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Plinio Corrêa de Oliveira
Sociedade orgânica IV
Procurar discernir os planos de Deus, as aptidões pessoais como dos conjuntos, as situações concretas
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A D V E R T Ê N C I
A O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de
conferências do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da
TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Se o
Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre
nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial
disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da
Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como
homenagem a tão belo e constante estado de
espírito: “Católico
apostólico romano, o autor deste texto
se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja.
Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja
conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”. As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui
empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em
seu livro "Revolução
e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº
100 de
"Catolicismo", em abril de 1959. |
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Se eu tivesse que fazer uma história abarcativa da Revolução, começaria pela Renascença e Humanismo, porque foi neles em que se começaram a fazer desatinos, enfaticamente, e daí veio todo o resto. Pela mentalidade medieval que subsistia nos hábitos e tradições sociais, restava ainda muito do respeito e da admiração do menor pelo maior, enquanto mais sério, mais importante, mais digno; enfim, enquanto olhado à maneira como o homem deve olhar a Deus. Um modo interessante de fazer história seria começar com a questão das idades e das relações dentro da família. Como era visto o mais velho na última época da Idade Média? Como se foi modificando o modo de ver o mais velho na sociedade humana? No último período da Idade Média, o mais velho era um paradigma: admirado, respeitado e procurado por todo mundo. No começo da Renascença já começava a ser um trambolho. Há um determinado momento em que o mais velho é a personificação do erro do passado, aquilo que a modernidade deve destruir. E vem a noção de como é visto o homem de meia idade, depois como é visto o mais moço, e finalmente as várias etapas da infância.
À esquerda Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838) e à direita Klemens Wenzel von Metternich (1773-1859) Fazer a análise disso à luz do que dizemos, e depois entrar na apreciação de certas aptidões, talentos. Por exemplo, um grande diplomata. Metternich fazia de Talleyrand a seguinte crítica: "Ele tem tudo de um homem de salão e nada de um pensador. Ele sabe dizer tudo quanto é agradável, interessante e sabe fazer cair do cavalo tudo quanto é adversário. Mas não sabe dar um pensamento novo para ninguém. Em Talleyrand há mil planos e nenhum pensamento". Mas Talleyrand era muito mais apreciado socialmente do que Metternich. É fácil imaginar o ódio de Talleyrand ao ouvir esses comentários, e a vontade de dar um golpe e derrubar o Metternich (MNF, 30-09-1993). Certas famílias do povo são chamadas para virem a ser famílias nobres. E até alguns da mais ínfima plebe podem ser chamados para ser reis. Por aí nasce uma espécie de tratado do fundamento do ponto de partida de todas as coisas (MNF, 30-09-1993). Fatores naturais e sobrenaturais na ordem da Criação Na boa ordem há alguma coisa que permitiria algo de meio humano e meio natural, dentro de um tipo de relações cujo fundamento é principalmente sobrenatural. Por exemplo, nas narrações do Evangelho há momentos em que Nosso Senhor tem atitudes de uma superioridade tal, que o fiel, enquanto criatura humana, percebe quanto é pequeno diante dEle. Em outros momentos, porém, tem-se a impressão de que Ele se senta ao nosso lado e diz: "Meu filho, conte-me suas coisas. No que você está sofrendo? No que você precisa de mim? Fale, que eu ouço". E a pessoa, com toda a liberdade, começa a falar com Ele. A samaritana no poço, por exemplo. Essas duas atitudes têm n’Ele um fundo comum, e deixam ver uma harmonia profunda, mas tão excelsa e tão alta, que é difícil perceber qual é o cone onde essa harmonia se encontra. É a grandeza dEle convivendo perfeitamente com a Sua intimidade. Outro exemplo: a baronesa d’Oberkirch (1754-1803), após uma visita à França, relatou: "Ao nos