“Diário Las Américas”, Miami, 15-1-1976
Plinio Corrêa de Oliveira
O que é precisamente um anticomunista? A pergunta parece tão simples de responder, que dá a impressão de roçar pela tolice. Entretanto, ela recebe respostas diversas. E entre as duas mais correntes, se contém um universo de matizes de capital importância. Se não compreendermos esses matizes, nada compreenderemos da política internacional. Pior ainda, deixar-nos-emos enrolar pelo comunismo. O que vem acontecendo a incontáveis contemporâneos nossos.
É, pois, indispensável que saibamos como responder a questão.
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1939. A Alemanha nazista e a Rússia assinam pacto de não agressão / 1941. Segundo ato: inopinadamente a Alemanha rompe o pacto e invade a Rússia / 1945. Em Yalta, Stalin joga… e vence. A expansão territorial do comunismo em poucos meses vai além de toda imaginação
O Tratado de Yalta, imediatamente subseqüente à Segunda Guerra Mundial, foi tido a justo título como uma aberração por todos os anticomunistas. Ele consagrou “de facto” a expansão imperialista da Rússia – expansão esta que algumas décadas depois o infeliz Tratado de Helsinque haveria de consagrar “de jure”.
Até Yalta, um anticomunista se definia como um opositor da filosofia marxista, bem como do programa político, social e econômico decorrente desta. E, dado que Moscou era a Meca vermelha da qual se estendiam para o mundo inteiro os tentáculos da propaganda comunista, os opositores do comunismo eram também adversários de Moscou.
Yalta levou os anticomunistas a somarem a essas razões de serem “anti” mais algumas outras. Por certo o domínio russo sobre a Europa Oriental, acarretando a implantação do regime comunista nas nações satélites, só podia ser visto com execração pelos anticomunistas. Mas o delito perpetrado por Moscou contra a Europa Oriental apresentava também outros aspectos. Nações soberanas passaram a ser escravizadas pelo imperialismo russo. Precisamente pela mesma razão que levou os europeus dos séculos XVIII e XIX a se indignar contra a partilha da Polônia entre as coroas austríaca, russa e prussiana, e o esmagamento das posteriores tentativas autonomistas efetuadas pelos poloneses contra a Rússia, os anticomunistas de post-Yalta se puseram a vituperar a conquista da Europa Oriental pelos russos. Este novo motivo de vitupério nada tinha a ver com o comunismo propriamente dito. Inspiravam-no o direito das gentes, como já inspirava análoga atitude contra a Rússia Tzarista.
Se pelo menos os povos subjugados tivessem sido consultados em toda a honestidade e liberdade, segundo as formas plebiscitarias geralmente admitidas, sobre se aceitavam a dominação russa… e se tivessem respondido favoravelmente! Porém haviam sido subjugados à força e era pela força que continuavam subjugados.
Não há dúvida, concluíam os anticomunistas mais fogosos do que nunca, com o comunismo não há composição possível. Em face dele, só existem duas atitudes: lutar ou entregar-se. De onde a luta retomava mais afincada do que nunca.
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A essa altura, o conceito de “anticomunista” continuava claro. Quem haveria de dizer que a propaganda comunista teria a diabólica habilidade de tirar daí uma ocasião para baralhar a mente de incontáveis anticomunistas, dando o primeiro passo numa longa caminhada de ambigüidades, a qual nos conduziria à miserável situação em que nos encontramos?
Entretanto, foi o que se deu.
Até este momento, caso se perguntasse a um anticomunista se ele era anti-tzarista, muito possivelmente ele responderia que não. Se respondesse que sim, acentuaria que não era enquanto anticomunista que ele se opunha ao tzarismo, mas enquanto democrata. Havia anticomunistas democratas e não-democratas. Essa profunda diferença de opinião não impedia a uns nem a outros de serem anticomunistas.
Bem entendido, para os democratas anticomunistas, o caráter despótico do regime soviético constituirá um dos argumentos preferidos de sua dialética anti-vermelha. É perfeitamente compreensível que esse argumento tenha alcançado grande êxito tático nas nações do Ocidente, profundamente embebidas do espírito democrático.
Este êxito propagandístico levou numerosas personalidades do Ocidente a insistirem cada vez mais na alegação democrática contra o comunismo, em entrevistas e declarações para a imprensa, rádio e televisão. Importantes organizações anticomunistas procederam de igual maneira. E, aos poucos, a imensa atoarda anticomunista que se generalizava pelo mundo, ia mudando seus “leitmotivs”. A defesa da tradição, da família e da propriedade esmagadas pelos comunistas, ficava cada vez mais num segundo plano. E a razão principal – gradualmente a razão única – da grande ofensiva anticomunista passava a consistir em que o regime comunista é antidemocrático.
