A verdadeira fisionomia dos Santos segundo pinturas da época ou fotografias: um “vitral” da Santa Igreja Católica

Auditório São Miguel, 17 de janeiro de d1986 – Sexta-feira, Santo do Dia

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

Estava contando com uma proclamação… A proclamação faz para mim o efeito que faz o “fatinho” para os Srs. O começo da reunião é para mim, e o fim é para os Srs… De maneira que eu estava contando com a proclamação. Mas realmente eu tinha sido avisado que não haveria. E que nós deveríamos entrar diretamente na matéria do dia hoje.

A matéria do dia de hoje é a projeção de alguns slides com a interpretação da fisionomia de alguns santos, tirados de documentos da época, quadros deles, máscara mortuária etc. A respeito da máscara mortuária é preciso dizer o seguinte: que em matéria de fisionomia a menor alteração dos traços reais pode mudar uma fisionomia. De maneira tal que por ex. a espessura maior ou menor dos lábios, o comprimento maior ou menor do nariz, uma pequena alteração do modo dos olhos se fecharem – na ponta dos olhos fecharem, qualquer coisa assim pode dar um outro significado a uma fisionomia.

O resultado é que nunca seremos suficientemente cuidadosos no nos perguntarmos se nessas máscaras mortuárias que se guardam dos santos a pessoa que foi incumbida de exumar os santos e de dirigir a exumação e organizar o cadáver para ficar imune da podridão, e para ser colocado num lugar onde possa ser visto, se essa pessoa teve o cuidado de não alterar em nada a fisionomia

Há coisas a que às vezes os artistas não resistem. Se por ex. um santo morreu e teria, vamos dizer lábios muito finos e por ação do tempo, pela contração cadavérica normal do tempo, o tecido se encolheu, os lábios ficaram um pouco mais finos, pode ser que sem podridão cadavérica, pode ser que apareçam os dentes. E não fica bonito um cadáver estar com os dentes aparecendo, arreganhando os dentes. Resultado, o artista dificilmente resiste à tentação de recompor os lábios. E ainda que seja um artista historicamente muito cuidadoso e que procure fazer a recomposição mais parecida possível com que os documentos da época apontam, uma certeza inteira não se pode ter. Uma vez que os lábios foram recompostos com cera entrou um pouco da imaginação do artista. E entra um pouco da interpretação que ele deu à fisionomia do santo. Ou o que ele imagina que tornaria coerente a fisionomia do santo.

E então, conforme a ideia de que ele tenha de santidade, ele pode ter dulcificado ou pode ter, pelo contrário, ter amarizado, amargado a fisionomia de um santo. E que, portanto, nós não devemos tomar essas máscaras mortuárias como documentos absolutos, porque há alterações a que forçosamente o fenômeno está sujeito.

Eu vi, por exemplo em Bolonha, um fato. Santa Catarina de Bolonha era uma religiosa não me lembro de que Congregação. O corpo dela foi conservado intacto como acontece com tantos santos. E depois de enterrada foi exumada e se verificou que o corpo estava intacto, ela foi canonizada, o corpo dela inteiro foi levado com os Hábitos com ela estava, de religiosa, ela foi sentada numa poltrona e o cadáver dela foi colocada sobre um altar. E os padres, sacerdotes celebravam a Missa no altar, na presença do cadáver dela. O que tudo estava na maior coerência com a doutrina católica, irrepreensível!

Veio a Segunda Guerra mundial – e as autoridades eclesiásticas fazem isso habitualmente quando há guerra, os tesouros de muita significação, as autoridades enterram para proteger contra os bombardeios. Por exemplo, quando a situação internacional fica verdadeiramente tensa, em vários países da Europa se desmontam os vitrais das catedrais.

Nas vésperas da Segunda guerra mundial os vitrais da Sainte Chapelle, por ex, de Paris, a famosa capela construída no palácio de justiça de Paris pelo rei S. Luís IX de França para guardar espinhos da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo, –– os vitrais dessa capela são famosíssimos, merecem a fama que tem –– resultado, antes da guerra foram desmontados. É uma coisa até em que os diplomatas prestam atenção, porque quando começa a desmontagem dos tesouros quer dizer que o país está achando que a guerra está próxima. Então os diplomatas todos acreditados junto a este país, mandam avisar: já começou a desmontagem dos tesouros. Eles não dizem nada, avisam só para o seu próprio país. Mas as vezes é para o próprio país começar a desmontagem dos seus tesouros.

Bem, aí o corpo de Santa Catarina de Bolonha foi transferido do altar em que estava novamente para a cripta da Igreja. Igreja grande, forte. E ali esteve depositado durante toda a duração da Segunda guerra mundial, que durou talvez uns cinco anos.

Terminada a guerra, bem consolidada a paz, tiraram de novo o cadáver e recolocaram no altar. Mas uma espécie de parasita escura tinha recoberto completamente o rosto e o cadáver –– ela era italiana, era branca, portanto, –– o cadáver estava completamente escuro. Iam esperar um certo momento, uma estação do ano, enfim, mil circunstancias oportunas para fazerem a limpeza da pele e restituir à pele o aspecto que tinha antes. Tarefa muito delicada. No passar cinco anos com esta espécie de bolor no rosto e tirar o bolor, poderia diminuir, modificar alguma coisa da carnatura já exígua do cadáver. Entra pelos olhos. E modificar alguma coisa da fisionomia. E do modo mais honesto possível, do modo inevitável.