receber, o rei se portou como amigo; os Condés, como soberanos; e os Orleans, como burgueses". Os Condés receberam “en souverains”, quer dizer, como se eles, Condés, fossem soberanos; fizeram uma recepção tão magnífica, tão faustosa, num palácio tão extraordinário — o Chantilly — que, se fossem soberanos, receberiam daquela maneira. E o rei recebeu com tanto afeto, tanta distinção, tanta gentileza, que se eles fossem simplesmente amigos não teriam sido recebidos de modo diferente. A pergunta verdadeira não é qual dos dois modos de receber é mais perfeito. A pergunta é: não haverá uma perfeição especial em que uma mesma dinastia receba “en ami” e “en souverain”, e que o ramo mais alto receba “en ami”, e o menos alto receba “en souverain”? Não existe uma excelência dentro disso, uma excelência especial que a Oberkirch — uma mulher inteligente — viu perfeitamente e descreveu? Os Orleans “en bourgeois” eram eles mesmos (MNF, 30-09-1993). A inocência patriarcal Na ideia primeira de sociedade orgânica existe a noção de um espírito patriarcal — se nós pudéssemos dizer, de inocência patriarcal — que faz com que, naturalmente falando, a sociedade caminhe para o sublime organicamente, e num certo sentido espontaneamente. A espontaneidade é um dos elementos fundamentais da sociedade orgânica. Mas para que haja isto é preciso que haja um estado de virtude; e para que haja esse estado de virtude é preciso que haja um estado de vítima sacrifical disposta a todos os sacrifícios, a todas as dores etc. De maneira que, com o perdão dos pecados que se vão acumulando, a sociedade orgânica ainda dê lucro no balanço do sobrenatural, e por esta forma receba de Deus as graças cada vez maiores, necessárias para se manter e se desenvolver (MNF, 18-11-1993). É certo que no homem tisnado pelo pecado original muita coisa boa ainda ficou. O pecado original tomou a natureza inteira, mas não a deteriorou logo tão completamente como se pensa. Ficaram partes não afetadas, não atingidas, que tinham uma certa analogia e uma certa participação com o estado de inocência do paraíso. E esse bem que existia no homem da época patriarcal era muito maior que o bem da inocência de hoje em dia. O inocente de hoje é muito menos rico de inocência do que o inocente da inocência patriarcal. A noção de "inocência patriarcal" precisa ser tomada e burilada um tanto, mas a expressão me agrada enormemente (MNF, 18-11-1993). Lembro-me do caso daquele militar norte-americano (Coronel John Ripley, 1939-2008) que conseguiu dinamitar uma ponte enquanto rezava jaculatórias a Jesus e Maria. Ele fez algo que se fosse realizada na época em que foi escrito o Antigo Testamento seria um dos episódios mais marcantes das Escrituras. Entretanto, ele ficou relegado de tal maneira que, quando tomou contato com os nossos, vê-se que o contato foi para ele uma graça singularíssima, que fez cessar até certo ponto o exílio em que se encontrava. E a resposta dele — "os senhores não sabem o que significa esse encontro para mim" — mostra como isso é verdade. Ele fez uma proeza admirabilíssima, e é odiado por isso. Até o fim de minha vida, espero não esquecer que esse homem existiu. Ora, sabendo que existe um homem capaz dessa proeza, que se Roland a fizesse seria um dos episódios culminantes da sua vida, é obrigação nossa tirar o pano com que quiseram ocultá-lo, jogar fora o pano e dizer: "Este é o homem!" Entretanto, pode-se perguntar se ele tinha a percepção mística da finura do ideal contra-revolucionário, que teve o Andreas Hoffer (1767-1810) ao combater em favor dos Habsburgs. Isso nos leva a compreender pelo menos duas modalidades de inocência. Uma é a inocência porque não pecou e não pecará. A outra é a inocência que viu, amou, odiou o contrário e explicitou. São duas coisas diferentes (MNF, 18-11-1993). Autonomia e acatamento à autoridade Na organicidade, o que mais chama a atenção é o encaixe dos vários elementos que compõem o corpo social. É o modo de eles se encaixarem e combinarem uns com os outros, de maneira a formar algo que é o plano de Deus, não dos homens, e que Deus executa quando os homens são fiéis à Sua graça. Existe um livre jogo dos elementos que constituem uma sociedade, de maneira que tais elementos são e atuam quase como se fossem inteiramente autônomos. Nessa autonomia, se for respeitada a Lei de Deus, se todos fizerem uso reto dessa autonomia, nasce a realização de um plano de Deus a respeito daquele grupo social, que