Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção II

Capítulo IV

Proposição 33

 

Impugnada

O papel da Igreja é ser a favor dos pobres contra os capitalistas. Ela deve, pois, apoiar a atual campanha pela "Reforma Agrária".

Afirmada

A Igreja não é contra os capitalistas, nem contra o capitalismo em si. Ela é tão somente contra os abusos deste e contra os maus capitalistas.

Já ficou demonstrado que a "Reforma Agrária", além de injusta, é nociva ao País todo, aos pobres como aos ricos. O amor aos pobres não leva, pois, a abraçar tal "Reforma".

 

Comentário

A palavra "pobreza" pede um esclarecimento. Cumpre distinguir entre os que são absolutamente pobres, isto é, os que, empregados ou desempregados, vivem em condição sub-humana; e os relativamente pobres, isto é, os que vivem em condições suficientes e dignas, mas constituem a parte menos abastada da população.

A pobreza dos primeiros constitui uma situação da qual a Igreja se condói maternalmente, e que ela faz o possível para eliminar ou, pelo menos, mitigar. Pode-se dizer que o êxito nesta tarefa é até uma glória especificamente sua, pois não pode ser alcançado sem o concurso inapreciável da caridade cristã. Aos pobres deste gênero a Igreja ama como um tesouro que lhe foi particularmente confiado por Jesus Cristo, ama-os como a mãe extremosa ama o filho doente, junto ao qual representa a título especial a Providência de Deus.

A Igreja, pois, é a favor dos pobres. É isto para ela um ponto de honra.

Mas uma coisa é ser pura e simplesmente a favor dos pobres, outra é ser a favor deles contra os ricos, os poderosos ou os nobres. Se é disto que se trata, cumpre distinguir: contra os maus ricos, que oprimem os pobres, contra os governos que os acabrunham com impostos e confiscam toda a propriedade particular em favor do Estado, sim. Para estes valem as palavras de Jesus Cristo: "Mais fácil é um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus" (235), e as do Livro da Sabedoria: "Os poderosos serão poderosamente atormentados" (236). Mas contrária aos nobres, aos ricos ou aos potentados bons, que cumprem retamente sua alta missão, a Igreja não é. Antes, ela os apoia maternalmente e os cerca do prestígio e da consideração que fazem jus.

Uma comparação esclarecerá o assunto. Assim como a Igreja é pelos pobres, é também pelos órfãos e pelas viúvas, pelos anciãos e pelos doentes. Quer isto dizer que ela é contra quem não for viúva nem órfão, quem for moço ou sadio? Evidentemente não. Só será contra quem perseguir os órfãos e viúvas, quem oprimir os velhos ou os doentes.

Do mesmo modo, ela não é contra os que não são pobres, mas contra os que perseguem os pobres ou lhes negam o que de direito lhes pertence.

Em suma, como foi dito (237), a Igreja é a favor de uma sociedade com classes harmonicamente hierarquizadas e ligadas umas às outras pelo amor de Jesus Cristo.

Seu desvelo materno se estende também aos relativamente pobres, mas a título algum tanto diverso. Ama-os como filhos, e especialmente como filhos pequeninos, que entretanto precisam menos de seu apoio.

* * *

Mas, assim como é justo que a mãe ame os filhos doentes e pequenos, porque tais, justo é que ame os filhos robustos e bem sucedidos, regozijando-se e dando graças a Deus pelo êxito destes. Em conseqüência, a Igreja se rejubila maternalmente com a prosperidade dos seus filhos da classe média e alta, e os convida a retribuírem este amor por uma atitude justa e generosa em relação aos necessitados.

Textos da Sagrada Escritura

Sobre o dever que incumbe à Igreja, de falar contra o abuso do poder ou da fortuna, importa citar aqui mais alguns textos da Sagrada Escritura:

O Evangelho contra os maus ricos

"Ai de vós que sois ricos, porque tendes a vossa consolação. Ai de vós que estais fartos, porque vireis a ter fome" (238).

Contra as pessoas apegadas aos bens da terra

"Eia, ricos, chorai agora, gemei desesperadamente, por causa das misérias que sobre vós advirão. Vossas riquezas apodreceram e vossos vestidos foram destruídos pela traça. Enferrujou-se o ouro e a prata de vossa propriedade; sua ferrugem servirá de testemunha contra vós, e como fogo devorará as vossas carnes. Acumulastes contra vós tesouros de ira, para os últimos dias..." (239).

O livro da Sabedoria condena os que abusam do poder

"Prestai atenção, vós que dirigis as multidões e que vos comprazeis do número das nações, porque o poder vos foi dado por Deus e a força pelo Altíssimo que examinará as vossas obras e perscrutará os vossos pensamentos... Porque o julgamento dos que governam será muito severo.... Deus, efetivamente, não excetuará pessoa alguma, nem terá atenção com as grandezas de ninguém, pois Ele criou o pequeno e o grande e tem, igual cuidado por todos; mas os poderosos serão poderosamente atormentados" (240).

