Legionário, N.º 423, 20 de outubro de 1940
A festa de Santa Margarida Maria [Alacoque], que a Igreja Universal celebra hoje, trouxe-me à memória um fato antigo, que não é sem interesse para os dias que correm.
Quando viveu na França a humilde visitandina à qual o Sagrado Coração de Jesus fez suas tão suaves confidências, reinava Luís XIV, que a admiração universal consagrou com o título de Roi-Soleil.
Este epíteto correspondia à realidade. Dizia Mazzarino, que vivera na sua mais absoluta intimidade, que havia nele estofo para cinco reis. Tanto do ponto de vista físico como moral, representava Luís XIV o tipo clássico daqueles reis de fantasia, com que certos contos costumam deslumbrar as imaginações infantis.
De uma formosura viril e majestosa, acentuada por uma perfeita nobreza de porte e de gestos, e por uma indumentária admiravelmente escolhida, foi ele o modelo supremo dos gentis-homens de seu tempo. As qualidades de inteligência e caráter estavam à altura desse físico magnífico. Sua inteligência era clara, vasta, metódica e idealmente equilibrada. Sua vontade dotada de tal força imperativa, que dobrava quaisquer obstáculos. De um soberano domínio sobre si, não se permitia ele em manifestações extremadas de cólera, de prazer ou de dor. Pelo contrário, todos os acontecimentos o encontravam sempre igualmente sereno, igualmente grande, igualmente sobranceiro. De tal maneira sua índole se havia conformado com as obrigações de “métier” de Rei, que o protocolo era, nele, como que conatural, e até mesmo as suas ações as mais triviais denotavam a alta noção que ele tinha de sua dignidade e de seus deveres.
Quando Deus dá a alguém qualidades naturais singularíssimas, de qualquer natureza que sejam, impõe-lhe implicitamente responsabilidades onerosas.
Conta-se que os PP. Jesuítas, que foram educadores de Voltaire, impressionados com a inteligência do menino, costumavam dizer que ele seria ou um Santo, ou um demônio.
Luís XIV era uma dessas almas privilegiadas que Deus chama a grandes realizações, e que, por isso mesmo, estão na eminência de descambar pelos mais profundos abismos, caso não correspondam à própria vocação. Se ele tivesse querido ser um novo São Luís, é provável que a Revolução Francesa não tivesse explodido, que a pseudo-reforma protestante tivesse sofrido desastres irreparáveis, e que o curso da História, em lugar de correr pelos precipícios por onde vai, tivesse assumido orientação inteiramente diversa.
Mas Luís XIV não quis ser um novo São Luís. Sensual, ávido de prazeres, ambicioso e vaidoso em extremo, sacrificou à sua lascívia e ao que ele supunha ser sua glória, tempo, recursos e prestígio que Deus lhe havia dado para fim inteiramente diverso. Depravando o Reino por seu mau exemplo, provocando guerras com o único intuito de dilatar seus Estados, desunindo entre si as potências católicas então ameaçadas pelo alastramento do protestantismo, e aliando-se com os próprios muçulmanos contra o Santo Império, faltou ele a seus mais elementares deveres de Rei, e mereceu a censura, em seu tempo, de todos os franceses verdadeiramente católicos mesmo entre aqueles que lhe eram mais fielmente devotados.
Manda, entretanto, a justiça que se acrescente que a vida do grande Rei teve altos e baixos, e que, se em certo sentido ele faltou gravemente a seus deveres para com a Igreja, em outro sentido, lhe prestou assinalados serviços, entre os quais figura com destaque a sapientíssima revogação do Edito de Nantes (…).
Não obstante tudo isto, o certo é que o Rei não desempenhava aquela missão providencial à qual, evidentemente, fora chamado por Deus.
Santa Margarida Maria Alacoque
Intervém aí a humilde Visitandina. Em revelação, o Divino Redentor mandou-lhe dizer ao Rei que se consagrasse, e bem como o Reino, ao Sagrado Coração. A comunicação foi feita em tom imperativo, e deixava ver claramente que a recusa do monarca acarretaria para ele e para a França os mais severos sofrimentos.