Eu digo isto aos senhores para que os srs. fazendo a interpretação de alguns desses quadros, os senhores saibam entender que o que se diz é muito provável na interpretação das fisionomias, mas pode ser que essas fisionomias tenham ainda sido mais perfeitas e mais excelentes do que estão aí.

Para os muito mais moços, –– os mais velhos sabem o que vou dizer agora, –– é preciso dar mais uma advertência: é que muitos desses santos que nós vamos exibir aqui, visto o seu rosto ou quadros do tempo eles aparecem muito diferentes das estampasinhas que se distribuíam nas igrejas até há algum tempo atrás, não sei se ainda distribuem, representando os santos. São sempre com cor-de-rosinhas, branquinhos, com uma carinha… um raio de luz batendo em cima deles… eles assim assim coisa e tal com três as açucenas aqui na mão e um jeitinho assim… como quem diz: “eu não tenho nada com isso…”

Essas caras não são as que realmente os santos tiveram. Isto é muito feito sob a influência de uma certa tendência espiritual errada, que numa linguagem metafórica entre nós se chama de “heresia branca” e que os senhores, se não sabem, em pouco tempo vão saber, porque a expressão é muito corrente entre nós.

Os srs. podem, então, ficar espantados de ver que esses santos não tinham essa cara de “heresia branca”. Nós fazemos essa projeção para mostrar que não tinham mesmo. E é para dar uma ideia exata do que é a santidade. Então a interpretação que eu vou dar no começo é a seguinte: procurar na fisionomia desses santos os traços em que se encontram os reflexos da santidade. É claro que isso é uma coisa opinativa, pode uma pessoa não sentir aquilo como eu estou dizendo, é opinativo, eu proponho a minha impressão. Ela poderá parecer razoável e aceitável para muitos, mas eu não quereria criar um escrúpulo de consciência, quem não chegou a ver naquela fisionomia o que estou dizendo, está errado, pecou. Não é isso, não se trata disso. Trata-se de uma coisa opinativa que eu proponho para a apreciação de todos. Nessa linha é que nós então vamos ver vários santos aqui e eu vou fazendo a análise dessas fisionomias.

Vem dados biográficos desses santos aqui, não vem? Não? Eu me lembro muito sumariamente dessas biografias. Vamos fazer a coisa com os dados que nós possuímos.

* * *

[Santo Inácio, por Zurbaran]

Antes de dizer qual é esse santo eu chamo a atenção dos senhores para os principais traços dele. Ele é um europeu, mas é um europeu de um país do mediterrâneo. Por ex. é bem evidente que ele não é um sueco. Logo mais eu direi quem ele é. Os senhores notam que ele está vestido com uma batina preta como usavam os padres do tempo dele, século XVI, batina preta muito ampla. Não digo justa, mas adaptada ao formado do corpo humano, muito ampla. Um pequeno colarinho branco como usaram os padres até ao momento em que infelizmente o uso da batina foi abandonado. Os senhores notam que ele usa um barrete. Esse barrete quase todo o clero abandonou também. Os padres da diocese de Campos que são nossos amigos quando vem aqui às vezes usam esse barrete, o Cônego José Luiz nas cerimônias usa esse barrete. É um barrete preto, não sei se os senhores chegam a ver bem, dividido em três gomos de um lado, e de outro lado, simples: representa a Unidade na Trindade de Deus.

A fisionomia é de um homem magro, sem ser magérrimo, com as maças do rosto muito salientes, um nariz aquilino, quer dizer em forma de bico de águia, comprido; a barba é escura preta ou de um castanho muito escuro – a mim me faz mais o efeito de barba preta; o cabelo é preto também, sobrancelhas pretas, olhos pretos e profundamente encovados, quer dizer os olhos estão numa caixa ocular enorme, os olhos são pequenos é muito pouco olho para tanta … a fisionomia, o olhar é muito pensativo e não exprime nem alegria nem tristeza, exprime pensamento, meditação.

E exprime uma segurança enorme, quer dizer é um homem que está inteiramente seguro da verdade que ele medita, está inteiramente seguro da fé que ele abraça. O domínio que ele tem sobre si, para mim pelo menos, se revela em larga medida pela impassibilidade do rosto. A gente tem a impressão que se estourar uma bomba perto dele, se ele não quiser, ele não mostra susto; se ele tiver que pegar uma espada para combater, ele não mostra sanha, mas deve ser um combatente perigoso.

Mas é bem evidente também que ele tem o hábito, muito mais pela condição sacerdotal, hábito de esgrimir com argumentos do que de esgrimir com espadas. E por mais nobre que seja esgrimir com espadas é mais nobre ainda esgrimir com argumentos. É mais nobre porque quem argumenta põe em ação uma propriedade da inteligência; quem esgrime põe em ação uma propriedade que é sobretudo o corpo. Entra algo da inteligência mas é sobretudo do corpo.

O formato da mão, os senhores veem que são dedos compridos, palma da mão pequena, mas um pouco gorda e o formato da mão me causa uma certa surpresa, por ex. o dedo indicador que os senhores veem apoiado sobre uma caixa, um maço de papeis qualquer coisa, a base do dedo indicador, a parte da palma da mão que toca no dedo indicador e do dedo médio é muito saliente, estranhamente saliente, quase gorda por dentro quando a mão não é gorda por fora. Tomem esse dedo aqui, o polegar os senhores vejam essa parte que serve de base para o dedo como é grandona, causa também uma certa estranheza.

