As grandezas do malogro católico: de joelhos diante de Deus e de cabeça erguida diante dos homens

Reunião do MNF, 20 de outubro de 1982

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

 

O que dá, hoje em dia, ao católico a honra e a glória de afirmar – sobranceiro e sem pretensão – que é católico, apostólico, romano? Como enfrentar os fracassos tidos sem culpa própria e saber se reerguer deles se tal for possível, mas em qualquer caso manter a confiança inalterável em Deus Nosso Senhor? Eis algumas das questões que Dr. Plinio Corrêa de Oliveira aborda em reunião para os membros da Comissão da TFP brasileira que se dedicava a estudos filosóficos (Comissão do MNF), a 20 de outubro de 1982. Para facilitar a exposição ele imagina um Imperador Carlos da Áustria mítico, enfrentando as vicissitudes pelas quais passou até sua morte na Ilha da Madeira (em 1887-1922). Efetivamente, ao falecer, deixou a imperatriz, sua esposa, Zita de Bourbon Parma (1892-1989), com seus oito filhos para cuidar e formar em meio a mil dificuldades.
Fotomontagem: Carlos I, imperador da Áustria, é coroado rei da Hungria em Budapeste, em 16 de dezembro de 1916. Ao seu lado estão o príncipe herdeiro Otto e a imperatriz Zita. Sobreposta à foto, a Coroa do Império Austríaco também conhecida como coroa de Rodolfo II (século XVI).

*     *     *

[…] tratar do Imperador Carlos, expor um pouco o Imperador Carlos, mas começar por expor o direito que se tem de imaginar o Imperador Carlos como ele não foi, portanto o imperador Carlos mítico.

Mas é que eu tenho empenho de pôr em relevo o “pulchrum” [a beleza] das coisas que acabam com glória, que eu tenho impressão que será um pensamento muito importante para a gente compreender uma porção de coisas que ficaram do passado e será também uma coisa que nós devemos pôr no nosso modo de pensar, porque nós somos chamados para defender Nossa Senhora Rainha triunfante. Mas nós não podemos confundir isso com um certo triunfalismo festeiro e festivo, meio parecido com as alegrias da esquerda festiva.

No triunfo, nós devemos conservar um nobre amor à tragédia, às grandes melancolias, os malogros monumentais, a essas coisas todas nós devemos conservar fidelidade e admiração. E o entender que sempre que nós malogramos a Providência não quer de nós que nós afundemos na vileza do malogro, mas que nós compreendemos a grandeza do malogro da parte do católico. Quem não entender isso, não entende bem.

Creio mesmo – com a devida veneração e submetendo ao juízo da Igreja o que vou dizer – que esta tinta do que eu vou dar não está presente nas considerações sobre a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz. E que, entretanto, é uma coisa indispensável para se compreender o conjunto do acontecimento dentro dos acontecimentos, que é a redenção do gênero humano.

A liturgia canta umas coisas triunfais dessas por ocasião da Cruz, mas o povo não percebe qual é o tom de alma em que isso deve ser visto, então eles não compreendem a coisa.

Então eu queria tomar um exemplo para iluminar com isso todos os malogros com grandeza da história. E para isso eu tenho que imaginar um malogro que historicamente não teve grandeza, mas que teria tido se…

Eu conheci pessoas extraordinariamente capazes de compreender essa perspectiva no malogro, extraordinariamente. E naufragadas no malogro com dignidade, que eu considero a condição do triunfo. Eu não acho que uma pessoa que não tenha várias vezes naufragado no malogro com dignidade, ou que não seja pelo menos capaz de naufragar no malogro com dignidade, que essa pessoa esteja em condições de triunfar verdadeiramente. Até lá vai o meu conceito de luta, meu conceito de mérito e meu modo de ver a vida.

Por exemplo, Jó “sur son fumier” [sobre seu monturo] deve ser visto como ele está nas lamentações, uma dignidade enorme e sentindo-se grandioso “drappé” [envolto, vestido], drapejado nos seus infortúnios múltiplos como em mantos de rei. É assim que Jó se apresenta.

Mas eu acho que a penetração do espírito norte-americano, já do espírito dandy, que sucedeu ao romantismo, espírito inglês portanto; e depois do espírito norte-americano tirou essa proporção das mensurações com que nós analisamos as situações, é uma medida que nos falta para analisar as situações.

