Aspectos do “Caso” Lefèbvre, Folha de S. Paulo, 17 de agosto de 1977

Folha de S. Paulo, 17 de agosto de 1977

Por Plinio Corrêa de Oliveira

Delimito com precisão meu tema. Minha intenção não é de tratar do “caso” Lefèbvre, mas apenas de um dos aspectos desse “caso”. E esse aspecto diz menos respeito ao “caso” em si, ou à pessoa de Mons. Lefèbvre, do que à psicologia de certos adversários que acabam de fazer o possível para obstar a ação do arcebispo na América Latina.

Restrinjo-me a esta área muito circunscrita do vasto “tema Lefèbvre”, não porque o complexo e o delicado inerente às outras áreas me paralisem. E menos ainda porque eu tenha alguma restrição a fazer à pessoa do prelado francês. Mas por uma razão de outra ordem.

Essencialmente, o caso Lefèbvre é teológico. Até há pouco, todas as dificuldades entre o arcebispo – que é ao mesmo tempo fundador e mentor do Seminário de Ecône, e de toda uma vasta obra espiritual que se vai dilatando pela Europa e pela América – e Paulo VI, eram de índole exclusivamente teológica. E essencial e imutavelmente teológico continua a ser o caso, ao longo das peripécias — já agora nem todas teológicas — em que ele se vem desdobrando.

Ora, minhas constantes tomadas de posição em matérias cívico-religiosas de toda ordem, nacionais e internacionais — tantas delas em artigos escritos ao longo dos últimos anos na “Folha” — tornam inoportuna minha intervenção em temas teológicos, aliás mais próprios a um eclesiástico do que a um leigo.

Daí meu silêncio, neste artigo, precisamente sobre os assuntos mais nobres e mais essenciais que o “caso” Lefèbvre põe em foco.

Isto posto, e baixada a poeira publicitária despertada pela passagem de Mons. Lefèbvre através da América do Sul, entro na faixa cívico-religiosa da questão Lefèbvre.

Começo por afirmar que tributo à pessoa de Mons. Marcel Lefèbvre uma velha simpatia e um sincero respeito.

Conheci-o no decurso do Concílio Vaticano II. Formava ele então, ao lado de d. Antônio de Castro Mayer, bispo de Campos, de d. Geraldo Sigaud, arcebispo de Diamantina, de Mons. Luigi de Carli, bispo de Segni, e de tantos outros, o valoroso coetus antiprogressista e anticomunista, cuja atuação constitui a grande página luminosa da história daquele Concílio. Em seguida, isto é, em 1967 e em 1974, tive-o como hóspede no Brasil. E nesses contatos aproveitei para me informar com pormenores sobre a obra de Ecône, que ia sendo modelada, admirável por suas mãos.

Desses contatos guardo, com carinho, várias recordações fotográficas. Recordações em que ele aparece despreocupado e sorridente, longe ainda da borrasca que só mais tarde haveria de vir.

A personalidade de Mons. Marcel Lefèbvre, profundamente eclesiástica em tudo e por tudo, piedosa, serena, distinta, e discretamente realçada pelo “charme” de espírito e de trato que a educação e a cultura francesas conferem. Não creio que precise dizer mais, nestas colunas, para explicitar a impressão que o valente prelado me causa.

Acrescentarei a este elogio, em que cada palavra foi pesada e medida, mais outro? Mons. Lefèbvre me parece um amigo da política das cartas sobre a mesa. Sou precisamente assim. E é porque me sinto afim com ele nesse ponto, que tenho especial gosto em deixar clara, aqui, minha posição a seu respeito.

Dito tudo isto, fica-me a sensação de que esta vista de conjunto sobre Mons. Lefèbvre não seria completa se eu não lhe acrescentasse um último dado. De alguns meses a esta parte, Mons. Lefèbvre, sem deixar as culminância teológicas em que se situa, também tem feito pronunciamentos doutrinários sobre os ensinamentos sociais da Igreja. Não posso garantir que todos me tenham chegado ao conhecimento. Os que li me parecem doutrinariamente irrepreensíveis, e muito oportunos. Agradam-me sobretudo as tomadas de posição do prelado contra o comunismo: lúcidas, corajosas, frontais. Não preciso acrescentar que, como ele, estou em franco desacordo com a Ostpolitik vaticana, acerca da qual tanta coisa tenho publicado em livro e na imprensa diária.