 

Textos Pontifícios

A Igreja não quer a luta mas a concórdia entre as classes

"... o Nosso Predecessor de feliz memória na sua Encíclica se referia principalmente àquele sistema em que ordinariamente uns contribuem com o capital e outros com o trabalho para o comum exercício da economia, qual ele próprio a definiu na frase lapidar: "Nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital" (Enc. Rerum Novarum, § 28).

Foi esta espécie de economia que Leão XIII procurou com todas as veras regular segundo as normas da justiça; de onde se segue que de per si não é condenável. E realmente, de sua natureza, não é viciosa: só viola a reta ordem, quando o capital escraviza os operários ou a classe proletária para que os negócios e todo o regime econômico estejam nas suas mãos e revertam em vantagem própria, sem se importar com a dignidade humana dos operários, com a função social da economia e com a própria justiça social e o bem comum" (241).

A Igreja censura os que acendem a luta dos pobres contra os ricos

"Trabalhariam pessimamente pelo bem do operário – convençam-se disto – os que, ostentando a pretensão de melhorar-lhe as condições de existência, não lhe dessem a mão senão para a conquista dos bens frágeis e perecíveis desta terra, negligenciassem esclarece-lo sobre seus deveres à luz dos princípios da doutrina cristã, e chegassem mesmo ao ponto de excitar sempre mais sua animosidade contra os ricos, entregando-se a essas declamações amargas e violentas por meio das quais nossos adversários impelem as massas para a subversão da sociedade.

Para afastar perigo tão grave, será necessária, Venerável Irmão, vossa inteira vigilância. Prodigalizando vossos conselhos – como já o tendes feito – aos que visam diretamente melhorar a condição do operário, vós lhes pedireis que evitem as intemperanças de linguagem que caracterizam os socialistas, e penetrem profundamente de espírito cristão toda a sua ação, quer tenda a realizar, quer a propagar tão nobre programa. Se este espírito cristão faltar, sem falar no mal incalculável que esta ação acarretaria, certamente dela não resultaria benefício algum. Seja-Nos lícito esperar que todos sejam dóceis às vossas instruções; se alguém se mostrar obstinado, removei-o sem hesitação do cargo que lhe estiver confiado" (242).

A Igreja não é contrária ao capitalismo em si

"Todo espírito reto deve reconhecer que o regime econômico do capitalismo industrial contribuiu para tornar possível, e até estimular o progresso do rendimento agrícola; que ele permitiu, em inúmeras regiões do mundo, elevar a um nível superior a vida física e espiritual da população do campo. Não é, pois, o regime em si mesmo que se deve acusar, mas o perigo que ele faria correr caso sua influência viesse alterar o caráter específico da vida rural, assimilando-a à vida dos centros urbanos e industriais, fazendo do "campo", tal como é entendido aqui, uma simples extensão ou anexo da "cidade".

Essa prática, e a teoria que a apoia, é falsa e nociva" (243).

A Igreja não é contra os ricos: é licito enriquecer-se

"Nem é vedado aos que se empregam na produção, aumentar justa e devidamente a sua fortuna; antes, a Igreja ensina que é justo que quem serve a sociedade e lhe aumenta os bens, se enriqueça também desses mesmos bens conforme a sua condição, contanto que o faça com o respeito devido à lei de Deus e salvos os direitos do próximo, e os bens se empreguem segundo os princípios da fé e da reta razão" (244).

A Igreja não é contra os poderosos, mas contra os que abusam do poder

"Se os chefes de Estado se deixarem arrastar a uma dominação injusta, se pecarem por abuso de poder ou por orgulho, se não proverem ao bem do povo, saibam que um dia terão de dar contas a Deus, e essas contas serão tanto mais severas quanto mais santa for a função que eles exercem e mais elevado o grau de dignidade de que estiverem investidos" (245).


Notas:

(235) Mt. 19, 24.

(236) Sab. 6, 7.

(237) Cfr. Proposição 2.

(238) Luc. 6, 24-25.

(239) Tgo. 5, 1-3.

(240) Sab. 6, 2 ss.

(241) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 37-38.

(242) Bento XV, Carta "Soliti Nos", de 11 de março de 1920, a Mons. Marelli, Bispo de Bergamo, "Bonne Presse", Paris, Tomo II, págs. 127-128.

(243) Pio XII, Discurso de 2 de julho de 1951, ao 1º Congresso Internacional sobre os Problemas da Vida Rural – "Discorsi e Radiomessaggi", Vol. XIII, págs. 199-200.

(244) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 51.

(245) Leão XIII, Encíclica "Immortale Dei", de 1º de novembro de 1885 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 6.


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