E como a mim me foi durante minha vida tão cheia de malogros, me foi de uma ajuda sem nome – eu não teria conservado uma certa dignidade se não fosse sabendo malograr no esplendor, eu gostaria de tratar disso aqui. E é a esse título que eu quereria tratar de um malogro tão maior do que o meu, tão mais esplendoroso do que o meu

(Aparte: Na “Via Sacra” redigida pelo Sr., o Sr. escreveu que no auge do malogro era o início da vitória)

É, e é isso. E foi o que eu quis pôr ali, naquele dito, é pôr um pouco desse pensamento.

Eu tenho impressão de que isso era uma coisa que valeria a pena a gente tratar e, portanto,  eu gostaria de abordar a coisa com um pouquinho de método. Quer dizer, pensar no personagem mítico.

Quer dizer, nós deveríamos imaginar um homem, como até havia na alma dele umas tintas para ter sido.

Eu falo do fim nesses termos: nós deveríamos imaginar o último dos Habsburgs como sendo a quintessência de tudo que os Habsburgs tiveram de grande e de bom.

Imagino, por exemplo, um homem da idade que o imperador Carlos tinha, quer dizer, dessas maturidades que estão ainda apenas no começo e cobertas dos reflexos de mocidade que vem de uma vida ordenada, de uma consciência no seu lusco-fusco em regra consigo mesma, e que não andou se poluindo nos lupanares, nem nas conversas imundas, nem nos ambientes diretamente revolucionários, mas apenas nas sacristias. Portanto poluição de sacristia que naquele tempo não era tão terrível quanto se tornou depois. Era o que havia nele, ensebamento de sacristia, mais do que poluição no sentido próprio da palavra.

Eu imagino um que fosse um homem inteiramente fiel, mais ou menos conscientemente, aos princípios que representava, mas efetivamente fiel. Que tivesse lutado com uma coragem efetiva contra a Revolução e com um nível de resistência efetivo também. Não imagino que fosse esplendoroso, nem de uma coragem gigantesca, mas uma coisa efetiva também.

É que tivesse em germe na alma todas as grandezas – não as tivesse inteiramente conscientes – tivesse em germe todas as grandezas que ele representava. E que durante a luta deu muito mais do que se pensava que ele tivesse, e ele mesmo pensava ter. De maneira que ele termina a luta, terminada a luta e ele posto no trem que o vai levar para a Suíça, depois de terem saído do trem os últimos fiéis e ele ficar apenas com uma magotezinho de parentes, de filhos, de secretários, etc., etc., e obtendo um pouco de silêncio, ele no trem que o leva – e que eu imagino que é um trem que ele exigiu que fosse um trem especial, um carro pulman ou o carro das composições imperiais – para o levar para uma pequena viagem de 2, 3 horas, ele afinal de contas baixa uma cortina do lado dele, para ninguém de fora o ver, nem mesmo no campo, se sente só e se estende um pouco.

Dentro do infortúnio dele toma o primeiro contato com a situação, e a primeira coisa que ele mede são os sinais de um cansaço enorme, de um embrenhamento da personalidade dele a fundo dentro da luta, que começa apenas a sair de dentro da armadura da luta para olhar para o wagon, para olhar para a esposa, para olhar para a vida cotidiana, etc. E que vai tomando um pouco a dimensão dessas coisas cotidianas.

Então, chegam, oferecem a ele um sorvete – perigo ele não está correndo nenhum – oferecem a ele um sorvete, oferecem um sanduíche; uma criança brinca um pouco com ele, um filho dele, ele empurra um pouco de lado e diz que quer dormir, na realidade ele quer ficar de olhos fechados.

Mas ele sente – ao voltar para esse contado da vida cotidiana – ele sente de um certo modo que ele já é maior do que isso, que a luta, a ferocidade – a ferocidade dele, não é só do adversário – o infortúnio, fizeram com que ele desse uma dimensão em que outrora ele caberia naquilo à vontade como uma boneca dentro de sua caixa, e que agora ele já não cabe mais, ele tem outros horizontes, que aquilo está uma coisa para ele arranjar assim com o canto da mão, um pouquinho, manter direitinho, etc., etc., mas que ele tem outras coisas. Ele se estranha e aí mesmo, teria por assim dizer vontade de olhar para as próprias mãos para ver se cresceram. Seria essa a sensação que ele tem.

