A amargura da existência caótica do homem moderno: monumental documento do Papa Pio XII (de 22 de dezembro de 1956)

“Catolicismo”, nº 87, março de 1958 (págs. 1 e 2 ) e nº 88, abril do mesmo ano (pág. 4)

A Mensagem de Natal do Santo Padre Pio XII, pronunciada no dia 22 de dezembro de 1956, constitui profunda e sábia meditação sobre as catástrofes do materialismo e do tecnicismo em nossos dias.

Considerando a crise espiritual por que passam tantas pessoas a quem se tornou patente a desordem cruel e trágica do mundo hodierno, com repercussões como que cósmicas, o Sumo Pontífice afirma a ordem e a harmonia da criação, a dependência desta ordem natural em relação ao reino de Verdade e Graça instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo, e a causa essencialmente religiosa e moral dos males atuais.

A tradução integral dessa alocução foi feita com base no texto do “Osservatore Romano”, edição em língua francesa, de 27 de dezembro de 1957. Os subtítulos são de autoria desta redação (de “Catolicismo”).

Certos leitores de nosso jornal (“Catolicismo”) têm estranhado nossas reservas, quando não nossa clara censura, em relação a muitos e muitos dos aspectos técnicos da vida moderna. De outro lado, têm notado também com algum desprazer nossa apreensão diante das catástrofes a que esse tecnicismo nos conduz.

O Santo Padre Pio XII, reafirmando com toda a clareza que o progresso técnico é um bem, e não um mal, mostra entretanto, com admirável precisão, os verdadeiros desastres que esse mesmo progresso, “in concreto”, como historicamente se produziu, acarretou em muitos setores.

Estamos certos de que o luminoso ensinamento de Sua Santidade dissipará a tal respeito muitas dúvidas e objeções.

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“A amargura da existência caótica do homem moderno”

Mensagem de Natal do Santo Padre Pio XII aos fiéis e aos povos do mundo inteiro, pronunciada no dia 23 de dezembro de 1956

Introdução

  1. O Natal de 1957 e o primeiro Natal

“‘Leva, Jerusalem, oculos tuos, et vide potentiam regis; ecce Salvator venit solvere te a vinculo. – Eleva os olhos, Jerusalém, e vê o poder do Rei: eis que o Salvador vem livrar-te de teus grilhões` (Brev. Rom., 2ª feira da 1ª semana do Advento, ant. do Magnif.). Este convite maternal da Igreja, de elevar os olhos para o Céu a fim de esperar dele o Deus Salvador, e com Ele a supressão das desarmonias que entravam as almas, Nós desejamos vo-lo repetir, caros filhos e filhas do mundo católico, como saudação paternal nesta festa de Natal que encontra os homens com os olhares levantados para o alto, sem dúvida, mas com o coração gravado pela angústia, em virtude da incerteza que pesa sobre a sorte da família humana e de sua própria morada terrestre.

“Não foi assim que os pastores de Belém e os Magos do Oriente perscrutaram os céus, quando aos primeiros apareceram os Anjos e aos outros se mostrou a estrela misteriosa, anunciando o nascimento do Filho de Deus sobre a terra. Um profundo assombro lhes invadiu as almas ante a nova e o espetáculo das ‘Magnalia Dei` (At. 2, 11, I Pedr. 2, 9), das grandes e maravilhosas empresas de Deus que atingiam o ápice e a perfeição de toda a grandeza possível nessa tenra Criança, nascida na cidade de David, envolvida em pobres paninhos e repousando numa humilde mangedoura (cfr. Lc. 2, 12). Seu assombro, entretanto, nada tinha de comum com a estupefacção e a depressão que habitualmente provocam as grandezas terríveis, mas mudou-se em doce reconforto, em paz inefável, em tranqüilizadora harmonia, tais como só Deus as pode difundir nos espíritos dos homens que O procuram, O acolhem e O adoram.

  1. Os que não compreendem o Natal por mesquinhez de espírito

“Todavia, diante do evento inaudito da vinda do Verbo Divino ao mundo, diante deste fato que ultrapassa todos os outros na história do gênero humano, e merece portanto a mais alta admiração, nem todos os homens se inclinam para adorar, prisioneiros que são, por assim dizer, de sua própria pequenez, e quase incapazes de imaginar os recursos da grandeza infinita.

  1. Os que não compreendem o Natal porque o progresso técnico os deslumbra

“Outros, contemplando o vasto desenvolvimento da ciência moderna, que estendeu o conhecimento e o poder do homem até os espaços siderais, como que fascinados e cegos pelos resultados que obtiveram, não sabem admirar senão as ‘grandezas do homem`, e fecham voluntariamente os olhos às ‘grandezas de Deus`. Ignorando ou esquecendo que Deus está ainda mais alto do que os próprios céus e que seu trono repousa sobre o cume das estrelas (cfr. Job 22, 12), eles não percebem mais a verdade e o sentido do hino cantado pelos Anjos sobre a gruta onde se manifestou a suprema grandeza divina: ‘Gloria in excelsis Deo`; são pelo contrário tentadoa a substituí-lo por um ‘Glória na terra ao homem`, ao homem que inventa e realiza tantas coisas, ao ‘homo faber`, como o chamam certos filósofos, porque revelou sua grandeza nas obras que aparentam sobrepujar toda medida humana.

  1. Chegou o momento de se moderar o entusiasmo pela técnica

“E’ chegado o momento de reconduzir a suas justas proporções a admiração do homem moderno por si mesmo. Temperando com sábia moderação esta espécie de embriaguez que suscitam as conquistas modernas da técnica, os admiradores do ‘homo faber` deveriam persuadir-se de que, ao se deterem com admiração e em atitude de adoração diante do presépio do Deus Menino, eles não retardariam sua marcha para o progresso, mas a coroariam com a perfeição do ‘homo sapiens`.

  1. As esperanças do Natal e o pânico da técnica

“Este homem, com efeito, ao mesmo tempo ‘artesão` e ‘espiritual`, reconhece facilmente que tudo o que Deus faz e manifesta no mistério de Natal ultrapassa incomparavelmente toda força, energia e eficácia humanas, da mesma maneira que o infinito ultrapassa o finito. Com uma sensibilidade mais viva e mais completa do que a que leva outros a admirar sem reservas um produto material qualquer, ele experimenta a doçura do êxtase em face do Divino Infante que leva sobre os ombros a soberania (cfr. Is. 9, 6). Vê nEle as maravilhas do Deus Eterno que se reveste do tempo, do Deus imenso e onipotente que se restringe aos limites do espaço e da fraqueza, do Deus de majestade feito ‘a bondade de nosso Salvador` (cfr. Tit. 3, 4), cheio de infinita misericórdia e amor.