Como seria diversa a situação do mundo se todos os bispos mostrassem, contra o comunismo, a nobre galhardia de Mons. Lefèbvre…

Feitas estas considerações, vamos por fim ao tema que mais especialmente quero focalizar.

No México vigora a separação entre a Igreja e o Estado. Separação que, do lado do Estado, é rancorosa e meticulosa, a ponto de a lei civil proibir aos eclesiásticos o uso de batina. Tal separação deveria implicar, em rigor de lógica, num escrupuloso alheamento do poder temporal em relação aos assuntos religiosos. E, com efeito, de modo geral isto se dá. Assim, o poder público presencia indiferente o pulular de toda sorte de heresias. Em conformidade com esta atitude estaria que o governo mexicano se abstivesse de qualquer interferência nos assuntos internos da Igreja. E que esta, por sua vez, tivesse o brio de não pedir para tais assuntos o concurso de quem tão desdenhosamente a repudia.

Contudo, anunciada a visita de Mons. Marcel Lefèbvre ao México, o governo da grande — e tão simpática — nação da América Central mandou a todos os seus consulados que negassem visto ao passaporte dele. Por que? O que haveria de comum entre o governo gelidamente laico e notoriamente esquerdista do México, e o episcopado daquela nação, obviamente regozijado com o veto governamental a Mons. Lefèbvre?

Na Argentina, algo de análogo se passou. O Estado, embora ali unido à Igreja, não vetou a entrada de Mons. Lefèbvre. Porém deixou ver claramente o desagrado que essa visita lhe causava. Mais uma vez, por que essa barretada do governo ao episcopado argentino, visivelmente satisfeito?

Fatos dessa natureza dificilmente se reduzem a uma só causa. Mas entre as várias que para este tenham contribuído, sem dúvida figura a seguinte: aqueles dois governos agiram de forma tão insólita, desejosos de agradar os respectivos episcopados e bem cientes de que de fato assim os agradavam.

E aqui vem a pergunta. Esses episcopados que, influenciados pelo Vaticano II, se mostram abertos a um relacionamento ecumênico e cordial com todas as heresias, e em cujas fileiras até há quem pratique o ecumenismo com os vermelhos, por que atira às urtigas esse ecumenismo quando se trata de Mons. Lefèbvre? Por que chega a mover contra este último o poder do Estado, como se estivéssemos naquela Idade Média da qual, certamente aqueles mesmos episcopados não têm a menor saudade?

Apertando ainda mais o cerco: se o ecumenismo desses episcopados tem mão e contramão, de sorte que abre caminho para uns e não para outros, o que é ele então? Ecumenismo autêntico, ou velada parcialidade em favor de uns, isto é, os hereges, os cismáticos, os comunistas — e escancarada parcialidade contra outros, isto é, os que atacam o comunismo, atacam as heresias e os cismas?

O mesmo se deve dizer do procedimento do cardeal Silva Henriquez, arcebispo de Santiago. Não houve gesto de amizade que ele não tivesse tido para com o marxista Allende. Mas foi só aparecer Mons. Lefèbvre em Santiago, que o brando pastor, amigo de rabinos e missionários protestantes, não lhe poupou apodos. Ecumenismo é só em favor do comunismo, e dos anticatólicos de toda ordem? Mas, então, o que é tal ecumenismo senão um acumpliciamento com os inimigos da Igreja?

Mutatis mutandis, análoga pergunta poderia ser feita ao episcopado colombiano, pois, menos iracundo do que o ex-afável cardeal chileno, também mostrou a Mons. Lefèbvre a sua carranca.

E aqui fica formulado o problema. Ele faz ver um dos aspectos mais tristes e perturbadores do ecumenismo dessa Igreja pós-conciliar, a qual Paulo VI afirmou, com tanta razão, entregue a um misterioso processo de autodemolição (alocução de 7-12-68) e penetrada pela fumaça de satanás (alocução de 29-6-72).

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