Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção II

Opiniões socializantes que preparam o ambiente para a "Reforma Agrária": exposição e análise

Proposição 9

Impugnada

Sendo um direito o acesso do trabalhador à propriedade rural, a divisão compulsória das terras deve ser aplaudida.

Essa divisão trará como conseqüência a supressão do regime do salariado. Pois todos os trabalhadores serão proprietários, e naturalmente preferirão lavrar suas próprias terras, em vez de lavrar terra alheia.

Afirmada

É justo que, num regime social equilibrado, possam os trabalhadores rurais, em larga medida, tornar-se proprietários de terras.

Sendo indispensáveis a um regime justo e equilibrado, em países como o Brasil, também a grande e a média propriedade, é necessário que o acesso do trabalhador à condição de proprietário não se opere em escala tal, que as propriedades desse tipo – e especialmente as médias – sejam raras, ou de todo inexistentes.

Além disto, é utópico pensar que o acesso do homem do campo à situação de proprietário se de geralmente em proporções tais, que sua terra possa absorver toda a capacidade de trabalho dele, e dar-lhe, bem como aos seus, todo o sustento. Muitos pequenos proprietários precisarão ser ao mesmo tempo assalariados, para aproveitarem suas horas disponíveis e obterem o necessário para sua condigna subsistência.

Por fim, cumpre lembrar que, nas condições concretas da vida terrena, não só haverá sempre pessoas que, sem terem qualquer propriedade, precisarão viver exclusivamente de seu trabalho, como outras que necessitarão da caridade para subsistir.

É uma glória da civilização cristã tornar tais situações tão pouco freqüentes quanto possível. E é uma glória da Igreja o afirmar em sua doutrina a sublime dignidade da condição de pobre, resignar o pobre à sua situação, e atrair em favor dos indigentes os tesouros da caridade cristã.

 

Comentário

 

1 – "Em países como o Brasil"

Estas palavras, na proposição afirmada, traduzem uma ressalva. Pode haver países onde situações de desequilíbrio entre a população e o território, a indústria e agricultura etc., exijam uma formulação mais matizada destes princípios. No presente trabalho, todo feito com vistas à realidade brasileira, não é o caso de entrar na análise desses matizes. Basta afirmar o princípio, que, nesta formulação simples, é válido para as situações normais, ou mesmo de algum ponto de vista supranormais, como as do Brasil, com a superabundância de terras.

2 – "Summum jus, summa injuria"

O homem tende, num impulso natural justo e legítimo, à estabilidade e à abastança. E como a condição de proprietário é aquela que lhe assegura melhor uma e outra coisa, é razoável que o trabalhador tenda legitimamente a se tornar proprietário.

Uma organização social ou econômica que impedisse a realização desse desejo seria injusta.

Daí entretanto não se deduzem as conseqüências extremas da proposição errada. A proposição certa estabelece os "conformes" desse princípio, que não pode ser alegado contra o bem comum nem contra outros direitos também legítimos: contra, por exemplo, o dos proprietários grandes ou médios que a justo título possuem suas terras, e que não podem ser delas espoliados sem mais nem menos. "Summum jus, summa injuria", diz o sábio brocardo jurídico: convém lembrá-lo em relação a quaisquer direitos, inclusive o dos trabalhadores.

3 – Pressuposto errado

Ademais, a proposição impugnada supõe que, para operar o acesso do trabalhador à propriedade da terra, é necessário tomá-la a outros. Dada a imensa extensão de terras devolutas de que o País dispõe, este pressuposto é flagrantemente falso.

4 – Propriedade cumulativa

Não é exato que o acesso do empregado rural à condição de proprietário importe, em princípio e necessariamente, em uma partilha de terras particulares, ainda que se faça abstração da existência das devolutas.