“Por isto, o Anjo que anunciou aos pastores as maravilhas do Natal começou por encorajá-los: ‘Não temais, pois vos dou a nova de uma grande alegria para todo o povo` (Lc. 2, 12). Bem diferentes, ao contrário, os sentimentos que provoca a notícia das novas maravilhas da técnica. Uma vez passado o primeiro movimento de exultação, os homens de hoje, ante o desenvolvimento inesperado de seus conhecimentos e as conseqüências deles decorrentes, ante esta invasão inaudita no microcosmo e no macrocosmo, atormentados por uma certa ansiedade, se perguntam se conservarão o domínio do mundo ou se cairão vítimas do seu próprio progresso. As mudanças imprevisíveis a que conduzem os novos caminhos abertos pela ciência e técnica modernas são encaradas por alguns como algo de desarmonioso, destinado a lançar a perturbação e a desordem na unidade feita de ordem e harmonia que é o póprio da razão humana; por outros, ao invés, são essas mudanças consideradas como motivos de séria apreensão pela própria sobrevivência de seus autores. O homem começa a temer o mundo que ele crê ter por fim entre as mãos; teme-o mais do que nunca, e principalmente lá onde Deus não vive verdadeiramente nos espíritos e corações, esse mesmo Deus de Quem — em sua integridade e sob todos os aspectos — o mundo é obra, em que Ele imprimiu seu sinal indelével, como Deus onipotente, Espírito absoluto, Ser sapientíssimo e Fonte de toda ordem, harmonia, bondade e beleza.

  1. Palavras aos homens que só se admiram a si mesmos

“A este gênero humano, composto em grande parte de homens que se admiram unicamente a si mesmos, mas que começam a temer a si próprios e a seu mundo, indicamos uma vez mais as veredas de Belém. Aí encontrarão eles Aquele a Quem buscam, e de Quem diz o Apóstolo: ‘Tudo foi criado por Ele e à Sua imagem; e Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por Ele` (Col. 1, 16-17).

“Tal a verdade salutar que brilha na humilde gruta e que desejamos ver resplandecer em vossos espíritos.

  1. Jesus Cristo e as cacofonias da civilização técnica

“Em particular, Cristo recém-nascido Se manifesta e Se oferece ao mundo atual:

“1. como reconforto dos que deploram as desarmonias e desesperam da harmonia do mundo;

“2. como penhor da harmonia do mundo;

“3. como luz e caminho de todo esforço do gênero humano para estabelecer a harmonia no mundo.

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I – Jesus Cristo, consolador em meio às desarmonias deste mundo

  1. Harmonia no universo, desarmonia na vida do homem

“Desde seu primeiro contato com o universo, o homem foi arrebatado por sua incomparável beleza e por sua harmonia. O céu resplandecente de luz ou constelado de estrelas, os oceanos de extensões imensas e matizes variegados, os cumes inacessíveis das montanhas coroadas de neve, as verdes florestas regorgitantes de vida, a sucessão regular das estações, a variedade multiforme dos seres, arrancaram-lhe do peito um grito de admiração! Participante ele próprio dessa beleza, entreviu-a mesmo nos elementos desencadeados, como expressão do poderio do Criador: ‘Potentior aestibus maris, potens in excelsis est Dominus` (Sl. 92, 4); ‘Tonabit Deus in voce sua mirabiliter` (Job 37, 5). Com razão, um povo antigo de elevada civilização não encontrou palavra mais apta para designar o universo do que ‘kosmos`, isto é, ordem, harmonia, beleza. No entanto, cada vez que o homem se contemplou a si mesmo e comparou as próprias aspirações com suas obras, prorrompeu em gemidos de desalento em virtude das contradições, desarmonias e desordens numerosíssimas que dilaceravam sua vida.

  1. A técnica acentuou o contraste

“Como seu antepassado, o homem moderno se debate entre a admiração extática do mundo da natureza, explorando até seus recantos mais profundos e longínquos, e a amargura do desalento que lhe proporciona a existência caótica por que ele próprio é responsável. O contraste entre a harmonia da natureza e a desarmonia da vida, em lugar de se atenuar com o desenvolvimento da capacidade de conhecer e agir, parece, ao contrário, acompanhá-lo como sombra sinistra. No isolamento de que está envolvido, o homem moderno não cessa de repetir as lamentações do sofredor de Hus: ‘Eis que eu brado sob a opressão e ninguém me escuta; reclamo ajuda mas não há justiça` (Job 19, 7). Pois bem! Detenhamo-nos para escutar sua queixa, para melhor compreender seus sentimentos íntimos e mostrar-lhe Aquele que verdadeiramente pode dissipar suas trevas e restituir a harmonia à sua existência contrariada.

  1. O pessimismo total e suas causas

“Em parte da humanidade atual, a vista das desarmonias do mundo conduz a um julgamento de condenação de toda a criação, como se a desarmonia devessse ser a marca necessária dela, sua inevitável fatalidade, ante a qual não resta ao homem senão cruzar os braços e resignar-se, procurando, quando muito divertir-se com alguns prazeres efêmeros arrebatados à própria desordem reinante. Esse pessimismo total que se apodera com maior freqüência das almas abertas ao otimismo mais amplo e mesmo absurdo, provém do fato de se estender a todo o cosmos e a suas leis fundamentais as incoerências inegáveis que o mundo apresenta e cuja responsabilidade faz-se recair sobre o próprio Criador.

  1. a) O mundo moderno, oceano de horrores

“Assim é que cedem aos assaltos do pessimismo total os que não sabem ver no mundo outra coisa que não seja o oceano de crueldade e dores que dilacera indivíduos e povos, e que acompanha direta ou indiretamente as realizações do progresso exterior.

  1. b) A mania das novidades

“Outros são levados a desesperar das possibilidades de restaurar a harmonia, pela atitude, grave em si, dos homens que se deixam seduzir tão fortemente pela atração das novidades que desprezam os outros valores autênticos, em particular os que sustentam a sociedade humana.

