mais brilhante do que a vossa. E em que a alegria era às carradas, por toda parte. Todo mundo vivia bailando e se divertindo entre as duas guerras mundiais: a primeira e a segunda guerra mundial; essa foi a minha mocidade.

Assim como a pessoa que está tomando banho de mar percebe que a correnteza das águas a pode levar e ela deve resistir, assim também, quem vivia nesse tempo sentia que a correnteza levava para o prazer e que tudo, de mil modos, levava para o divertimento. E quem resistia fazia um papel francamente difícil de sustentar.

Por que? Porque por toda parte onde se via um moço, os olhares já iam: “Onde está sua alegria?” O moço de cara séria, preocupado, às vezes sombrio, às vezes enfrentando uma batalha, causava vazio em torno de si. Enquanto o moço piadista, que diz uma coisa engraçada, que tem uma coisa divertida para contar, que dá risadas por qualquer anedota que lhe contam, que transige com a anedota porca e não se arrepia sequer da anedota imoral, desde que se possa rir, rir, rir e ainda mais uma vez rir e saltar e cantar, esse tipo de moço era o moço que se queria.

E como era duro, dentro da festa geral, agüentar o peso da própria seriedade! Eu senti isso na própria pele. E quantas vezes eu tive que agüentar isso pensando: “É assim e tem que ser assim! Mas eu serei fiel à minha própria seriedade!” Alguma coisa me sussurrava no ouvido: “Não seja bobo! Não seja bobo! Olhe em torno de você quanta gente vive praticando os Mandamentos, vive alegre e despreocupada, e  não peca. Eles estão todo dia comungando como você! Agora olhe como eles vão comungar: de modo bonito, doce, as mãos postas… Sentindo em si as delícias da piedade. Terminam a comunhão, olhe a cara deles quando saem da Igreja: tão despreocupados, olhando para tudo, contentes. Olham para esse mundo, tão natural. Depois, embarcam nos prazeres dos outros também. Você faça isso! Seja despreocupado como eles!…”

Depois eu pensava: como posso me despreocupar, quando vejo o mundo afundar?!  Quando vejo a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana no estado em que se encontra… Quando vejo em torno de mim, em toda parte, os sinais precursores de uma catástrofe universal que me rodeiam a todo o momento. Devo fechar os olhos a isso? Negar a verdade conhecida como tal? Deixar de lutar para que isso não seja assim? Deixar de desejar, de convocar um punhado de bravos para lutarem comigo contra esse estado de coisas e para salvar, o que puder, da catástrofe universal?

E minha resposta a essa voz aliciante era: “Olhe para eles. Estão atraiçoando a causa de Nosso Senhor! A todo o momento se peca diante deles e, mesmo quando não pecam, eles não protestam. A todo o momento se faz o mal na presença deles e não ousam externar a menor censura. Se externarem, lhes cai o mundo em cima, porque não se permite que uma pessoa seja assim. Olhe para eles, pense um pouco neles. Eles não pecam, é verdade. Durante quanto tempo não pecarão?…”

Quantos e quantos desses, eu fui vendo afastarem-se dos sacramentos ao curso da vida, ao longo das várias crises. Ora, casando-se com uma moça com quem não devia. Ora, se engajando em compromissos para fazer carreira. Ora isso, ora aquilo, foram se dispersando tantos e tantos ao longo da vida. No momento em que eu os via, eles freqüentavam os sacramentos; eu creio que praticavam os mandamentos. Praticavam na superfície, mas a sua alma não era vigilante. E onde o homem não é vigilante ganha a batalha o demônioE para ser vigilante é preciso ser sério.

Esse flagelo, esse calvário da seriedade, contra ele peca o mundo contemporâneo e procura à toda hora arrastar os senhores para isso também. Tenho a alegria de ver aqui tantos eremitas [2], são os que estão mais próximos de mim. Lembrem-se bem todos: o sentido do êremo é a prática interior da seriedade!

Ser sério é o ponto de partida do amor de Deus! É o primeiro elemento do amor de Deus: o homem que não ama o que é sério não pode amar a Deus. Pois se Deus é infinitamente sério, como é que se pode amar a Deus, quando não se ama o que é sério? Deus é a própria seriedade!