Essa impressão estranha, confusa, dignificante, fá-lo pensar: “eu a isso volto ainda depois”, e deixar as impressões subirem. E as últimas impressões são: o vozerio do populacho revolucionário, as ameaças, ele na sacada da Hofburg enfrentando, o povo que invade, ele que resiste no último quarto com dois revólveres no punho, os tiros que ele dispara, o pessoal que entra. O susto que tomam quando o veem sozinho. E, afinal de contas a rendição dele. Ele não entregou aos revolucionários as armas dele nas mãos como queriam, como uma comissão de bacharéis queria, mas ele as atirou no chão e disse: “peguem aí porque é só onde elas podem ser pegas!”

E saiu para o rumo por onde ele sabia que caminhava o aprisionamento dele. Não ousaram pegá-lo, ele atravessou a multidão, perguntou: “onde é que está o carro que vai me levar preso?” – Aqui está. “Tragam algemas!”. Não o algemam, ele é levado para fora, sentinelas, o “ooolll” do povo revolucionário ainda bramindo, ele fungando, com o cabelo em desordem, com a barba crescida, com o uniforme em desalinho, mas não pensando em nada disso.

Mas pensando que ele em determinado momento, ali, viram nele toda glória da Casa d’Áustria e odiaram; viram o Estado sacral, viram a monarquia dual, viram os restos do Sacro Império, viram todas as delicadezas do Ancien Régime, viram todas as glórias da Idade Média, viram tudo, e odiaram em nome do mundo moderno. E que ele se levantou de corpo inteiro e simbolizou: “eu represento isso, e eu não cedo porque isto é imortal! Vamos tocar para a frente. Vocês me contestarão tudo, matarão até se quiserem, mas se eu agir com dignidade algo não morrerá”.

E ele sente confusamente uma lei da História dentro dele realizar-se, que é uma lei da História que ele não sabe enunciar, mas que é assim: cada coisa que é decepada, cortada assim brutalmente e injustamente por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, no momento de ser decepada ela emite a sua maior glória, ela tem seu fulgor mais belo, ela simboliza mais intensamente as perfeições de Deus que deve simbolizar, e ela projeta um raio de luz que vai até o fim da história.

Se há condições de fecundidade para uma restauração, essas condições vêm da intensidade com que esse momento tenha sido vivido. Acende uma espécie de carga elétrica de saudades que voa de imponderável em imponderável pelo coração de todos que são fiéis. E que atrapalha a Revolução mais do que todos partidos políticos, todos os programas, todas as bibliotecas, tudo mais! É esta posição!

Isso eles não pensam, não entendem etc., etc., mas ele sente realizar-se em si. E ele sente que um passado enorme, em tudo quanto iria se recolher aos esplendores do Padre Eterno, não se recolheu aos esplendores do Padre Eterno, mas recolheu-se nele. E que ele é a taça de ouro donde isto ou irá para os esplendores do Padre Eterno, ou a mão da Providência derramará de novo sobre a humanidade. Depende, mas que ele é o último sol de uma linhagem de sóis, mas é talvez o primeiro sol de uma outra era histórica. É uma alternativa em que ele fica.

Eu não sei se estou sendo claro no que eu digo ou não.

Ele tem bem em mente um fato que foi histórico, que o imperador Carlos recebeu das lojas maçônicas de Viena uma intimação: se ele consentisse em separar a Igreja do Estado não proclamariam a república, mas se ele não consentisse, proclamariam. E ele disse: “eu vou lutar – isso é verdade – mas eu não separo a Igreja do Estado, não vendo minha consciência”.

É que se ele separasse a Igreja do Estado eles mais tarde derrubavam a monarquia, mas derrubavam a monarquia num lençol funerário porco do laicismo, ela não cairia “elle n’en mourrait pas en beauté” [ela não morreria de modo esplendoroso, n.d.c.] mas cairia na sua vilania, estaria morta mesmo, eles a sepultariam morta. E assim eles a sepultariam viva. Coisa muito diferente sepultar alguém morto ou vivo, ainda mais quando se trata de um rei, ou da realeza. De maneira que as coisas são diversas a irremediavelmente diversas.

Bem, ele sai, vamos dizer, e vai a um lago na Suíça, tranquilo, azul. Sai da estação e vai para lá, onde lhe está reservada uma casa burguesa para morar.

Ali ele é seduzido pelo seu passado, esquecer-se o que houve e refazer no conforto da vida burguesa, na despreocupação econômica gorda em que está, refazer um futuro daquele tamanho, daquela dimensão. E perder-se no azulado do lago, saber qual é a hora em que se pegam as carpas, em que pega não sei o que, ficar um perito naquele lago. Cuidar da educação das crianças para terem profissões, para estarem ao coberto de qualquer infortúnio e não caírem na mendicância.