  1. c) Barbárie progressiva

“Muitos outros, enfim, capitulam, por assim dizer, diante do pessimismo total quando observam o fato lamentável de haver homens exteriormente em progresso e que se tornam interiormente não civilizados.

  1. d) Devastações espirituais produzidas pela técnica

“Se a pesquisa é levada até as raízes desses fatos, a esperança se torna ainda mais tênue porque suas causas acusam desarmonias mais profundas e prometem outras de maior gravidade. Como, pois, explicar tanta indiferença pelo direito de outrem à vida, tanto desprezo dos valores humanos, tanto rebaixamento no tom da verdadeira civilização, a não ser pelo fato de que o progresso material preponderante decompôs o todo harmonioso e feliz do homem, e como que lhe mutilou a sensibilidade a estas idéias e valores, aperfeiçoando-o unicamente numa determinada direção? A um homem nascido e educado num clima de tecnicidade rigorosa faltará necessariamente uma parte, e não a menos importante, de sua totalidade, como se ela se tivesse atrofiado sob a influência de condições hostis a seu desenvolvimento natural. Da mesma maneira que uma planta cultivada em terreno a que se subtraíram substâncias vitais manifesta uma ou outra qualidade, mas não reproduz o tipo inteiro e harmonioso, assim também a civilização ‘progressista`, queremos dizer unicamente materialista, banindo certos valores e elementos necessários à vida das famílias e dos povos, acaba por privar o homem da faculdade autêntica de pensar, de julgar e de agir. Esta, com efeito, para captar o verdadeiro, o justo, o honesto, para ser, numa palavra, ‘humana`, exige a máxima extensão, e isto em todos os sentidos. O progresso técnico, pelo contrário, quando aprisiona o homem em seus elos, separando-o do resto do universo, especialmente do espiritual e da vida interior, conforma-o a suas próprias características, das quais as mais notáveis são a superficialidade e a instabilidade. O processo desta deformação não parecerá misterioso se se considerar a tendência do homem a aceitar o equívoco e o erro, quando estes lhe prometem uma vida mais fácil. Examinai, por exemplo, a substituição equívoca de valores realizada pelo progresso admirável da velocidade mecânica. Fascinado por ela e transpondo as vantagens da rapidez do movimento a coisas que não esperam sua perfeição como conseqüência de mudanças rápidas, mas, pelo contrário, adquirem a fecundidade na estabilidade e fidelidade às tradições, o homem ‘das velocidades doidas` tende a se tornar na vida como que um caniço agitado pelo vento, estéril em obras duradouras e incapaz de se sustentar a si mesmo e aos outros. Equívoco semelhante resulta do desenvolvimento, admirável em si, da eficácia dos sentidos, a que os prodigiosos intrumentos modernos de pesquisa dão o poder de ver, ouvir, medir o que existe, o que se move e se transforma, quase que nos últimos recantos do universo. Orgulhoso de um poder a tal ponto acrescido, e quase inteiramente absorvido pelo exercício dos sentidos, o homem ‘que tudo vê` é levado, sem se dar conta, a reduzir a aplicação da faculdade plenamente espiritual de ler no interior das coisas, isto é, da inteligência, a tornar-se cada vez menos capaz de amadurecer as idéias verdadeiras de que se nutre a vida. Igualmente as aplicações múltiplas da energia material, admiravelmente aumentada, tendem dia a dia mais a encerrar a vida humana num sistema mecânico que faz tudo por si mesmo e a sua própria custa, diminuindo assim os estímulos que antes o constrangiam a desenvolver sua energia pessoal.

  1. Só em Jesus Cristo há esperança de salvação

“Há pois profundas desarmonias no homem novo criado pelo progresso; mas, muito embora cheias de perigo, não justificam elas o desespero dos pessimistas exagerados, nem a resignação dos inertes. O mundo pode e deve ser reconduzido à harmonia primitiva que foi o tema do Criador nas origens, quando Ele fez sua obra participar de suas perfeições (cfr. Eccli. 16, 25-26). O apoio supremo desta esperança se encontra no mistério do Natal: Jesus Cristo, Homem-Deus, autor de toda harmonia, visita sua obra. Como poderia a criatura desesperar do mundo se o próprio Deus não desespera? Se o Verbo Divino, por Quem foram feitas todas as coisas, Se fez carne e habitou entre nós, a fim de que resplandecesse finalmente sua glória de Filho Unigênito do Padre (cfr. Jo. 1, 3 e ss.)? E como a glória do Criador e Restaurador de todas as coisas poderia resplandecer num mundo que fosse fundado necessariamente sobre as contradições e desarmonias?

“O pessimismo desses tais e sua resignação inerte não poderão jamais ser aceitos pelo Cristianismo, porque se opõem à idéia cristã do homem. Desde o princípio São Paulo se levantou contra o preconceito dos antigos, segundo o qual a sorte dos homens era dirigida fatalmente pelas forças e movimentos da natureza. Por isto observava ele: não somos submetidos às forças da natureza, mas a Cristo que nos tornou livres e herdeiros de Deus (cfr. Gal. 4, 3-4). Toda a redenção e toda a liberdade nos vem pois de Cristo, e não da natureza, que sempre — e hoje talvez mais, sob o império da técnica — está pronta para impor seus grilhões. O homem moderno, de sua parte, está mais exposto a voltar a ser escravo da natureza, porque, em oposição ao homem antigo, que lhe estava submetido por ignorância e fraqueza, ele está sujeito à sua forte pressão em virtude do vasto conhecimento que dela tem e da aplicação de suas energias, e portanto prestes a lhe tributar, por assim dizer, um culto de adoração e de agradecimento pelas maravilhas que nela descobre e os benefícios imediatos que dela retira.

“Os apelos do Apóstolo no sentido de romper os grilhões da escravidão imposta pela natureza, através da escolha de Cristo e da adesão a Ele, são pois mais reais do que nunca. Ele, e não outro, é vosso Deus. Autor e Senhor da natureza, vosso Libertador e Salvador. Por Ele sois destinados a ‘vos tornardes filhos de Deus` (Jo. 1, 12), e não escravos dos elementos deste mundo; sois chamados, não a aperfeiçoar parcialmente esta ou aquela faculdade, mas a restaurar no homem inteiro a imagem perfeita de Deus, harmonia Ele próprio, e fonte de toda a ordem no cosmos.