E, por causa disso, aquela moça O afastou: “Não quero!” E tomou a resolução. Está muito finamente dito ali, ela tomou a resolução: “Eu, definitivamente, expulsarei de minha alma esses pensamentos!”

Quer dizer, ela cometeu um pecado que foi o de fechar sua alma para Deus naquela hora. E, à maneira dos judeus que disseram: “Caia sobre nós o sangue dEle, sobre nós e nossos filhos”, ela disse: “Eu assumo as responsabilidades do ato que estou tomando”. Ela trancou para Deus as portas de sua alma e entrou no automóvel, sorrindo.

A manhã estava bonita, a estrada asfaltada, o marido de bom humor, o dia agradável: o domingo diante deles! Foram andando. Anoiteceu, acenderam-se as luzes!

E quando se acenderam as luzes do caminho, o ponteiro da morte se acendeu para ela! E ela não sabia. Coisa mais banal: o marido acendeu as luzes do automóvel. Quem sabe se foi ela quem pediu: “acenda as luzes, já está na hora”. Ele acendeu. Veio um automóvel em toda velocidade, em sentido contrário: pan! Trombada! Acabou…

Acabou. E quem apareceu diante dela? A Seriedade! A vista de Deus firmando-se nela com uma intensidade infinitamente superior à intensidade do farolete que aturdira seu marido. E ela se sentiu julgada. Toda sua vida passou diante de si, em instantes! Ela sentiu uma dor tremenda, uma dor tremenda, de lado. Morreu!

Morreu. E está ali Deus! E, logo que ela se sentiu na presença dEle, estava tão empedernida no pecado que não se comoveu nem podia mais se comover, porque ninguém que morreu muda mais de atitude diante de Deus; a árvore onde cai, ali fica; acabou-se.

E ela, com uma dor atroz, mas que era um refrigério em comparação com as dores na qual se atirava, ela se precipitava no inferno. Ela foge! E os dias dela estão contados: tormento eterno! Tormento eterno! Tormento eterno!

Com isso nós temos nosso Santo do Dia concluído.

 

NOTAS

[1] Cornélio a Lápide, Cornelius Cornelii a Lapide ou Cornelis Cornelissen van den Steen (1567 – 1637) foi um jesuíta e exegeta flamengo.

É conhecido por seus comentários à quase toda a Bíblia, obra que influiu na pregação dos anos posteriores. Cursou seus estudos de humanidades de filosofia nas Universidades de Maastrich e Colônia; começou a teologia em Douai e logo estudou quatro anos na Universidade de Lovaina.

Em Louvania foi admitido definitivamente na Companhia de Jesus em 15 de julho de 1592 e ordenado sacerdote em 24 de dezembro de 1595. Nesta universidade começou sua docência. Por seis meses ensinou filosofia e logo hebreu e Sagradas Escrituras durante vinte anos.

[2] Em algumas sedes da TFP introduziu-se – por desejo dos sócios ou cooperadores que ali residiam ou trabalhavam – um regime de silêncio fora das horas de reunião e de lazer, com vistas à obtenção de um clima de recolhimento propício ao trabalho ou ao estudo.

Quem primeiro sugeriu adotar esse sistema foi o saudoso membro do Conselho Nacional da TFP brasileira, Fábio Vidigal Xavier da Silveira, falecido em 1971. Alguns anos antes de falecer, o Dr. Fábio visitara o célebre Eremo del Carcere, lugar de recolhimento e oração perfumado pela presença sobrenatural de São Francisco de Assis, que o construíra. A recordação do Êremo de São Francisco entusiasmava o Dr. Fábio. E sua imaginosa vivacidade brasileira transpôs logo a palavra italiana para a sede do setor da TFP que ele dirigia.

O nome colocado pelo Dr. Fábio foi recebido com simpatia geral na TFP. E de modo natural, logo surgiram outros Êremos. E foi assim se institucionalizando esse regime de recolhimento, estudo, oração e trabalho em comum.

Na realidade, os Êremos não são mais do que sedes de estudo ou trabalho em que se requer maior concentração de espírito, ou simplesmente se tem em vista um melhor aproveitamento da ação. Pois os Êremos revelaram-se altamente eficazes como fator de aprofundamento intelectual e rendimento nos trabalhos. Por extensão, são chamados eremitas os que residem nos Êremos.

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