Então o objetivo não é mais formar futuros soberanos, mas é formar homens que possam não cair na mendicância, porque o pavor é a mendicância e as privações que a mendicância trás. E já é um “pisalé” não péssimo que o indivíduo tenha o com que manter uma vidinha burguesa. E afunda naquele “chinelo”. Seu passado remoto o solicita a isso, mas o passado próximo uiva dentro dele e o convida a uma outra coisa.

Ele faz uma opção e nessa opção ele se afunda nas aventuras da Hungria. Essa opção é uma opção cheia de esperança, porque quando ele opta pelo passado próximo ele opta com esperança: “isto vai ser restaurado; isto vai ser rejeitado; isto vai vencer. Eu não vou ficar, eu, “drappé“ nas saudades.

(Aparte: se Deus é Deus, isto não pode morrer).

“Se Deus é Deus isto não pode morrer e eu portanto tenho minha esperança e vou lutar. Pode ser que minha luta não dê certo, mas então dará certo em um descendente meu, mas a benção não sairá da minha Casa e minha Casa não desertará minha Causa, nós vamos lutar”.

E a graça afaga isso nele, passam pela cabeça dele idéias de ele coroado rei da Hungria, de ele restaurando o panache da monarquia dos magiares, de ele ir projetando assim sobre a Áustria todas as saudades que a levarão a incorporar-se à monarquia dual, de ele reanimando as fidelidades na Tchecoslováquia, na Iugoslávia, e desconcertando a obra monstruosa do tratado de Saint-Germain.

Ele vai para a Hungria, uma vez, fracassa. Volta enriquecido de experiência e de esperança, porque ele viu que as fidelidades são maiores do que ele pensava. Vai a segunda vez e fracassa de novo.

Eu estou imaginando que não fracasse pelos fracassos que ele teve, mas que fracasse sem culpa própria: ele foi traído, fizeram uma conjuração… Por exemplo, o Banco onde ele tinha o depósito necessário para pagar as despesas da investida faliu… Ele adoeceu, aconteceram coisas que não estavam na vontade dele e ele foi estraçalhado…

Ele, derrotado pela segunda vez, cansado, alquebrado, na aparência abandonado pela Providência, ele é desembarcado na Ilha da Madeira. E lhe avisam que está tuberculoso e lhe dizem de outro lado que ele tem que ir para um canto do mundo onde ele não incomode mais, do contrário ele é morto. E ele escolhe a Ilha da Madeira, naquele tempo pré-aeronáutico ou quase pré-aeronáutico, é um canto do mundo, e é um lugar para tratamento de tuberculose.

Ele vai à Ilha da Madeira, toma uma chácara e no panorama grandioso da Ilha da Madeira, no alto de uma montanha, sofrendo os bafos e calores pré-africanos, seduzido por um pouco de tropicalidade que já aflora ali no ambiente, nas coisas, e que fascina o europeu; ele sofre os embates da alma dele.

Primeiro, a doença, as febres, a fraqueza, as tentações de desânimo, o medo de contagiar os dele;  segundo lugar, a sensação do abandono completo, ninguém vela por ele, não lhe escrevem, não lhe dirigem uma palavra. Há uma tênue esperança de que o governo português lhe corte a correspondência, mas quantas razões ele tem para achar que ele é o esquecido das nações, que ele está sepultado no olvido.

Ele lê os jornais e os jornais lhe dão a impressão que a Áustria está se recompondo na prosperidade de uma felicidade de leiteria, de uma felicidade pequeno burguesa indigna. Leiteria com uma sessão de turismo, são os lugares aonde ele tinha sido imperador. São as montanhas, são as caçadas, são os lugares onde os norte-americanos e japoneses vão se divertir.

Ele está completamente abandonado e, pior, abandonado por Deus. Porque tudo quanto ele retamente desejou, a que ele aspirou com toda alma, que as promessas que cantavam na alma dele, lhe faziam esperar, tudo isso lhe é recusado.

E, ele, entretanto, não se sente esmagado, nem envergonhado, nem revoltado; porque ele percebe esse fato fundamental: que se ele conservar inteiramente a estatura moral que ele tinha enquanto ele estava na onda da esperança, se ele conservar inteiramente a grandeza, a força, a dignidade, que eram a dele quando ele julgava que a mão dele estava para se depositar na coroa – se ele enfim entender que se lhe podem tirar o que ele tem, mas não lhe podem tirar o que ele é.