  1. Dependência necessária do temporal ao eterno

“Porém, estas verdades fulgurantes, capazes de restaurar a dignidade do homem e de reanimar-lhe as esperanças, são repelidas pelos que não chegam a estabelecer uma relação de necessidade entre o eterno e o temporal, entre o Criador e as criaturas, e pelo contrário apartam Deus do mundo por se tratar de seres muito diferentes e muito distantes um do outro, e portanto sem laços recíprocos. Todavia, a vinda do do Filho de Deus à terra demonstra visivelmente as relações íntimas que ligam o contingente ao eterno. O mundo e o homem não teriam nem razão nem possibilidade de substituir se não participassem do Ser eterno de Deus criador. O mundo criado e finito, navegando necessariamente no oceano da eternidade divina, segue-lhe, se assim podemos dizer, o curso e as leis. Com razão Santo Agostinho, bem como muitos outros sábios antigos e modernos, afirmam que o mundo, se bem que criado e contingente, é regido por uma lei suprema e eterna de onde ele mesmo tira consistência e dignidade. Com efeito, é esta lei eterna que eleva a criatura, de si finita, à dignidade de reflexo do infinito e do eterno. Ela o faz em virtude da ordem essencial inscrita em todas as coisas, e da coerência e harmonia íntimas de que está cheio o mundo.

  1. Sem o reconhecimento desta dependência, toda ordem é impossível

“Mas se for rejeitado o conceito mesmo da eternidade de Deus e da sua possibilidade de tornar as criatguras participantes de algo dEle próprio, será vão falar de ordem e harmonia do mundo. Com tais negações, contudo, não se extingue no homem a sede de harmonia, ordem e felicidade. O homem se vê então forçado a elevar à categoria de valor supremo o que resta, isto é, seu ser concreto finito. Colocado fora da ordem exterior do mundo e de toda a harmonia do mundo, deve escolher uma vida que não é senão uma preocupação contínua a respeito de sua existência e como que um caminho rumo à morte, embora ele retire um certo orgulho afetado de sua natureza finita. O homem moderno que não se sente ligado essencialmente ao eterno cai na adoração do finito, em meio ao qual se move e trabalha, consciente, se assim podemos nos exprimir, de si e de todo ser.

  1. A ação do homem deve ser conforme à ordem universal

“Mas isto é uma representação falsa da realidade, que pode causar ilusão mas não saciar a sede de verdade e as aspirações íntimas. Se os homens querem a satisfação destas, dirijam-se a Belém, onde o Verbo Eterno feito carne habitou entre nós para nos ensinar que toda atividade humana deve tirar da eternidde toda a orientação, toda a sua produtividade e sua segurança. Se a essência mesma do homem é ser imagem de Deus, também sua ação Lhe deve ser conforme, como o ensina a sabedoria quando afirma que ‘o agir segue o ser`.

“A ação do homem sobre a terra não está pois condenada à desarmonia, mas, ao contrário, destinada a manifestar a harmonia eterna de Deus. Desse modo o Verbo de Deus Encarnado liberta o homem da escravidão, salva-o do estéril fechar-se sobre si mesmo, devolve-lhe a esperança nas vias do progresso.

II – Jesus Cristo, penhor da harmonia no mundo

  1. O desígnio harmonioso da criação

“De acordo com o conceito cristão de um cosmos modelado pela sabedoria criadora de Deus, e conseqüentemente unificado, ordenado e harmonioso, se ergue, talvez distanciada de diversos séculos, a previsão de um acontecimento solene, quando ‘nos céus novos e na nova terra` (cfr. II Pedr. 3, 13), ‘tabernáculo de Deus entre os homens para habitar com estes… Ele enxugará toda lágrima de seus olhos; e não haverá mais morte nem lugar, nem gritos, não haverá mais dor, porque as primeiras coisas são passadas` (Apoc. 21, 1-4); noutros termos, as desarmonias presentes serão vencidas. Mas isto significa que a ralização do desígnio harmonioso da Criação está completamente adiado? Deus, que no próprio ato de o criar, ‘deu ao homem o poder sobre todas as coisas que estão na terra` (Ecl. 17, 3), teria retirado sua palavra? Não, certamente. Bem ao contrário de tirar do homem o poder de dominar a terra, Deus lho confirmou no dia em que revestiu de carne humana seu Filho Unigênito, tendo ‘decidido reunir na plenitude dos tempos, em Cristo, todas as coisas, as que estão nos Céus e as que estão sobre a terra` (Ef. 1, 10). De sorte que Jesus Cristo, Verbo Encarnado, Deus-Homem, vindo ao mundo, desde o primeiro instante de sua existência visível, atesta que o domínio do mundo pertence em graus diferentes a Deus e ao homem, e que não poderá em conseqüência ser obtido a não ser no Espírito de Deus.

“Em Jesus Cristo, na verdade, habitou o próprio Espírito divino (cfr. Col. 2, 9) que no princípio do tempo disse: ‘Que a luz seja. E a luz foi` (Gen. 1, 3); o mesmo Espírito divino que, impresso como selo indelével sobre todas as coisas criadas, é para todas, inanimadas e vivas, o elo que estabelece sua unidade, o germem da ordem, o acordo fundamental.

  1. A espiritualidade da alma e a filosofia na cultura

“Mas antes mesmo de conceber uma idéia explícita da perfeita harmonia de que é fecunda a presença de Cristo no mundo e sua conaturalidade com o homem, poderia o homem perceber em seu próprio espírito, imagem do Espírito de Deus, o elo que une e solda interiormente as coisas umas às outras. Esta feliz síntese foi, com efeito, atingida já pelos antigos filósofos de Atenas e Roma, e, com maior clareza, pelas luzes da filosofia cristã, entre outros por Santo Agostinho e pelo Aquinate (São Tomás). De qualquer modo, a técnica sozinha é insuficiente para reconhecer e desenvolver o gérmen divino de unidade que as coisas ocultam. Há hoje homens de ciência que crêem poder fazer abstração, ao menos por método, desta verdade, isto é, fazer como se o espírito não existisse, nada tivesse a propor, e interdizer-lhe a entrada nos laboratórios e a presença nas pesquisas. Impregnados de materialismo e sensualismo, esperam a solução das questões, unicamente de seus instrumentos e de seus cálculos, da observação atenta dos fatos, da verificação e coordenação exterior dos fenômenos. Outros, é verdade, admitem uma certa conexão, mas lógica, como dizem, à maneira de relações matemáticas, imaginando que a ordem do mundo, ainda que subtraída à égide do espírito, pode apesar de tudo ser obra da ordenação física de cada uma das partes, como numa gigantesca máquina de calcular.