Acabam de me dizer, entretanto que o pintor é um dos maiores pintores de seu tempo, e um dos maiores pintores de todos os tempos do mundo inteiro. É um pintor que eu, por um gosto especial, pessoal meu, admiro enormemente. Esse pintor é contemporâneo do santo, evidentemente, se não, não poderia ter pintado a ele e é o famosíssimo Zurbarán.

Eu não chego a distinguir por cima dos livros, dos objetos… ah, é o crucifixo, é verdade, está ali deitado um crucifixo. Os senhores notam um braço e uma parte do corpo sobre a qual há mais luz, a outra parte fica para lá.

Santo Inácio de Loiola, o grande Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus, a qual se deve a primeira e talvez a mais gloriosa e mais eficaz das Contra-Revoluções que é a Contra-Reforma que não se deve exclusivamente aos jesuítas. Todas as grandes Ordens religiosas, ou quase todas, contribuíram de um modo insigne para a Contra-Reforma. Mas Santo Inácio de Loiola foi, entre todos os santos da Contra-Reforma, talvez o mais característico e o que tinha mais o generalato da Contra-Reforma.

Santo Inácio tornou-se famoso pelo seu espírito pugnaz, pela sua penetração política, pela sua psicologia finíssima e pela capacidade que ele tinha de pregar exercícios espirituais extraordinários. Até hoje os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loiola merecem ser feitos, seguidos, são fundamentais para a vida católica. E para dizer tudo aos srs., os vários pontos, o texto dos exercícios espirituais não são de autoria dele mas de uma autoria muitíssimo mais elevada do que dele, embora seja tão grande coisa ser da autoria de Santo Inácio.

Nossa Senhora, Ela mesma, apareceu a Santo Inácio ao longo de um retiro que ele fez numa gruta da Espanha chamada Manresa, Nossa Senhora apareceu a Santo Inácio e ditou a ele os Exercícios Espirituais. De maneira que isso tem um alcance extraordinário. Foi dos livros cuja leitura me causou maior admiração na minha vida. Eu tinha mais ao menos 20 ou 21 anos quando eu li. E o que eu vou contar agora não se deu com nenhuma leitura que eu fiz, nem sequer S. Luiz Maria Grignion de Montfort que foi que em algumas passagens do livro de Santo Inácio, por admiração à lógica – e uma lógica que me levava a toda a sorte de bem e, portanto, me deixava encantado – por admiração à lógica eu chegava a me contorcer de admiração.

Os senhores veem esses vários traços da obra do Santo retratados na fisionomia dele.

Percebe-se ou não que ele é um homem capaz de guardar segredo?

Percebe-se ou não que ele é um homem capaz de fazer no silêncio uma longa e complexa e subtil trama política?

Percebe-se ou não que ele é capaz de fazer e pregar um dos exercícios espirituais incomparáveis? Que graça incomparável a gente assistir os exercícios espirituais pregados pelo próprio Santo Inácio.

Percebe-se ou não nele o homem de um espírito de autoridade invulgar e que exercia sobre os seus religiosos um mando total, que fez da Companhia de Jesus o próprio símbolo da obediência.

Percebe-se ou não que esse mando que ele exercia sobre os outros ele começava por exercer sobre si mesmo, e que é um homem que tem um grande mando de si?

Aí está o grande Santo Inácio de Loiola.

Me parece que ver o quadro de Zurbarán, é bem a feitura de Zurbarán, enriquece a ideia de que nós tínhamos do Santo, mas enriquece a própria ideia de que se tinha da própria santidade. Como é um santo da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, e mais a fundo como é a santidade da Igreja, e mais a fundo como é a santidade de Deus

Bem, se não houver perguntas podemos passar adiante.

* * *

Esta é Santa Gema Galgani. Ela viveu no século passado, ela era italiana, e pertencia a uma espécie de ordem terceira de uma congregação religiosa dos Passionistas. Estes passionistas antes da reforma conciliar eram muito fáceis de reconhecer na rua. Usavam batina preta que era comum a todas as ordens ou quase todas as ordens e congregações religiosas – como também ao clero secular – mas sobre essa batina um coração revestido, feito provavelmente de papelão ou alguma matéria dessas, revestido do mesmo tecido que batina, mas em preto. Mas as beiradas, os contornos do coração eram de alguma matéria, um celuloide, uma coisa assim, matéria branca, era uma bordadura. E dentro, no espaço que ficava livre, estava escrito “Jesu Christi Passio”, Paixão de Nosso Senhor Jesus cristo.

Essa Ordem deu grandes santos para a Igreja. E em São Paulo eles tem uma casa, uma igreja que é contígua ao cemitério de São Paulo. Essa Ordem religiosa tinha uma Ordem terceira. A Ordem terceira – eu digo isto também para os novíssimos – era uma espécie de associação de leigos, até muitos casados, que são admitidos de fazer parte da Ordem, mas sem adotarem propriamente a vida religiosa, não vivem no convento, mas vivem no mundo, e são em geral pessoas que renunciam a toda esperança e todo desejo de carreira, a todo desejo de prazer terreno, e que levam uma vida edificante e piedosa.

Era esta a condição de Santa Gema Galgani que os srs. veem aqui, e que se tornou insigne pelas visões e revelações que ela tinha.

É preciso dizer que o processo de canonização dela revela algo de muito surpreendente. Em vez de ela ser alegria e encanto do convento ela era perseguida e mal vista pelo convento. E mal vista precisamente por causa dessas visões. Os padres desconfiavam que essas visões não eram verdadeiras e a viam com maus olhos. Mas quando ela morreu, depois de uma vida de muita humilhação, de muito sofrimento que ela aguentou nas condições que nós vamos ver daqui a pouco, quando ela morreu, algum tempo depois iniciou-se o processo de canonização.