E que percebem ou não percebam os outros que ele é o que ele é na presença de Deus, e que ele portanto tem o direito ao seu próprio respeito, a sua própria admiração, e que ainda que os outros não queiram ver ele tem obrigação de fazer reluzir isto. Ainda que ele morasse sozinho numa cabana ele teria que ser o Imperador da Casa d’Áustria e não tinha que ser outra coisa, porque ele era idêntico com seu papel histórico. E que ainda que ele afundasse numa sepultura, ele entraria nela abraçado ao seu papel histórico como ao seu próprio significado. Digno e altivo ainda que fosse sapateiro para manter os filhos.

Se ele fizesse isso ele teria um título qualquer por onde ele aniquilava tudo quanto estava sendo feito contra ele, e ele vencia pela sua própria resistência ao dominador.

Era uma forma de vencer misteriosa, que ninguém conhece e que só ele cultivaria, mas ele saberia que ele seria certamente vencedor e que não havia nada que o fizesse dobrar.

Então, nós podemos imaginar esse homem à tardinha, arrastando uma perna, com o olhar já meio enevoado pela doença, tossindo, com frio num dia quente, com a esperança de ainda ter forças para chegar a um banco aonde tem um panorama de grandeza, e não apenas de encanto tropical.

Arrasta-se até lá, senta lá, distante dos ruídos do lar, distante do barulho de uma filhinha que está tomando aula de canto com a mãe, dos meninos que estão brincando ruidosa e estupidamente alegres num canto do jardim; distante da banalidade da vida de todo dia, ele se senta e ele passa em revista a história da Casa d’Áustria, as grandes horas de glória: Rodolfo de Habsburg, os serviços que prestaram à Igreja naquela, naquela ocasião; as coroações em Nurenberg, Felipe II, aquela Ilha da Madeira pertenceu à Casa d’Áustria no tempo em que aquilo foi das coroas unidas de Espanha e Portugal, ele oscula aquilo como um solo que já foi iluminado pelo sol que ele representa. Ele vai desfiando tudo isso… a Santa Aliança, as glórias da queda de Napoleão, tudo mais ele vai desfiando até o momento em que ele é preso, em que ele se afunda nesse exílio.

Ele diz: ”Bem, eu não compreendo o que está se passando comigo, eu não desisto de nenhuma das promessas que Deus me fez, eu por assim dizer, pela minha esperança, respeitosamente as cobro de Deus até meu último alento. Mas se houver alguma surpresa – porque Deus é misterioso e eu não sei o que Ele possa querer – e se eu tiver que afundar e morrer dentro deste estado que parece o desmentido de tudo aquilo que eu esperei, eu afundo de joelhos dobrados, mas de cabeça em pé. Meus joelhos dobrados diante de Deus e minha cabeça em pé diante dos homens: eu sou o imperador. Imperador não só da Áustria–Hungria, mas de “jure” imperador do Sacro Império Romano Alemão. Ninguém me elegeu, mas os Anjos me elegeram. E eu morro ungido na minha grandeza. Deus me explicará depois o mistério, eu morro confiante nele. Expiando o que fizeram os meus maiores, expiando o que fiz eu! Expiando o que fizeram os Papas, expiando – quem sabe se eu sou, no sentido próprio da palavra, o bode de expiação do mundo inteiro. E no meu fracasso o mundo inteiro, no meu sangue o mundo inteiro tem que se lavar. Se for isso será a gotinha de água que o padre recebe no cálice antes de consagrar. Eu dou de bom grado e morro sem compreender, mas não morro sem adorar. Adoramos Te Christi et benedicimus tibi, quia per Sanctam Crucen Tuam redimisti mundum [Adoramo-Vos Cristo e Vos benedizemos, porque pela Vossa Santa Cruz redimistes o mundo]”.

Eu imaginaria que este homem à hora de jantar, sentado junto à família, estivesse meio misterioso, a família sentisse nele, junto com a bondade paterna e a meiguice conjugal e paterna, algo de imensamente maior e de misterioso, e que não compreendesse bem, e que entendessem que algo estava se passando completamente diferente e maior do que tudo, e tivesse a sensação de que naquele tugúrio da ilha da Madeira a história estava se resolvendo. Eu posso imaginar isso.

A partir disso eu posso imaginar tudo, eu posso imaginar um Pio XI que se convertesse, e que virasse um Pio X, portanto uma nova ressurreição de São Pio X. Eu posso imaginar os filhos dele que recebendo graças enormes passassem a ser Príncipes verdadeiramente contra-revolucionários, ultramontanos e chamados para a grandeza que aquele homem não teve.