homem nenhum seria capaz de excogitar. Trata-se de distinguir profeticamente, no plano histórico, o que Deus quer, e que Ele exprime por essa espécie de impulsão ou de sopro que dá aos elementos autônomos que constituem um corpo social. A organicidade é esta autonomia que, sem dar em rebeldia, em descabelamento ou em anarquia, está cheia de surpresas, de coisas com que não se contava (MNF, 01-10-1993). Esta é a verdadeira liberdade: conhecer o plano da Providência e ajudá-lo a realizar-se. É uma atitude muito humilde, porque não se trata do grande homem que teve uma ideia e vai executá-la, mas do filho obediente que quer saber o que pensa o pai, e quer ajudá-lo a explicitar, a mandar, a dirigir, a fazer, certo de que ali está o caminho verdadeiro. Veja-se, por exemplo, o Brasil. De modo geral, a formação dos vários Estados que o compõem, com os limites e as circunstâncias peculiares a cada um, foi feita com certa espontaneidade. As coisas se moveram naturalmente, segundo as necessidades e conveniências de seus habitantes, mas correspondiam também aos desígnios de Deus. Isto faz a unidade brasileira. O principal é deixar cada povo respirar livremente (MNF, 01-10-1993). O povo que compreendeu melhor essa liberdade dentro da organicidade, e a pratica por instinto, é o austríaco. E daí vem uma das razões de meu gosto por eles. Por exemplo, aquelas corporações que desfilaram no enterro da imperatriz Zita de Habsburg . Elas se constituíram no Tirol e outras zonas, mais ou menos espontaneamente. E correspondiam, ao mesmo tempo, a uma certa necessidade do império austríaco e a um desígnio de Deus. Daí também aquela unidade, aquela coesão, aquela brüderschaft, aquela irmandade que existe ali, e que é tão bonita. Na Prússia, por exemplo, isso não existe (MNF, 01-10-1993). Isto equivale a dizer: "O plano de Deus está nisso. Preste atenção, para ver o que produz de bom. Só depois é que deve pensar se isso deve ser corrigido ou não". Isto entra no fundo de tudo. O fundamento último do modo como eu faço isso, aquilo e aquilo outro obedece em geral a disposições de alma assim. Governo é isto, o resto é regulamentação policial. A Providência exige de mim que aceite toda espécie de humilhações. Mas para que essas humilhações não deem num caos, não signifiquem a negação do princípio de autoridade, Ela me dá uma espécie de carisma de respeitabilidade. E esse carisma faz com que, com bondade, a autoridade se faça sentir. É preciso esperar a ocasião. Esperar com respeitabilidade, de maneira que a autoridade conserva sempre a possibilidade psicológica de se exercer, e exercer até com força, mas quando Deus quiser. Quando aparece a necessidade evidente e óbvia de intervir, então intervenho. Mas é a partir da aceitação de toda humilhação. Então isso é das recompensas que Deus dá. É curioso, mas Deus quer de nós tanta lógica e nos conduz pelo caminho do non sense. O caminho do "rio chinês" é o caminho do non sense, e quantas e quantas vezes se é obrigado a agir pelo non sense... Entra aqui um dos elementos característicos da organicidade. A organicidade leva as coisas de um jeito tal, que muitas vezes é incompreensível, a ponto de parecer irracional. Mas ela se mantém e realiza um plano de Deus (MNF, 01-10-1993). É da ordem normal do Estado ter dirigentes que tenham fé e saibam mexer, ajeitar etc. Por exemplo, o trato de São Luís IX com sua mãe, Branca de Castela, e sua esposa, Margarida de Provence. Elas eram sogra e nora. São Luís queria ir à Cruzada, e elas não queriam que ele fosse. E se coligavam para criar obstáculos. Às vezes ele adiava a Cruzada, para contornar esses obstáculos e não entrar em luta com as duas, e depois ia. E às vezes ele “tranchait” (tomava uma atitude muito categórica): "Eu vou!" Aí elas viam que não tinha conversa, e o deixavam ir. Esse modo de agir, que poderia parecer fora da normalidade, é a normalidade quando existe um rei — que não precisa ser necessariamente um rei um santo — que tenha uma certa ideia desse jogo. O juízo sobre esse modo de agir se faria examinando o efeito do que o rei faz, e vendo se esse efeito favorece ou não a linha dinâmica rectrix do mal. Porque o mal tem suas linhas rectrix, e se a condescendência favorece “tout court” (sem qualquer equívoco, realmente) uma linha dessas, ela está errada. O povo de algum modo intuiria, e de outro lado os homens ilustres e capazes de explicitar tal juízo deveriam fazê-lo (MNF, 01-10-1993). |