A opinião dos padres sobre ela era uma opinião errada, ela foi uma grande santa e foi canonizada nas pompas enormes com que a Igreja fazia naquele tempo a cerimônia da canonização.

Agora vamos analisar a fisionomia da santa. É uma fisionomia que impressiona. Não sei se é útil dar primeiro a descrição como fiz com Santo Inácio e depois a análise, ou se se pode dar diretamente a análise. Acho que pode ser diretamente a análise.

Ela impressiona pela harmonia dos traços. Enquanto a fisionomia de Santo Inácio impressionava pela profundidade da reflexão, ela impressiona certamente também pela profundidade da reflexão. Os Srs. notam que alguma coisa do olhar dela está olhando muito para o alto, muito para cima. Tem cogitações que não são cogitações desta terra. Ela tem na fisionomia alguma coisa de extraterreno.

Que ao menos pelo meu modo de ver se faz notar em uma espécie de altivez e pureza angélicas que há nela. A pureza e a altivez se fazem notar no modo pelo qual a cabeça está sobre o pescoço. É uma cabeça que está de pé e que está, por outro lado, inteiramente despretensiosa, não um enfeite, não há nada, o cabelo está apenas arranjado. Ela está apenas, é natural, muito limpa, lavada, mas não tem nada que revele o desejo de enfeitar-se.

O traje é um traje preto, não tem nada que a adorne também. Mas ela tem uma dignidade extraordinária e uma pureza virginal, que se faz notar em qualquer que se faz notar de impalpavelmente resplandecente na cútis. Dir-se-ia que a pele dela tem qualquer coisa de luminoso, como o olhar também. É interessante notar que o olhar parece ligeiramente estrábico quanto a esse olho direito, do lado de cá. Mas isso não desfigura o olhar em nada, o olhar é de uma retidão completa. E não é tanto o olhar de quem, como Santo Inácio – que aliás, teve muitas visões – pensa, um olhar de um pensador, é um olhar da mística que vê. E que está embebida do que vê. E em cujo olhar se pode suspeitar de como é aquilo que ela vê.

Não sei se esta ultima frase está clara? Bem esta então é a grande Santa Gema Galgani.

Chamo a atenção dos senhores para um particular: a firmeza, é a virtude da fortaleza. O que ela quer, quer, porque a fé manda que ela queira. E ela quer mesmo. O que ela quer? Servir a Deus. Servir a Nossa Senhora, servir à Igreja Católica, acabou-se.

E esse rumo ela segue na vida quaisquer que sejam os obstáculos. É uma representação física, corpórea da mulher forte do Evangelho, cujo preço é incomparável e que vale a pena ir até os confins do Universo para encontrar, é como uma pedra rara. Bem, vamos adiante.

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Esse aqui é um santo português. Os senhores vão ficar pasmos, é um dos maiores guerreiros da história de Portugal. Adornado pelo mais belo título que um militar possa usar: Condestável. É o Condestável, bem-aventurado, Nuno Alvares Pereira que ajudou singularmente os reis de Portugal a que rechaçassem as invasões mouras, mas também nas brigas infelizmente numerosas e cujos traços psicológicos não cessaram ainda inteiramente.

Entre Castela e Portugal, dois povos quentes, nessas lutas lutou também contra os castelhanos e narra a história portuguesa, creio eu que com toda veracidade, que ele levou vitórias brilhantes.

Ele teve vários fatos místicos na vida dele. Era um grande místico e era um batalhador que ia na frente de seus guerreiros. Não eram desses generais de ministério que ficam a não sei quantas léguas do campo de batalha, mandando telegramas e comunicações telefônicas: “vá para a frente, vá para traz”. E depois pára para tomar um sorvete.

No fim da vida dele, ele resolveu, ele casou-se, teve filhos, foi marido e pai exemplar, terminadas as guerras e visto que estavam expulsos os mouros de Portugal e visto estava aberto um longo período de paz com Castela ele pediu licença ao rei e fez-se religioso, e entrou para a Ordem do Carmo. Mas como ele não tinha estudos, entrou como irmão leigo da Ordem do Carmo. E era porteiro, ele, o grande Condestável que Portugal inteiro venerava, ele entrou como porteiro e fazia os serviços mais simples, atendia à porta, arranjava dinheiro para um mendigo, entregava uma carta a alguém que passou lá para pegar. Serviço de partaria como… aliás, os senhores conhecem, porque nos seus eremos e camáldulas a portaria é isso mesmo. Provavelmente lavava chão etc., etc.

Entretanto os reis de Portugal posteriores a ele descendiam dele. Porque a dinastia de Avis que reinava então, se extinguiu. E foi a casa dele que subiu ao trono. Dom Luís e Dom Bertrand descendem dele. A casa real de Portugal descendia dele e portanto a casa imperial do Brasil que descende da casa real de Portugal.

A fisionomia do homem: Espanta pela decisão. Olhos pequenos que aliás não é frequente em português. Os portugueses e nós brasileiros, descendentes deles, temos habitualmente os olhos pelo menos de tamanho médio. E é frequente termos os olhos grande. E o que seu estranho nos olhos dele, um pouquinho amendoados. Não me parece, debaixo deste ponto de vista, um tipo muito português. O resto do rosto, sim.