Como eu posso imaginar um milagre, ele levanta são e arranja um jeito de fugir e daqui a um mês ele é Rei apostólico da Hungria.

Posso imaginar os caminhos mais diferentes, porque esse homem fez essa oblação dupla de manter a cabeça de pé, sempre quando todas as razões humanas lhe faltavam. E depois, de aceitar tudo na maior das humildades, quando todas as razões sobrenaturais mais acessíveis, mais imediatas, não digo todas na força do termo, pareciam ter mentido a ele.

Esse realizou a grandeza da Casa d’Áustria perfeitamente e abriu um futuro que ninguém conseguirá fechar.

Esta é a fecundidade dos grandes fins da história. Aqui as coisas não acabam, é completamente diferente. E depois se saberá como continuaram. Até é baixa de nível ter uma certa falta de ar por não saber como continuaram.

E é assim que, por exemplo, eu vejo o martírio de Santa Joana D’Arc. Nem é só o martírio dos incompreendidos, mas é dos incompreendidos lançados no incompreensível, incompreensível até para eles próprios. Eu vejo nisso uma grandeza especial, mas que abre outra medidaporque eu considero que um homem desses é um vencedor no sentido pleno da palavramas abre uma outra medida no medir todas as coisas.

… que eu vejo que outros não tinham nem um pouco. E que fazia uma luta, dentro mesmo do Grupo, porque eu vejo que se o Grupo tivesse adotado esta posição, ele teria frutificado muito mais, porque essa é uma posição rica em bênçãos, é uma concha de bênçãos, é uma fonte de bênçãos. Embora pareça que sobre ela se descarregam todas as maldições.

Eu acho que é o que o caso de Jó simboliza, que aquele que aguenta tudo trás consigo todo o futuro feliz, se não individualmente para si, para aquilo que ele representa. Mas todas as felicidades da terra se acumulam naquele que foi grande em cima do monturo.

Me chamou sempre a atenção a grandeza com que Jó acolhia os amigos, a largueza de vistas dele. Ele do alto daquele monturo teve um monumento para toda história, não enquanto presidindo a felicidade posterior ou anterior, mas do alto de monturo. Foi porque ele soube despir-se da felicidade anterior é que ele recebeu a posterior. [vira a fita]

…muitíssimo pulcro. Não há noção do “pulchrum histórico” inteira se a pessoa não é capaz de admirar isso.

É meio melancólico, mas eu tenho impressão que seria quase, para o homem moderno, como um sexto sentido, de tal maneira ele é desprovido disso. Mas eu acho que ninguém sabe lutar se não tem isto.

E eu acho que do alto do Calvário havia isso. Quer dizer, toda a glória de Salomão é preciso ver presente no alto do Calvário. E Ele se conservou Filho de David no alto do Calvário, levando a glória do povo de Israel e a dinastia de  David até um auge que não se pode imaginar.

E que Ele morreu com aquela dignidade extraordinária por ser Homem-Deus evidentemente, mas estava presente nessa posição toda a enorme asseitas de sua própria dignidade, que não dependia nenhum pouco dos outros reconheceram, nem de Ele ganhar a partida no jogo dos acontecimentos humanos, dependia do fato de que Ele era Ele, e mais nada, sem tirar nem pôr.

E há aqui qualquer coisa sem a qual o católico acaba sendo o pobre coitado, desfibrado, azarado, cachorro, cão sarnento e batido de que todo mundo foge e no total ainda se dá um tiro para que ele não amole, para ser jogado numa lata de lixo. Cão sarnento e batido, ele mesmo se sente se ele não se põe nessa posição. E pondo-se nessa posição ele ganha a partida ainda que pareça não ganhar.

A questão é ter coragem de aceitar a posição, de assumi-la até o fim e compreender que ali ele faz a vontade de Deus e realmente se cobre de glória.

Mas eu acho que não é fácil a pessoa se compenetrar disso. E tenho impressão que a pessoa tem a sedução de mil alegrias superficiais, fátuas, irrefletidas, cômodas; mil atrações mais ou menos imbecilóides que a retém. Mas que a alma de um homem ou é assim ou esse homem não tem o direito de  dizer que ele é um grande homem. E quando a alma de um homem é assim ele tem o direito de dizer que é um grande homem ainda que ele tenha pouco talento e não tenha conseguido vencer em nada na vida. Essa é minha impressão.