Tempo houve em que vigorou no Ocidente cristão uma forma de propriedade cumulativa, de que a enfiteuse é um resquício. Comportava ela a existência conjunta da grande e da média ou pequena propriedade sobre um mesmo imóvel. Excede os limites deste trabalho analisar se tal sistema pode ser revivido nas condições morais, sociais, econômicas e políticas de nossos dias. Entretanto, lembrando essa forma, cuja liceidade moral é incontestável, provamos que o acesso à propriedade rural não se faz necessariamente dividindo as terras.

5 – Outras formas de acesso à condição de proprietário

Se bem que a tendência mais natural do trabalhador agrícola consista em ter acesso à propriedade da terra, pode ele tornar-se proprietário de outros bens, satisfazendo assim seu legítimo anseio de estabilidade e largueza. Por exemplo, pode acumular economias, comprar imóveis urbanos maiores ou menores, ações, títulos etc. Para que tal se dê, será da maior conveniência que a sociedade e o Estado facilitem aplicação segura e rendosa dessas economias.

Não é, pois, só dividindo terras que o trabalhador rural pode tornar-se proprietário.

6 – Não-proprietários e indigentes

Quanto à parte final da proposição certa, cumpre acentuar a diferença entre o assalariado e o indigente.

O primeiro deve encontrar em seu trabalho os meios para uma subsistência suficiente e decorosa, sua e dos seus, e para amealhar economias. Desde que o seu salário seja justo e baste a este objetivo, não é injusta a situação do assalariado, ainda que não chegue a ser proprietário de nenhum imóvel. Ademais, não precisa ele da caridade. O que se lhe deve por seu trabalho lhe basta.

O indigente é o que não tem trabalho ou não tira deste o suficiente para viver, o que tanto se pode dar por culpa própria (ócio, vícios, despesas exageradas etc.), quanto sem ela (desemprego, doenças, crises etc.). Precisa da caridade.

 

Textos Pontifícios

 

É desejável o acesso do trabalhador ativo à condição de proprietário

"... estimule-se a industriosa atividade do povo com a perspectiva da sua participação na propriedade do solo" (168).

É justo que o operário forme seu pecúlio

"... que os proletários, trabalhando e vivendo com parcimônia, adquiram o seu modesto pecúlio" (169).

É deplorável que a esperança do acesso à terra seja negada a muitíssimos operários

Pio XI lamenta a existência de um "ingente exército dos jornaleiros relegado à ínfima condição e sem a mínima esperança de se verem jamais senhores de um pedaço de terra" (170).

A largueza do salário deve favorecer a formação do patrimônio do operário

"É... necessário empregar energicamente todos os esforços, para que, ao menos de futuro, as riquezas granjeadas se acumulem em justa proporção nas mãos dos ricos, e, com suficiente largueza, se distribuam pelos operários; não para que estes se dêem ao ócio, - já que o homem nasceu para trabalhar como a ave para voar, - mas para que, vivendo com parcimônia, aumentem, com a economia, os seus haveres, e, administrando com prudência o patrimônio aumentado, possam mais fácil e seguramente prover aos encargos de sua família; e, livres assim de uma condição precária e incerta qual é a dos proletários, não só possam fazer frente a todas as eventualidades durante a vida, mas deixem ainda por morte alguma coisa aos que lhes sobrevivem" (171).

"O operário que receber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às da sua família, e for avisado, seguirá o conselho que parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se-á a ser parcimonioso e obrará de forma que, com prudentes economias, vá juntando um pequeno pecúlio, que lhe permita chegar um dia a adquirir um modesto patrimônio. Já vimos que a presente questão não podia receber solução verdadeiramente eficaz, se se não começasse por estabelecer como princípio fundamental a inviolabilidade da propriedade particular. Importa, pois, que as leis favoreçam o espírito de propriedade, o reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível, entre as massas populares" (172).


Notas:

(168) Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 33.

(169) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 - "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 26.

(170) Idem, pág. 25.

(171) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – Coleccion Completa de Encíclicas Pontifícias, "Editorial Poblet", de Buenos Aires, pág. 1285.

(172) Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 32-33.


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