O nariz comprido tem assim uma certa subtileza. Olhar tem muita vida e é um olhar com um certa… enquanto o rosto todo exprime muita decisão, o olhar exprime a capacidade de tomar posições rápidas, fulminantes. E de pegar surpresas. Com a devida reverência, porque o que eu vou dizer é, nos meus lábios, um elogio a ele, esses olhinhos não me enganam. Eu não tive tempo de consultar livros a respeito da autenticidade desse quadro, quer dizer se esse quadro foi pintado em nossos dias ou é uma tela, um azulejo do tempo dele, mas se foi pintado sem ter conhecido a ele ou sem inspirar-se em documentos dele, é preciso dizer que o artista é um artista possante, porque deu a ele exatamente a fisionomia que corresponde à sua vida, o que eu considero uma obra prima para um pintor.

Bem meus caros está pronto vamos para a frente.

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A fisionomia pode espantar os senhores, os senhores notarão que ela está com o cabelo adornado de rosas, que os adornos se multiplicam também no vestido. É um vestido muito enfeitado. Ela tem um certo decote, com pudor e uma jóia, é uma espécie de correntezinha provavelmente de ouro, com uma pedra preciosa de um tamanho apreciável. O cabelo é um cabelo intencionalmente solto, quer dizer é da moda do tempo usar os cabelos soltos, e um pouco como se estivessem esvoaçando e dando a ideia de que a grinalda de rosas servia para conter o cabelo.

Ela era, também ela, uma grande mística do século XV, Santa Madalena de Pazzi.

Essa apresentação se explica porque ela antes de se tornar uma pessoa inteiramente recolhida e entregue a vida religiosa, era uma pessoa de família nobre e trajava trajes do gênero dos que a nobreza usava no lugar onde ela nasceu e onde ela viveu que era um pequeno lugar da Itália, chamado Pazzi. Era Santa Madalena de Pazzi.

Na organização política da Itália daquele tempo, havia um número muito grande de pequenas cidades independentes. Ou eram cidades que eram pequenos principados, pequenas monarquias, ou eram repúblicas aristocráticas dirigidas pela nobreza, ou eram republicas democráticas dirigidas pela burguesia com participação do voto e todo o povo.

Mas de qualquer forma essas pequenas cidades eram todas independentes e tinham, portanto, uma alta noção de sua própria importância. Porque aquele que é independente, por pequeno que seja, põe a cabeça em cima. E aí se compreende que as damas da cidade se vestissem, pelo menos em ocasiões festivas, com esta gala.

Agora entra a análise da fisionomia dela. Se bem que ela tenha o rosto de um tamanho normal, os senhores veem até traços finos, o oval do rosto muito pronunciado, o nariz comprido, talvez comprido um pouco demais, mas fino, de um desenho fino. O desenho das sobrancelhas fino também, os olhos grandes, o todo do rosto é um todo aristocrático. Por exemplo, não se poderia dizer isto há pouco de Santa Gema: não era uma proletária, não. Mas era visivelmente uma pessoa da pequena burguesia. Essa não, é visivelmente uma pessoa de uma aristocracia boa para um lugar pequeno como Pazi. Mas nela tudo se eclipsa e a gente olha para o ponto central que eu deixei para o fim: são os olhos.

Olhar escuro, como é frequente na Itália, boca muito bem desenhada; olhar escuro, como é frequente na Itália e cheio de vida e cheio de reflexão, cheio de seriedade. Uma seriedade que vai de par com uma real bondade, mas é uma seriedade que não está voltada para os assuntos terrenos, é uma seriedade que só se tem quando se pensa nos assuntos celestes.

E o todo tem a ligeireza, a leveza de uma virgem. A seriedade, a pureza, a finura de pensamento, a religiosidade profunda do olhar, aristocratismo do todo, se aliam bem. Porque as qualidades aristocráticas são qualidades terrenas, não são qualidades necessárias para um santo, mas está na índole da Igreja Católica que ela toma todas as qualidades de um homem ou de mulher, – de uma criatura humana – quando são qualidades meramente terrenas e que não visam, não se relacionam necessariamente com a santidade – um santo pode perfeitamente não as ter e ser um grande santo – sem embargo disso, quando essas qualidades existem num santo, elas tomam um brilho especial.

Assim por exemplo um homem não tem obrigação nenhuma de ser um grande intelectual para ser um santo, mas quando é um intelectual na força do termo, não um “ploc-ploc” [mentalidade geométrica, n.d.c.], mas um grande intelectual como foi Santo Inácio de Loiola, aquela qualidade terrena brilha nele com o brilho da santidade. Embora haja santos que foram notáveis pela não inteligência, como o famoso São José de Cupertino, do qual um dia eu falarei aos senhores se Deus quiser.

Então não confundamos isso com a santidade, mas notemos este predicado próprio da santidade. Os traços que não são necessários ao santo, quando existem no santo a santidade os eleva. E isto tudo brilha em santa Madalena de Pazzi.

Para frente.

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A fisionomia também a meu ver também é toda marcada pelo olhar. Os traços são comuns, regulares, não dizem nada de especial. Os senhores notam o bigodinho, muito fininho, ele fazia a barba de maneira a raspar natural do bigode e só deixar aparecer esse bigodinho. O que devia ser costume do tempo, com certeza.

Uma certa barba, provavelmente aparada, cobrindo quase todo o rosto; caixa ocular bem feita, com uma certa profundidade, mas nada de extraordinário; nariz comum; sobrancelhas comuns; testa comum; carnadura comum; uma cara comum. Olhem para os olhos: tudo sai do banal por causa desses olhos. Obscuros, profundos, meio pensando e meio vendo, meio místico e meio teólogo; pensando, pensando, pensando em alguma coisa muito alta que o toma inteiro. E a altitude de alma, a força de alma dele é verdadeiramente extraordinária.