Isso equivale a dizer, em outros termos, que é um convite aos que me ouvem, diretamente ou pelo fio [gravador, n.d.c.], a uma outra impostação se a “Bagarre azul” [mentalidade pós II Guerra Mundial dos “milagres” econômicos em diversos países do Ocidente, portanto do gozo desenfreado dos bens materiais, n.d.c.] conseguiu alguma nesga dentro da alma deles. Mas outríssima! Impostação sem a qual eu tenho impressão que nós deveríamos hoje, diante dos hereges, enrubescer dizendo que somos católicos. Porque com o que a Estrutura [eclesiástica progressista] faz hoje nós, nos dizendo católicos, tomamos um tal ar de palhaços, e enquanto a Igreja foi a “causa nostra laetitia, causa honorificentia nostrae” [causa de nossa alegria, causa de nossa honra], outrora, Ela é hoje é razão para nossa vergonha, nossa tristeza…

Agora, por que razão é que nós dizemos de cabeça alta que nós somos católicos? E ainda que essa palavra esteja soando mal a todos aqueles que não a entendem nós a mantemos?

Nós a mantermos única e exclusivamente porque o católico é isso, ele foi batizado, ele faz parte do Corpo Místico de Cristo, Cristo habita nele, a alma dele é o templo do Espírito Santo, ele é filho de Nossa Senhora, porque pertence à Igreja; e ainda que lhes pareça a pertencença à Igreja ter um aspecto de um trapinho sujo aos olhos de todos os outros homens, para ele é o único manto real que há na terra, e ele oscula esse manto e dá a vida para manter esse manto real!

É o senso da sua própria dignidade ainda que os outros não percebem porquê. Pouco importa! Eu sou católico! E de cabeça mais em pé do que nunca e vejam na minha altivez a glória da Igreja que não reluz em outros pontos. Pronto! De cabeça alta, enfrento”!

São atitudes de alma sem as quais eu não concebo Contra-Revolução.

Às vezes eu me pergunto – é uma mera pergunta – às vezes eu me pergunto se a Providência permitindo à Revolução que alcançasse vitórias tão estrondosas, enquanto a Contra-Revolução de tal maneira era esmagada, e em derrotas horríveis, coisas medonhas, Ela não queria destilar para si um “coetus” que no extremo da humilhação da Igreja tivesse esse senso das coisas e fiel a esse senso das coisas se orgulhasse de ser católico.

Mas aí era um espírito que nós precisávamos adquirir, e que eu pela primeira vez tenho coragem de expor, porque “quand même” [apesar de tudo] as coisas vão maturando, “quand même” as temáticas vão se destilando e é possível dizer isso, que assim nunca ninguém me viu dizer. Podem ter pego fiapinhos disso naquela, naquela outra atitude minha, ou naquele ou naquele outro dito meu, mas assim nunca ninguém me ouviu dizer.

Nessa perspectiva, eu imaginava o imperador Carlos assim [em torno de 1921, quando ele tentou reaver o trono na Hungria, e a partir de quando o Prof. Plinio passou a ler o jornal todos os dias, então com 12 anos de idade, n.d.c.]. E participava de todas as “torcidas” dele – que eu imaginava e, enfim, eu tinha impressão que…

Eu já não gostava do “O Estado de S. Paulo” [OESP], olhe que foi quando eu comecei a ler o OESP! Mas, vocês sabem que a incompatibilidade é visceral, completa, consiste nos pormenores, é total! Eu não gostava e eu vi aquelas notícias e tinha impressão de que uma certa ordem de coisas representadas pelo OESP ficava rubra de vergonha e de ódio vendo aquela tentativa. Donde eu achar que algo rachava no mundo se ele se restaurasse; rachava tudo que eu queria que rachasse…

Um pouco antes de eu cair com essa minha doença de diabetes, eu creio que foi aí, eu fui procurado por uma…

Eu tenho entre minhas recordações uma fotografia da sepultura dele [do imperador Carlos], que me foi enviada da Ilha da Madeira pela minha professora de ginástica, eu guardei isso.

Algum tempo antes de eu cair doente eu fui procurado por uma senhora, Madame Gruschka – a criada nem sabia dizer o nome dela – mas eu logo reconheci que era minha professora de ginástica.

Ela veio – as cruéis ironias das coisas, eu já não advogava há uns 10 anos ou 15: “Doutor Plínio, o senhor ainda se lembra de mim? Eu fui sua professora – uma velha “ratatinée”, nada dela falava da ginástica, nada, nada, da Suécia sim, da ginástica não, ela era sueca – eu fui sua professora de ginástica etc., etc.”.