“Se a filosofia não bastasse para demonstrar a inconsistência de tal opinião, a própria ciência lhe daria o desmentido. Se, de fato, se observa como procederam os melhores pesquisadores e como as invenções e descobertas de máxima importância nasceram, deve-se admitir a presença ativa do espírito; é dele que provém a percepção de um laço interno que une fatos freqüentemente heterogêneos, dele a finura penetrante da observação e da análise, dele o vigor da síntese que representa ao espírito a realidade verdadeira e leva a formar o julgamento definitivo.

“Eis pois como a presença do espírito no agir humano é inegável e como não é possível silenciar seu testemunho no mundo, a não ser em virtude de preconceitos e da superstição: é ele testemunha de unidade, ordem, harmonia, que provêm de Deus, e sem as quais mesmo as fórmulas matemáticas aplicadas nas ciências não representariam a realidade.

“Espírito e harmonia são pois testemunhas recíprocas: tal como a abundância do espírito corresponderá sempre a abundância da harmonia, assim também toda dissonância, onde quer que se verifique, nas ciências, nas artes, na vida, indica algum entrave à plena efusão daquele.

  1. O absurdo e o mal na vida cultural

“Tal reciprocidade de relações aponta à reprovação os que no domínio literário e artístico propagam o culto da desarmonia, e, como eles mesmos o afirmam, do absurdo. Que seria feito do mundo e do homem, se o gosto e a estima da harmonia se perdessem? E’, no entanto, isto que visam os que tentam revestir de beleza e sedução o que é vergonhoso, pecaminoso, mau. E bem mais, para além da estética sua ofensiva fere a própria dignidade do homem, que, imagem do Espírito divino, é essencialmente feito para a harmonia e a ordem. Não se nega todavia que o próprio mal possa ser representado sob a luz da arte verdadeira, desde que, entretanto, sua representação apareça ao espírito e aos sentidos como uma contradição, oposta ao espírito, como o sinal de sua ausência. A dignidade da arte resplandece tanto mais quanto em maior grau reflete ela o espírito do homem, imagem de Deus, e, conseqüentemente, manifesta mais sua fecundidade criadora, sua plena maturidade, quando desenvolve o tema divino da unidade e da harmonia por suas ações e pelos diferentes aspectos de sua vida.

  1. Jesus Cristo no cosmos e na cultura

“Contudo, por mais evidente que seja o testemunho do espírito do homem em favor da harmonia do mundo, por mais fecunda que possa ser sua ação no desenvolvimento dos embriões da ordem, a história e a vida demonstram que ele padece de uma insuficiência e de uma fraqueza intrínseca, para cuja cura foi necessário, nos desígnios do amor infinito do Criador para com sua criatura, que o Espírito mesmo de Deus se tornasse visível e se inserisse no tempo. Eis Jesus Cristo, Verbo Divino feito carne que vem ao mundo como à sua morada, à sua propriedade, ‘in propria venit` (Jo. 1, 11).

“O título desta propriedade é o título dos títulos: a criação. O mundo reflete pois, em sua extensão e em sua universalidade, ‘extensive et diffusive`, como diz São Tomás (S. Th. 1 p., q. 93, a. 2, ad 3um), a eterna bondade e verdade do Criador; e deste modo a relação de Cristo com o mundo surge penetrada de luz claríssima.

“Da mesma maneira, o Criador pôs o homem, imagem de seu Espírito, no mndo a fim de que ele fosse seu senhor, pelo conhecimento, vontade, ação, tornando sua, em intensidade e em profundidade, ‘intensive et collective` (S. Th., 1. c.), a semelhança que tem com a verdade e a bondade eternas difundidas através do mundo. Aí também, conseqüentemente, a relação do homem com o mundo goza da clara luz do Espírito eterno comunicadaa pelo Criador à Criação. A Encarnação conserva assim e aumenta a dignidade do homem e a nobreza do mundo, sobre o fundamento da mesma origem no Espírito Divino, fonte de unidade, ordem e harmonia.

“Se, ao invés, se retira este fundamento do espírito, e como decorrência a imagem (no homem) e o vestígio (nas criaturas desprovidas de razão) do Ser divino eterno nas coisas criadas, perde-se por isto a harmonia nas relações do homem com o mundo. O homem se reduziria a um simples ponto de localização de uma vitalidade anônima e irracional. Ele não mais estaria no mundo como em sua própria casa. O mundo se tornaria para ele algo de estranho, obscuro, perigoso, sempre exposto a perder o caráter de instrumento e transformar-se em seu inimigo.

“E quais seriam as relações reguladoras da vida em sociedade sem a luz do Espírito divino e sem levar em conta a relação de Jesus Cristo com o mundo? A esta questão responde infelizmente a amarga realidade dos que, preferindo a obscuridade do mundo, se declaram adoradores das obras exteriores do homem. Sua sociedade não consegue, graças à disciplina de ferro do coletivismo, senão manter a existência anônima de uns ao lado da dos outros. Bem diferente é a vida social fundada sobre o exemplo das relações de Jesus Cristo com o mundo e com o homem: vida de cooperação fraterna e de respeito mútuo do direito de outrem, vida digna do princípio primeiro e do fim último de toda criatura humana.

  1. O pecado original e seus efeitos na ordem universal

“Mas a obscura e profunda desarmonia, raiz de todas as outras, que o Verbo Encarnado veio iluminar e recompor, consistia na ruptura produzida pelo pecado original, que arrastou em suas amargas conseqüências toda a família humana e o mundo, sua morada. O homem decaído, tendo o espírito obscurecido, não vê mais ao seu redor um mundo submisso, dócil instrumento de seu destino, mas como que a conjuração de uma natureza rebelde, executora inconsciente do decreto que deserdava seu primeiro senhor. Todavia, no homem e no mundo nunca se extinguiu a espera de um retorno à condição primeva, à ordem divina; e, segundo a frase do Apóstolo, ela se exprime pelos gemidos de todas as criaturas (cfr. Rom. 8, 22), pois, mau grado a escravidão do pecado, o homem permanece sempre a imagem do Espírito divino, e o mundo a propriedade do Verbo, Jesus Cristo veio para reanimar aquilo que a queda havia mortificado, sanar o que ela havia ferido, iluminar o que ela obscurecera, tanto no homem quanto no mundo, restituindo ao primeiro seu domínio sobre a natureza, conforme o Espírito de Deus, e subtraindo o outro ao abuso culpável do homem. Todavia, se a ruptura foi curada em sua raiz, certas conseqüências, dúvidas, dificuldades e dores continuam sendo a herança da natureza humana. Mas até mesmo para estes frutos do pecado Jesus Cristo é penhor de redenção e restauração.