Quem foi ele? São João de Deus.

Fundador se não me engano de uma Ordem Hospitalar famosa, e como tal, um dos homens mais conhecidos de seu tempo. Se não me engano também século XVI. Eu não tive tempo de verificar isto antes de vir cá.

Pintura de qualidade excelente. O que se deve dizer quando se vê uma cara dessas? Comparar com as fisionomias que nós encontramos na rua. Cara comum é um direito de cada um de ter. Ninguém pode ser increpado de ter cara comum. Quanta cara comum encontramos na rua. Não podemos desprezá-los por causa disso. Mas esse olhar, onde é que os senhores encontram na rua? Vão aos novos templos do mundo capitalista moderno, são os bancos, atrás do guichê, pagando cheques, na sala da gerência, na sala dos diretores é isto que os senhores encontram?

Vão aos jornais é isso que os senhores encontram ? Vão onde quiserem, aos aeroportos, são esses os pilotos que os senhores encontram? Entretanto que segurança voar num avião quando a olha para a cara desse piloto! Assim os sr. veem o trabalho na graça tomando um homem que provavelmente foi comum e fazendo dele uma grande alma, e através dele, uma grande obra.

É meia-noite… temos um pouquinho de tempo ainda. Vamos ver um ou dois.

* * *

São Felipe Neri. Se não me engano sec. XVIII, se não for, certamente foi XVII. Fundou não propriamente uma Ordem religiosa, mas uma espécie de federação de religiosas que se chamava Oratório. Eram grupos de padres que moravam juntos, não tinham os três votos: pobreza, obediência e castidade, mas moravam juntos e que se sujeitavam a um certo regulamento comum. E ele um grande pregador, um grande orador sacro e um grande teólogo. Conhecia eximiamente a doutrina católica.

Essa obra que ele fez, que espalhou-se por toda a Europa. Mas ele foi muito perseguido e por quem? Perseguido em grande parte pelo clero do tempo dele. Eu me exprimi sem a clareza necessária: Perseguido por boa parte do clero do tempo dele. Mas não só do clero do tempo dele, mas também gente que não pertencia ao clero e que antipatizava com a excelente orientação espiritual que ele dava aos sacerdotes; e através dos sacerdotes, aos jovens e às pessoas em geral que procurassem os padres ditos oratorianos.

Uma das grandes figuras do oratório, quase em nossos dias, foi o famoso Padre Faber, inglês, convertido do protestantismo, e que lutou magnificamente contra o protestantismo, e que foi um grande propagador da obra de São Luiz Maria Grignion de Montfort.

Nossos integrantes do bureaux da Inglaterra com frequência vão comungar na igreja dos padres oratorianos de Londres, que é uma das mais bonitas, austeras e nobres igrejas católicas da cidade de Londres.

Qual é a acusação que faziam a ele? Diziam dele que ele fazia uma seita. Os senhores veem que não é novo o mundo. Os senhores veem aqui S. Felipe Neri já idoso, barba inteiramente branca, sobrancelhas ainda pretas, com a cara de um homem que lutou muito, que ainda está na luta, e que está olhando atento e desconfiado para um adversário invisível para nós, mas que ele estava vendo e que ele divisava ao longe.

Dir-se-ia que ele estava percebendo formar-se uma trama a certa distância dele, e que ele estava pensando na argumentação para dar contra, e na rasteira para passar [no] pessoal que avançava contra ele.

O caráter de luta é dado, a meu ver, não tanto pelo olhar que dá muito ideia de vigilância e de pugnacidade, mas pelo formato contorcido das sobrancelhas. Dir-se-ia que de tanto franzir as sobrancelhas ele ficou com aquela forma singular de sobrancelhas que está ali. Como um guerreiro que carrega as características da guerra, assim também as sobrancelhas que haja nele carregavam o traçado de profundas preocupações. Mas se o olhar é vigilante toda atitude do rosto é plácida, é a firmeza do guerreiro católico que tem coragem.

Pode passar.

* * *

Um dos maiores pregadores da Igreja do Oriente, mas católica, antes do cisma da IO. São duas representações do mesmo santo. Crisóstomo quer dizer boca de ouro. Ele pronunciava sermões tão esplendidos, de uma tão grande eloquência, que o chamaram São João Crisóstomo.

A atitude dele e esse modo de representar um santo, é profundamente diferente das representações dos santos que os senhores viram até agora. Os santos que os senhores viram até agora são santos da igreja do Ocidente e representados por artistas do Ocidente. E o artista do Ocidente tinha o mais possível a preocupação de representar no santo a fisionomia dele como foi. É uma preocupação artística que precedia a fotografia. Havia o anseio da fotografia nessa pintura, o anseio de pegar a realidade e apresentar tal qual era.

Esse anseio estava, mas estava apenas de algum modo nessa escola artística da Igreja do Oriente em que a fisionomia está expressa, a atitude corpo também, mas a preocupação é apresentar uma atitude hierática, impassível, estática e sagrada de quem já está mais no céu do que na terra.

E de quem está tão alheio às coisas da terra e tão voltado para as coisas do céu que esta por assim dizer com uma imobilidade que já participa da eternidade. Mas não tem dúvida nenhuma que a noção de santidade se desprende também daí de um modo possante e que a Igreja católica aprova este sistema de arte como aprova o nosso do Ocidente, e conserva as representações desta época como obras de arte preciosas e obras de piedade insignes, que se encontram em igrejas do Ocidente, como se encontram em igrejas católicas apostólicas romanas do Oriente. Como infelizmente a IO levou consigo na sua apostasia.