Eu disse: “Ah! mas, Madame Gruschka, me lembro da senhora perfeitamente e com que boa recordação, etc., etc.”.

Ela disse: “Pois é, eu nunca me esqueci do senhor, porque o senhor, um menino como era, eu vou para a Europa e lhe pergunto se o senhor quer alguma coisa, e o senhor imagina de me pedir para descer na Ilha da Madeira  para mandar uma fotografia. O senhor recebeu aquela fotografia?”.

“Mas muito obrigado, eu recebi, fiquei encantado! tenho guardada até agora, etc., etc.” E estava procurando animá-la quanto possível.

E ela me disse: “Pois é, eu não compreendo como é que um menino de  São Paulo, naquele tempo, podia estar pensando em coisas dessas, mas eu tomei a peso de consciência, o navio parou lá, eu desci, fui até lá e comprei uma fotografia e lhe mandei”.

E aí a ironia da coisa. Conversando um pouco ela disse: “Pois é, quem é que havia de pensar, naquele tempo também que o senhor fosse um advogado célebre em São Paulo pela sua perícia jurídica”… – Nunca fui, nunca fui! Eu disse: “mas a senhora está enganada, não sou”. – “Não, isso é modéstia sua, mas uma amiga – eu vi que era uma amiga do tempo dela – me disse que o senhor é um advogado célebre, que o senhor domina o Fórum de São Paulo. E eu tenho exatamente uma causasinha para trazer para o Sr… – e era um caso dela – o senhor tenha pena e veja se advoga essa causa para mim”.

E eu não pude fazer nem isso que era advogar a causa da madame Gruschka, eu disse: “A senhora está enganada, eu fui advogado, mas não fui um advogado nenhum pouco célebre, eu apenas o que tem é que advoguei durante uns 20 anos, tinha um escritório movimentado como muitos outros. Mas há mais de 10 anos não advogo mais e não sei advogar esse caso mais, já perdi o fio completamente de toda a meada”.

“Ah! Doutor Plínio, então o senhor me deixa sair sem nenhum alento?” Eu disse: ”O que eu posso fazer? Eu tive o prazer de revê-la, a senhora não teve o prazer em me rever” – disse brincando com ela – “mas eu não tenho nada para fazer pela senhora”.

Acompanhei-a até embaixo e ela saiu “trottinant sa déconvenue” pela rua afora. Acabou-se.

(Aparte: Um tema muito grave…)

Muito.

(Aparte: Isso é tratar as coisas do ponto mais alto)

Mas no fundo disso está a calma.

(Aparte: ponto de equilíbrio de uma grande ordem…)

A cascata de infortúnio do desastre [de automóvel de 1975] – a cascata de infortúnio – como suportar bem sem isso?

Quer dizer, quando se estabeleceu aquela dúvida a respeito de minha sanidade mental – com o trauma que tive na cabeça – eu ainda pensei: “A última coisa que me restava era a minha sanidade mental, mas eu vejo que ela está diminuída; sei que voltará ao normal, mas vejo em torno de mim os que são meus duvidarem a esse respeito e dançarem o bailado sem beleza da incerteza e da vacilação”.

Até lá eu teria que ser ferido na minha integridade física e na minha integridade mental. Não fui ferido apenas na minha integridade moral. “Sit nomen Domine benedictum, ex hoc nunc et usque in saeculum [seja o nome de Deus bendito agora e até o final dos séculos]”… Vamos continuar, eu continuo eu, tão imensissimamente menos do que o Imperador da Áustria, mas eu”…

[…] Para aguentar a pré “Bagarre” [realização das promessas de Nossa Senhora em Fátima], isso foi indispensável.

(Aparte: Para aguentar esta fase, que é atroz…)

É atroz! É atroz. Está bem. Para aguentar as elasticidades que terá a “Bagarre”, para aguentar isso, esta ordem de considerações que eu faço é indispensável.

(Aparte: Absolutamente!)

A reunião está feita, nós podemos ir andando, vamos rezar, está acabado.

Nota: A respeito deste assunto, veja por exemplo o “Santo do Dia” de 11 de agosto de 1967  As Lamentações do Profeta Jeremias aplicadas à atual paixão da Santa Igreja – “Devemos ser os cortesãos do infortúnio”. O que é um verdadeiro filho da Igreja Católica?

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