Esta cisão entre as duas dialéticas anticomunistas – isto é, a antiga, baseada na tradição, na família e na propriedade, e a nova, baseada apenas nos princípios democráticos – era contraditória e perfeitamente artificial. No sentido de que qualquer democrata contrário à tradição, e favorável à abolição da família e da propriedade, afundaria no mais completo totalitarismo. Ou seja, no contrário do que ele entende por democracia.
Entretanto, esta nova concepção do anticomunismo teve uma como que glorificação mundial quando o falecido Presidente Kennedy, discursando em Berlim, proclamou que só era contrário ao comunismo porque na Rússia e nos países satélites o regime não era consagrado por eleições livres. O chefe da maior potência temporal do Ocidente consagrava, em conseqüência, um novo sentido, um sentido vácuo, do anticomunismo. Fiel à doutrina pagã da soberania absoluta do povo, ensinada por Rousseau, Kennedy afirmava que as maiorias podem praticar contra as minorias todos os abusos, negar-lhes todos os direitos naturais, inclusive impor-lhes o mais despótico e injusto dos regimes.
Não disponho de provas documentárias absolutamente irretorquíveis para afirmar que esta gradual modificação na mentalidade política de tantos anticomunistas tenha resultado – de um ou de outro modo – da política comunista. Entretanto o comunismo lucrou tão prodigiosamente com isso que, quanto a mim, não tenho dúvida de que ele está na raiz dessa transformação. Pois nessa matéria vale o princípio de que tudo quanto dá vantagem para o comunismo foi presumível ou certamente levado a cabo por ele.
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Chegamos, no decurso das décadas, ao último lance do drama. Depois de ter intoxicado largamente os meios anticomunistas com o princípio de que não são senão democratas à Rousseau, os comunistas estão jogando sua grande cartada decisiva para a conquista da Europa Ocidental.
Os dois principais partidos comunistas de aquém-cortina de ferro são o francês e o italiano.
Ora, um e outro estão desenvolvendo uma política no sentido de persuadir a opinião não comunista de que são genuinamente democráticos. E com isto esperam obter o beneplácito dos partidos democráticos centristas, para a formação de ministérios de coalizão em que algumas pastas sejam dadas a comunistas.
Como bem sabemos, a partir do momento em que algumas pastas são concedidas a comunistas, estes passam a ser os homens fortes do governo, e a conquista total do poder pelos comunistas se torna irreversível.
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Leiam-se os jornais de nossos dias. É passada na França uma película descrevendo os campos de concentração soviéticos. Os PCs de ambas as nações protestam, alegando que são contrários a esse método de repressão ditatorial. Um e outro PC repudiam ostensivamente a conquista do poder pela força e deixam bem claro que só esperam de eleições livres o almejado triunfo. Ambos vituperam o domínio exercido pela Rússia sobre os países satélites e proclamam seu propósito de manter intacta a soberania nacional caso galguem o poder.
Isto posto, que razão tem um anticomunista “rousseauniano” para se opor à ascensão de tão “rousseaunianos” comunistas ao poder? Nenhuma.
Assim, a gradual evolução do qualificativo “anticomunista” do seu primitivo sentido substancioso e definido, para seu sentido atualmente tantas vezes aceito, está em vias de proporcionar aos comunistas vantagens táticas, talvez decisivas para a conquista da Europa Ocidental.
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Inúmeros anticomunistas europeus autênticos se deixaram assim iludir por uma ágil manobra propagandística que os transformou, de anticomunistas militantes em não-comunistas tolos e inofensivos. Montado neles, os PCs da França e da Itália esperam agora conquistar o poder.
“Bobo é cavalo do demônio”, diz um velho provérbio em curso no Brasil.
E com quanta razão!
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) filósofo, teórico político, escritor suíço, mestre da doutrina pagã da soberania absoluta do povo
Sumário
I – O que é um anticomunista?
O porquê da pergunta:
1) não se deixar iludir pelo comunismo
2) Compreensão da política internacional contemporânea
II – Tipos de anticomunista
1) Antes dos Tratados de Teerã e Yalta:
(anticomunista autêntico)
– Opositor da filosofia marxista
– Opositor do programa político, social, econômico marxista
– Adversário de Moscou.
2) Após os Tratados de Teerã e Yalta:
(não comunista tolo e inofensivo)
– o comunismo é totalitário, impede eleições livres (leitmotiv)
– Passa a segundo plano a defesa dos valores da tradição, da família e da propriedade
III – Vantagem tática para o Kremlin se o tipo 2 prevalecer largamente:
1) Possibilita a ascensão ao poder dos PCs ditos democráticos, especialmente na França e na Itália.
2) Mingua a militância dos anticomunistas, por falta quase total de fundamentação doutrinária.
Nota: Os negritos são deste site.