Esse é o grande São João Crisóstomo.

* * *

Quando eu vi pela primeira vez esta fisionomia eu levei um susto de o ver dentro da batina e com esse chapéu, esse barrete de padre, que eu já descrevi aqui, e no qual como a representação da pintura é muito nítida, os senhores notam de um lado os três arcos. Os srs. veem dois aqui, mas percebem que há um atrás. E depois aqui os srs. percebem que não tem nada. O lado de lá representa a Unidade de Deus; o lado de cá representa a Trindade de Deus. É um lindo símbolo da Igreja.

Ele viveu no século XIX e se chamava São José Benedito Cottolengo.

A supressa que eu tive de vê-lo assim foi porque a cara dele, a fisionomia dele é tão positiva, representa um homem com um olhar tão lúcido tão inteligente, um tal capacidade de tocar as coisas, manejá-las, de fazer ir para a frente, uma tal resolução e tanta diplomacia  –  a meu ver ele é tão diplomata, que se diria que era um diplomata que fantasiado de padre.

Não sei se os senhores notam, por exemplo, no rosto cheio, a decisão e o que ele quer ele quer. Mas no olhar vivo, olhos de um tamanho médio dado para grande, um olhar vivo o desenho tão nítido do olhar, a vitalidade do olhar exprimindo tanto a resolução e a faculdade de fazer aquilo que os ilustres e inteligentíssimos patrícios dele, italianos, chamam “fare delle combinazzioni”. Vários dos srs. sabem o que é isso, fazer combinações de toda ordem, políticas de toda ordem. O ar combinante me parece saliente aí. Mas de outro o tipo resoluto: “vamos para a frente, qualquer complicação eu derrubo, está acabado”.

Esse talento todo foi aplicado por desígnios da Providência para uma obra de caridade das mais insignes que há na história da igreja em Turim e eu tive a ocasião de visitar essa obra de caridade. Chama-se Il Cottolengo porque o nome dele se tornou tão famoso em Turim e ele era um homem tão prodigioso que passou o nome para a obra. Aquilo se chama Il Cottolengo.

O que é “’Il Cottolengo”? Ele formou a resolução, inspirado para a graça, a resolução de aceitar absolutamente todos os pobres que se apresentassem, desde que fosse um autêntico pobres e não fosse desse tipo de falso mendigo que encolhe o braço, que toma ar de não sei o que, para parecer aleijado e pedir esmola. Desde que fosse um autêntico pobre, ele recebia, tivesse ou não tivesse dinheiro; viesse donde viesse. Ele poderia dizer –– Turim era naquele tempo capital de um reino que depois ficou à testa do reino da Itália quando toda a Itália se uniu, era o reino do Piemonte –– ele poderia dizer: eu só recebeu pobres do Piemonte, são tantos, que eu não dou conta… os outros vão encontrar outros sacerdotes caritativos nos seus países para os atenderem, aqui não vai! Ou é piemontês ou fica de fora.

Poderia mesmo dizer: ou é torinense ou fica de fora. Estaria no direito dele. Ele recebia de toda a parte e de qualquer jeito.

Com isto de estranho: Havia uma determinação de Nossa Senhora a ele que ele não podia nunca guardar dinheiro de um dia para o outro. Quando anoitecia –– Nossa Senhora queria isso dele –– ele era obrigado a sair, pessoalmente, ou mandar algum dos padres dele sair à rua e dar para pobres, etc. enfim, –– para gente que ele sabia que vivia nesse lugar, naquele, eram necessitados, mas viviam na própria casa –– dar o dinheiro e não trazer nada para casa, porque se por inadvertência ficasse uma moeda dentro do hospital dele, ele não conseguia dormir.

E por causa disso, quando ele não conseguia dormir, ele dizia de si para consigo: devo ter algum dinheiro guardado na minha escrivaninha.

O uso de bancos era raro naquele tempo e ele não fazia. Ele tinha o dinheiro guardado consigo. Mas no meio de papeis ou entre livros, qualquer coisa, “deve ter ficado algum dinheiro”. E punha-se a procurar e encontrava, mandava distribuir esse dinheiro e aí quando o dinheiro saía de dentro do hospital ele conseguia dormir .

Vejam que isto para ele era inteiramente indispensável, porque ele era o perfeito desta verdadeira cidade da dor e da consolação que era um Hospital Cottolengo.

Bom esse Hospital foi crescendo tanto que acabou formando uma espécie de cidadezinha dentro de Turim. E ele passava o dia inteiro dirigindo o hospital, atendendo, confessando e formou padres, instituiu uma espécie de congregação religiosa etc. À noite ele se recolhia e aí com frequência Nossa Senhora aparecia a ele. Tinha duas peças, dois quartozinhos que constituíam –– vamos chamar isso de apartamento dele dentro do conjunto monumental de prédios que foram esmolas obtidas por ele –– foram construídas assim: eram duas saletas, uma que tinha a cama dele muito modesta, e outra que tinha o escritório dele em que provavelmente eu presumo ele recebia gente. Era uma mobiliazinha francamente pobre de madeira, não vi almofada, não vi forro, não vi nada. Era um sofá, se não me engano, uma poltrona junto a uma mesa também muito pobre, muito comum, e mais uma ou duas cadeiras, uma coisa assim. Numa das cadeiras que se identifica até hoje, nas aparições mais demoradas, Nossa Senhora sentava para falar com ele.