Evidentemente, o Sagrado Coração de Jesus não desejava de Luís XIV apenas uma consagração “pro forma”, mas uma consagração real, que implicasse na renúncia a todos os pecados e todos os erros do Rei.
Por meio de uma pessoa da nobreza, com quem tinha relações, Santa Margarida Maria fez chegar a comunicação a Luís XIV, que, entretanto, não lhe deu importância, e a consagração não foi efetuada.
Recusada assim essa providencial fonte de graças, o Reino foi descambando cada vez mais pelos abismos da impiedade e da libertinagem, até que o extravasamento destes males, isto é a Revolução Francesa, veio lançar por terra o trono dos Bourbons, e atear pelo mundo inteiro o facho diabólico e incendiário do espírito de rebeldia.
Entretanto, não se sabe se a recordação do recado de Santa Margarida Maria perdurou na família de Bourbon, ou se o fato que passamos a narrar foi devido a um mero movimento de piedade expontânea de Luís XVI. O que, de qualquer modo, é certo, é que, entre os papéis do Rei, encontrados em sua miserável prisão do Templo, se achou uma nota em que o desditoso soberano prometia a Deus que se consagraria, e a toda a França, solenemente, ao Coração de Jesus, o que desde logo, em forma privada, ele fazia no cárcere. Assim, dizia ele, seria de esperar que o Coração de Jesus arrancasse a França aos horrores da Revolução.
O piedoso e infeliz monarca fez, pois, no cárcere, o ato de piedade que seu poderoso antecessor se recusara a fazer nos esplendores de Versailles. Mas ao que parece a hora da misericórdia já tinha passado, e já era tarde para deter o curso da justiça divina.
Luiz XVI, pessoalmente, teve sua recompensa com a graça de morrer de modo edificante, chegando alguns a afirmar que foi mártir. Conta-se que, ao subir ao patíbulo, o carrasco quis amarrar suas mãos com cordas, ao que o Rei se recusou terminantemente, originando-se daí um ligeiro início de luta física entre ambos. O Rei voltou-se, então, para seu confessor, perguntando-lhe o que dizia a isto. A resposta do sacerdote foi pronta: “Se Vossa Majestade se deixar amarrar, sua morte terá mais um traço de analogia com a do Salvador”. Imediatamente, a resistência da vítima cessou. Daí a pouco, sua cabeça tombava sob a lâmina da guilhotina, e o Sacerdote que o acompanhava exclamava: “Filho de São Luiz, subi ao Céu”.
É possível, realmente, que a hora da misericórdia tivesse passado. Não porém, de modo definitivo. A França tem tido por demais Santos, de lá para cá, para que se afirme que a hora da misericórdia de Deus passou para ela. Hoje mesmo, quando a França está imersa em luto profundo, e uma metade de seus filhos já não reconhece a outra, na desolação do panorama contemporâneo, se pode afirmar entretanto que há Santos. Santos verdadeiros. Santos autênticos, vivendo na penumbra em território francês, e preparando por suas penitências, por suas orações, por seu trabalho, a grande França de amanhã, que não será nem a França liberal de ontem, nem a França totalitária de Vichy, mas a França católica, de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Enquanto na Europa os legisladores reformam (?) as instituições, os militares reformam (?) as fronteiras, os banqueiros reformam (?) a economia ao sabor das heresias de hoje, na penumbra os Santos reformam as almas e, pela reforma autêntica da almas, destruirão a falsa reforma das instituições e da economia.
Não é outro o sentido da obra dessa grande e santa Thereza Neumann, que a Providência plantou como uma flor de esperança e de consolação, na tristeza acabrunhadora que cobre com seu manto pardacento a Alemanha de hoje. São as almas como Thereza Neumann, as grandes vencedoras de homens como Hitler. Certamente, Thereza Neumann não é a única na própria Alemanha, e não faltam na França almas como a dela…