  1. Os efeitos da Redenção na ordem universal

“A luz sobrenatural que resplandece na noite de Natal em Belém se projeta como novo arco-íris de pacificação sobre o porvir inteiro do mundo, ‘submetido à vaidade, não por sua vontade, mas pela do que a sujeitou na esperança` (ibid. 20). A esperança é ainda Jesus Cristo, que, depois de ter libertado o mundo da escravidão do pecado, libertá-lo-á também da escravidão e da corrupção, restituindo-o à liberdade dos filhos de Deus. A vida do homem e o curso do mundo estão intimamente penetrados desta espera. Se é verdade que até a alvorada do dia eterno os homens não verão a harmonia inteiramente reconstituída, se o suor e as lágrimas devem ainda banhar seu pão, se os gemidos das criaturas devem ainda repercutir sob o sol, sua tristeza não será uma tristeza de morte, mas uma angústia de mãe, segundo a fórmula tão expressiva do Divino Mestre: quando a hora é chegada, ela esquece de boa vontade toda dor porque um homem veio ao mundo (cfr. Jo. 16, 21). O nascimento, ainda que doloroso e lento, de uma vida nova, de uma humanidade em constante progresso na ordem e harmonia, é o fim atribuído por Deus à história ‘post Christum natum`, e todos os filhos de Deus reconduzidos à liberdade deverão para isto contribuir pessoal e ativamente.

  1. O imanentismo evolucionista e a concepção católica da História

“E’ portanto vão esperar a perfeição e a ordem do mundo de um certo processo imanente, de que o homem ficaria como espectador estranho, conforme afirmam alguns. Este obscuro imanentismo é a volta à antiga superstição, que deificava a natureza; e não pode basear-se, como se pretende, na história, senão falsificando artificialmente a explicação dos fatos. A história da humanidade no mundo é coisa bem diferente de um processo de forças cegas; é um acontecimento admirável e vital da história mesma do Verbo Divino; teve seu início nEle e se cumprirá por Ele no dia da volta universal ao primeiro princípio, quando o Verbo Encarnado oferecerá ao Padre, como testemunho de sua glória, sua propriedade resgatada e iluminada pelo Espírito de Deus. Então, numerosos fatos, especialmente da história, que parecem presentemente desarmonias, se revelarão como elemento de autêntica harmonia: tal, por exemplo, o fato de que sobrevêm sem cessar novas coisas ao passo que as antigas desaparecem. Umas e outras, com efeito, participaram e participam de algum modo da verdade e da bondade divinas, e a natureza passageira de uma coisa ou de um fato não lhes tira, quando eles a têm, a dignidade de exprimir o Espírito divino. O mundo inteiro, de resto, é assim, como observa o Apóstolo: ‘A figura deste mundo passa, com efeito` (I Cor. 7, 31), mas sua destinação final à glória do Padre e ao triunfo do Verbo que se acha na origem de todo o seu desenvolvimento, confere ao mundo e lhe conserva a dignidade de testemunha e de instrumento da verdade, da bondade e da harmonia eternas.

III – Jesus Cristo, luz e vida para os homens a fim de estabelecer a harmonia no mundo

  1. A luta entre o bem e o mal

“A onipotência dAquele que ‘faz tudo aquilo que quer` (Sl. 115, 3), assistido por sua sabedoria infinita que ‘se estende com força de uma extremidade à outra e governa todas as coisas com doçura` (Sab. 8, 1), estabeleceu a grande lei da harmonia, que enche o mundo e lhe explica os acontecimentos. O Espírito de Deus, que nas origens presidiu do alto à criação, como que se difundiu nela; e quando na plenitude dos tempos, por obra do Amor misericordioso, o próprio Verbo eterno, ao encarnar-Se, inseriu-Se nela pessoalmente, tomou posse dela visível e definitivamente. ‘Jesus Cristo, ontem e hoje; e Ele também eternamente` (Hebr. 13, 8). O universo se apresenta desse modo como uma sinfonia admirável, ditada pelo Espírito de Deus e cujo acorde fundamental brota da fusão das perfeições divinas: a sabedoria, o amor, a onipotência. ‘Domine, Dominus noster, quam admirabile est nomen tuum in universa terra` (Sl. 8, 2)!

“Todavia, para os que, com o Salmista, têm ouvidos para ouvir na alegria a sinfonia divina que ressoa no mundo, e para os cristãos mais que todos os outros, a criação não é somente um fato estético oferecido ao homem para seu prazer, para suscitar unicamente o louvor de seu Autor supremo. Já no princípio, Deus, ao estabelecer o homem numa dignidade superior à de todas as obras de suas mãos, lhe havia submetido todas as coisas, mesmo os céus, a lua e as estrelas, modelados por seus dedos (cfr. Sl. 8, 4), numa palavra, o mundo, a fim de que nele trabalhasse e conservasse sua harmonia (cfr. Gen. 2, 15). Mas Jesus Cristo mesmo, que é testemunha e penhor da harmonia do mundo, demonstrou pelo exemplo de sua vida e de sua morte que contribuição ativa, laboriosa, deve o homem trazer à conservação dessa harmonia, a seu desenvolvimento e — quando ela falta — a seu restabelecimento. A obra de restauração realizada por Jesus Cristo foi por Ele próprio definida como uma luta contra o ‘príncipe deste mundo`, e seu epílogo como uma vitória: ‘Ego vici mundum` (Jo. 12, 31; 16, 33).