Esse santo, de tão grande altura, teve, entretanto, um amigo à altura dele, que teve uma grande obra com uma finalidade afim, mas diversa, que era de tratar de meninos pobres: foi S. João Bosco. Os dois eram muito amigos e se inter-consultavam e inter-orientavam mutuamente, embora as obras deles fossem diversas. Mas eram, uma e outra, obras voltadas para a pobreza.

Eu chamo a atenção dos senhores para o seguinte: eram obras de caridade. É precisamente o que o comunismo detesta. Marx deblatera contra a caridade. Ele diz que a caridade é um auxílio que uma pessoa que tem presta à que não tem; e que, portanto, traz consigo a ideia do ter e do não ter; e, portanto, é uma ideia anticomunista; e que o verdadeiro não é o que tem dar espontaneamente para o que não tem, mas o que não tem arrancar do que tem, usando a violência. Esse é o cântico do santo: eu acabo de mencionar o arreganho, o ronco do demônio.

Meus caros os senhores viram o número suficiente de santos. E nós podemos deixar largamente encerrada a reunião que eu só não terminei antes por certo escrúpulo de abreviar uma meditação piedosa, por trabalhos que tenho de fazer, entre os quais o “despachinho”… Agora está acabado.

(Fatinho)

O Sr. me pede a descrição do indescritível. Quer dizer, a fome eucarística. O que sente uma alma quando ela não pode comungar?

A gente comunga e parece não sentir nada, pode ser comunhão completamente feita na aridez. O que é então a fome eucarística? … naquele dia a alma não teve alguma coisa que queria.

Uma das descrições bonitas de fome eucarística que eu vi foi dada pelo Cardeal Mindszenty nas memórias dele. Para os novíssimos também, eu explico quem é. Ele era Arcebispo de Esztergom na Hungria e era cardeal da Igreja Católica e um herói na luta contra o comunismo. Quando o comunismo tomou conta da Hungria ele foi preso e foi processado num processo bárbaro e foi condenado à prisão e permaneceu na prisão muitos anos, –– não me lembro bem, mas se minha memória não me trai, é alguma coisa que caminhava para 10 anos –– com provações terríveis na prisão. Por exemplo, essa: Ele queixou-se de certas dores, de certos incômodos etc., ele conta nas memórias dele –– e o pessoal da direção da prisão que não queria que ele morresse, queria maltratá-lo, mas não queria que ele morresse, porque seria muito contrário à propaganda comunista que ele morresse nas garras do comunismo, não disse nada a ele. Mas uns dias depois aparece um médico, entra lá e diz a ele o seguinte:

Eu sou russo, sou médico e sou mandado pelo soviete supremo, enfim, por tal organização assim, e eu venho aqui para tratar de você –– você, nada de Vossa Eminência, nem nada –– para diagnosticá-lo e curá-lo, e, portanto, virei de avião da Rússia “x” vezes por semana, não lembro mais, vou examiná-lo. Também não pergunta se quer examinar, nem nada, porque prisioneiro é escravo, recebe a notícia de que vai ser examinado e não tem nada que discutir. E venha cá, vou examinar.

Examinou e disse: o seu caso é de tuberculose adiantada, eu vou tal, tal tratamento e vou dar tal, tal injeção. Ele não comenta, mas na realidade a gente vê que ele não sabia se aquilo era verdade e se não era mais bem um pretexto para matá-lo, para dizer que morreu de tuberculose. Mas ele não tinha discussão possível. Ela dava a injeção e acabou-se.

Quando chegava a noite – e a noite na Hungria o inverno chega muito cedo, são noites muito longas – quando chegava a noite ele tinha que se deitar na cama incômoda e fria que era dada aos prisioneiros. Ele tinha uma cela só para ele. Não podia conversar nunca com ninguém porque não tinha com quem conversar e quem entrava para levar comida para ele não falava com ele.

Deitava-se à noite, e ninguém dorme toda uma noite de inverno na Hungria – são horas e horas e horas – ainda mais ele que era um homem aflito, preocupado e já de uma certa idade em que o sono ia escasseando, mas ficava obrigado a ficar no escuro. Não podia ler. E também não podia ter, por maior que fosse o frio, não podia ter as mãos por debaixo da coberta podia ocultar alguma arma ou algum instrumento de suicídio, de que ele fizesse uso durante a noite. De maneira que de em vez em quando ele estava dormindo e o guarda entrava à noite para ver se as mãos estavam de fora da coberta… porque é instintivo, a gente não se dá conta, as vezes põe embaixo da coberta, ora tira, não há remédio.

Então, acordava, mandava tirar a mão, ou ele próprio tirava a mão com brutalidade e saía. Assim ele viveu, se não me trai minha a memória perto de dez anos, talvez mais, na prisão.

Ele contou que vagueando pelo quarto dele, um dia ele encontrou sobre uma cômoda, um minúsculo cálice com vinho e um pedacinho pequeníssimo de pão. Entendeu que alguém teve pena dele e na hora de levar a comida para ele, deixou com perigo de sua própria vida, deixou o cálice de vinho e o pão ali para ele entender o que era. Ele nem tinha certeza de que tinha notado isso no próprio dia. Quando ele viu, ele imediatamente celebrou a missa. Mas o que a missa tem de essencial: consagrou o pão e o vinho e comungou!

Mas gente vê a respiração de alma dele de ter celebrado missa e comungado. A gente sente a fome eucarística dele. Aí está um exemplo do que a fome eucarística possa ser.

Meus caros, está terminado, vamos rezar.

Salve Regina…

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