“A sinfonia divina do cosmos, particularmente na terra e entre os homens, é confiada por seu Autor supremo à própria humanidade, a fim de que esta, como uma imensa orquestra, distribuída no tempo e multiforme em seus meios, mas unida sob a direção de Jesus Cristo, a execute fielmente, interpretando com a maior perfeição possível seu tema único e genial. Deus, com efeito, entregou aos homens seus desígnios, a fim de que os ponham em ato, pessoal e livremente; empenhou a plena responsabilidade moral deles e exigiu, quando necessário, fadigas e sacrifícios, a exemplo de Jesus Cristo. Sob este aspecto, o cristão é, em primeiro lugar, um admirador da ordem divina no mundo, aquele que ama Sua presença e tudo faz para vê-la reconhecida e afirmada. Ele será, pois, necessariamente seu defensor ardoroso contra as forças e as tendências que lhe contrariam a realização, quer se escondam nele mesmo — as más inclinações — quer provenham do exterior — Satanás e suas superstições. E’ assim que São Paulo via o cristão no mundo quando lhe mostrava os adversários de Deus e o exortava a revestir sua armadura a fim de resistir aos embustes do demônio, cingindo os rins com a verdade e revestindo a couraça da justiça (cfr. Ef. 6, 11 e 14). A vocação para o Cristianismo não é, pois, um convite de Deus apenas ao comprazimento estético na contemplação de sua ordem admirável, mas o chamado obrigatório a uma ação incessante, austera e dirigida para todos os sentidos e visando todos os aspectos da vida. Sua ação se desenvolve, antes de tudo, na plena observância da lei moral, qualquer que seja o seu objeto, pequeno ou grande, secreto ou público, de abstenção ou de realização positiva. A vida moral não pertence a tal ponto à só esfera interior, que não toque também, por seus efeitos, a harmonia do mundo. Nenhum acontecimento há, mesmo inteiramente particular, em que o homem esteja de tal modo sozinho, de tal modo individual e confinado em si mesmo, que suas determinações e seus atos não tenham repercussões no mundo que o envolve. Executor da sinfonia divina, nenhum homem pode presumir que sua ação é um negócio que lhe diz respeito exclusivamente. A vida moral é sem dúvida, em primeiro lugar, um fato individual e interior, mas não no sentido de um certo ‘interiorismo` e ‘historicismo` pelo qual alguns se esforçam em enfraquecer e rejeitar o valor universal das normas morais.

  1. A participação do homem nessa luta

“A cooperação na ordem do mundo, pedida por Deus ao cristão em geral, deve igualmente evitar um espiritualismo que desejaria interdizer-lhe toda intervenção nas coisas exteriores e que, adotado outrora no campo católico, ocasionou graves prejuízos à causa de Jesus Cristo e do Divino Criador do universo. Como, pois, seria possível sustentar e desenvolver a ordem do mundo se se deixasse plena liberdade de ação aos que não a reconhecem ou não querem que ela se fortaleça? A intervenção no mundo para sustentar a ordem divina é um direito e um dever que fazem intrinsecamente parte da responsabilidade do cristão e lhe permitem empreender legitimamente toda e qualquer ação, privada, pública ou organizada, capaz de atingir seu fim.

“Para fugir a esta responsabilidade, não basta alegar pretextos subtis inventados para escusar a inércia de alguns cristãos, ou sugeridos por injustificada inveja dos adversários, em particular se se afirma que a ação do cristão no mundo mascara uma avidez do poder estranha à fé cristã, ao espírito de Jesus Cristo, excita a aversão pela fé cristã naqueles que já estão mal dispostos, provém da desconfiança para com Deus e sua Providência onipotente e reflete a arrogância da criatura. Há mesmo alguns deles que insinuam ser sabedoria cristã o retorno à pretensa modéstia de aspirações das catacumbas. Prudente seria, pelo contrário, voltar à sabedoria inspirada do Apóstolo Paulo, que, escrevendo à comunidade de Corinto com ousadia digna de sua grande alma, mas fundada sobre a plena soberania divina, abria todos os caminhos à ação dos cristãos: ‘Tudo é vosso (…) tanto a vida quanto a morte, tanto as coisas presentes quanto as futuras: pois tudo vos pertence. Vós, porém, sois de Cristo e Cristo é de Deus` (I Cor. 3, 21). Ele deveria até considerar como um opróbrio o fato de se deixar ultrapassar pelos inimigos de Deus em ardor no trabalho, em espírito de empreendimento e mesmo de sacrifício. Não existem terrenos fechados nem direções interditas à ação do cristão: nenhum domínio da vida, nenhuma instituição, nenhum exercício de poder podem ser proibidos aos cooperadores de Deus para sustentar a ordem divina e a harmonia do mundo.

  1. “Ghetto” católico?

“Esta intervenção não sugere de modo algum a idéia de uma ação que se mantenha separada e, por assim dizer, cheia de ciúme em relação a contribuição de outrem. Já por diversas vezes temos dito que os católicos podem e devem admitir a colaboração com os outros se a ação destes e o entendimento com eles são capazes de contribuir verdadeiramente para a ordem e a harmonia do mundo. Todavia, é necessário que os católicos se capacitem primeiro daquilo que podem e daquilo que querem; é preciso, portanto, que sejam preparados espiritual e tecnicamente para o que se propõem a si mesmos. Em caso contrário, não trarão nenhuma contribuição positiva e menos ainda o dom precioso da verdade eterna à causa comum, e ocasionarão dano evidente à honra de Jesus Cristo e às suas próprias almas.

“Isto dito, não é justo atribuir ao espírito de ‘intolerância` e de segregação, freqüentemente chamado ‘ghetto`, o fato de os católicos se esforçarem por basear a escola, a educação e a formação da juventude sobre um fundamento cristão; de se esforçarem por instituir organizações profissionais católicas, favorecer a influência organizada dos princípios cristãos até mesmo no domínio político e sindical, quando a tradição e as circunstâncias o aconselham. Não foi apenas a ‘idéia` cristã puramente abstrata que criou no passado a elevada civilização de que justamente se ufanam as nações cristãs, mas também as realizações concretas dessa idéia, isto é, as leis, as ordenações, as instituições fundadas e promovidas por homens que trabalhavam para a Igreja e agiam sob sua direção ou pelo menos sob sua inspiração. A Hierarquia católica não teve exclusivamente o cuidado de que a luz da fé não se extinguisse, mas, por obras concretas de governo, de disposição, de escolha e designação de homens, constituiu este conjunto complexo de organismos vivos que, ao lado de outros que não lhe pertencem, estão na base da sociedade civil.

  1. Humanismo pluralista?

“`A ação cristã é tão impossível hoje em dia quanto outrora, renunciar a seu título e caráter unicamente porque alguns vêem na sociedade humana atual uma sociedade dita pluralista, dividida pela oposição de mentalidades inabaláveis em suas posições respectivas e incapazes de admitir uma colaboração que não se estabeleça sobre o plano simplesmente ‘humano`. Se este ‘humano` significa, como parece, agnosticismo para com a Religião e os verdadeiros valores da vida, todo convite à colaboração equivaleria a um pedido de abdicação, em que o cristão não pode consentir. De resto, de onde este ‘humano` tiraria a força de obrigar, de fundamentar a liberdade de consciência para todos, senão do vigor da ordem e da harmonia divina? Este ‘humano` acabaria por criar um ‘ghetto` de novo gênero, mas privado de caráter universal.

  1. A ordem e a harmonia no mundo, ponto de apoio de todos os homens retos

“A ordem e a harmonia divinas no mundo devem, portanto, ser o principal ponto de apoio da ação, não somente dos cristãos, mas de todos os homens de boa vontade, em vista do bem comum; sua conservação e desenvolvimento devem ser a lei suprema que preside aos grandes encontros entre os homens. Se a humanidade de hoje não entrasse em acordo acerca da supremacia desta lei, isto é, do respeito absoluto da ordem e da harmonia universais no mundo, seria difícil prever a sorte que esperaria as nações. A necessidade deste acordo foi sentida praticamente quando, há pouco, certos especialistas das ciências modernas manifestaram dúvidas e inquietações pessoais com relação ao desenvolvimento da energia atômica. Sejam quais forem atualmente suas deduções e resoluções, é certo que as dúvidas destes homens de grande valor se referiam ao problema da existência, aos fundamentos mesmos da ordem e da harmonia no mundo. Ora, quando se discute se convém ou não realizar o que o gênio humano tem a possibilidade de atingir, é necessário convencer-se de que toda resolução deve depender da conservação destes bens: a ordem e a harmonia.

  1. Progressos técnicos perigosos

“Hoje uma sedução quase cega do progresso arrasta as nações a negligenciar perigos evidentes e a não levar em conta perdas não indiferentes. Quem não vê, com efeito, como o desenvolvimento e a aplicação de certas invenções acarretam quase por toda parte prejuízos sem proporção com as vantagens, mesmo de natureza política, que delas derivam, e que se poderiam obter por outros meios com menos gastos e perigo, ou adiar decididamente para tempos melhores? Quem poderia traduzir em cifras o prejuízo econômico do progresso não inspirado pela sabedoria? Tamanha quantidade de materiais, tantos capitais devidos à poupança, frutos de restrições e fadigas, tanto trabalho humano subtraído a necessidades urgentes, consomem-se para preparar armas novas, de modo que mesmo os povos mais ricos devem prever que um dia deplorarão um perigoso enfraquecimento na harmonia da economia nacional; por vezes, até, já o deploram, embora procurem ocultá-lo a si mesmos.

  1. A corrida armamentista

“Se se reflete bem e se julga de maneira realista, a atual concorrência entre as nações para fazer alarde de seus progressos nos armamentos (ressalvado sempre o direito de defender-se) produz de fato ‘sinais do céu`, porém ainda mais sinais de orgulho, deste orgulho que cava abismos entre os espíritos, alimenta os ódios e prepara lutos. Saibam pois os espectadores da concorrência moderna reduzir os fatos a suas justas proporções e, sem recusar tentativas de acordos pacíficos, sempre desejáveis, não se deixem iludir por recordes freqüentemente momentâneos, nem dominar por temores suscitados precisamente para captar a simpatia e o apoio de outrem, pois pertencem a uma geração de homens em que o ‘homo faber` prevalece muitas vezes sobre o ‘homo sapiens`. Predomine então o homem cristão, que usa da liberdade de espírito decorrente de sua visão mais ampla das coisas para reencontrar na consideração objetiva dos acontecimentos o repouso e a firmeza de espírito que têm raízes no Espírito divino, sempre presente e exercendo sua Providência no mundo.

  1. Apelo à paz

“Mas o ponto em que, afinal, os defensores da harmonia divina no mundo são convidados a aplicar o melhor de seus esforços, é o problema da paz. A vós, a todos os que conhecem Nosso pensamento, bastará de momento, e como que para tranqüilizar Nosso espírito incansavelmente votado à causa da paz, que relembremos as finalidades imediatas que as nações devem propor-se e realizar. Nós o fazemos com espírito paternal e como que para interpretar os ternos vagidos do Divino Infante de Belém, autor e penhor de toda a paz sobre a terra e nos céus.

“A lei divina da harmonia no mundo impõe estritamente a todos os governantes dos povos a obrigação de impedir a guerra por meio de instituições internacionais capazes de colocar os armamentos sob uma vigilância eficaz; de desencorajar, pela sgurança da solidariedade entre as nações que sinceramente querem a paz, quem desejasse perturbá-la. Estamos seguro de que este elo não deixaria de cerrar-se cada vez mais, ao primeiro sinal de perigo, como claramente o confirmaram certas manifestações ainda recentes; mas trata-se, não tanto de procurar os remédios, quanto de prevenir as perturbações da ordem e de proporcionar um alívio bem merecido ao mundo que já sofreu demais. Nós, que Nos temos aplicado mais de uma vez, em momentos críticos, a consolidar esta solidariedade por meio de advertências e conselhos, e que consideramos como missão divina de Nosso Pontificado unir fraternalmente os povos na paz, renovamos Nossa exortação a que entre os verdadeiros amigos da paz cesse toda rivalidade, seja eliminada toda causa de desconfiança. A paz é um bem tão precioso, tão fecundo, tão desejável e tão desejado, que todo esforço para defendê-la é bem empregado, mesmo com sacrifício mútuo de aspirações particulares legítimas. Estamos certo de que os povos pensam sem hesitação como Nós e esperam o mesmo sentimento de seus governantes.

“Que da manjedoura de Belém o Príncipe da paz suscite, conserve, confirme estas disposições, e que, na solidariedade de todos os homens de boa vontade, Ele Se digne completar aquilo que mais falta para a realização da ordem e da harmonia queridas no mundo por seu Criador”.

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