Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção II

Opiniões socializantes que preparam o ambiente para a "Reforma Agrária": exposição e análise

Proposição 7

Impugnada

A alguns parece que a supressão de todas as desigualdades seria justa, mas é utópica. A estes a coerência pediria que reconhecessem que a lei deve tender para esse objetivo, da mesma maneira como a Medicina tende a abolir todas as doenças embora seja certo que nunca o conseguirá. Pois das desigualdades se deve dizer o mesmo que das doenças: quanto menos, melhor.

A "Reforma Agrária", se não alcançar igualdade completa, deve pelo menos abolir em todo o Brasil as grandes propriedades e as médias, admitindo apenas as pequenas.

Particularmente a grande propriedade insulta o senso da igualdade natural dos homens e, pois, constitui um odioso privilégio. Por isto deve ela ser drástica e imediatamente abolida.

Afirmada

As desigualdades de que resulta que a alguns faltem as condições normais de existência em vantagem de outros a que sobrem os bens, jamais serão inteiramente abolidas. Mas a lei deve visar a aboli-las, como a Medicina em relação às doenças.

Quanto às desigualdades que existem sem prejuízo do direito de todos a normais condições de vida, devem ser reconhecidas por legítimas, e até protegidas por lei.

Estes princípios se aplicam exatamente, não só à propriedade média, mas também à grande propriedade, que em si mesma, dentro dos princípios aqui expostos, nada tem de injusto.

 

Comentário

 

1 – O Estado, mantenedor do equilíbrio social

Pode parecer espantoso afirmar-se que a hierarquia social, mantida nos devidos limites, deve ser protegida pela lei. Os fortes, embora sejam habitualmente minoria, não se defendem bem por si mesmos contra os fracos?

Sim. Mas nem sempre os mais educados, mais nobres ou mais ricos são os mais fortes. Situações há em que a multidão infrene ou super-organizada oprime as classes dirigentes. O sindicalismo norte-americano inspira a vários políticos dos Estados Unidos receios neste sentido. Em casos tais, cumpre ao Estado intervir no interesse da justiça e do equilíbrio orgânico da sociedade.

Em outras situações, os mais fracos são a maioria. Então deverá a lei assumir a defesa dos direitos destes. Aliás, o fomento da participação nos lucros (144) e do acesso do trabalhador à condição de proprietário (145) está nesta linha.

Em suma, a ação do Estado deve ser orientada, como dissemos, para a manutenção do equilíbrio e da concórdia entre as classes, e não para a participação em uma luta de extermínio de uma contra outra.

2 – Equilíbrio orgânico

Mas, dirá alguém, parece até risível falar-se em equilíbrio numa sociedade em que há desigualdades. O equilíbrio dos pratos de uma balança não se dá somente quando ambos estão em nível igual?

A resposta é simples. O mal do socialismo está em grande parte em ser materialista, e em considerar os assuntos atinentes à sociedade humana com os critérios que servem para as coisas materiais. O equilíbrio entre as classes sociais não é o que pode reinar, por exemplo, entre duas pedras de igual peso, mas o que deve existir entre os membros de um organismo vivo. O modelo para a sociedade humana não é a balança, mas o organismo, constituído de membros diferentes em forma, função e importância, mas harmônicos entre si. Ou melhor ainda, o equilíbrio entre as três potências da alma, inteligência, vontade e sensibilidade. E este não é de nenhum modo um equilíbrio de igualdade, mas sim de proporcionalidade.

3 – Fomento da grande propriedade

Quanto à grande propriedade, pode em determinadas circunstâncias prestar ao País – e já os tem prestado – serviços que estão fora do alcance da média e da pequena. É isto tão notório, que dispensa uma demonstração, a qual não caberia, aliás, nos quadros estritos deste trabalho. Assim, além de justa em si, a grande propriedade também pode ser útil ao interesse nacional.

Em tese, podem-se conceber, pois, situações em que ela deva ser, não só apoiada, mas até fomentada.

4 – Ação subsidiária do Estado

Já que se falou em intervenção do Estado, cumpre formular aqui um princípio sem o qual não pode ser compreendida a sua posição segundo a doutrina católica. É o princípio da subsidiariedade, ou da função supletiva: a família só faz pelo indivíduo o que este não pode fazer por si só; o Município, por sua vez, só faz pela família o que esta não pode fazer por si mesma. E assim o Estado em relação ao Município. É uma escala em que cada grau é subsidiário de outro. Em lugar de fazer tudo por seus próprios meios, o Estado deve respeitar cuidadosamente a esfera de ação da família, das associações profissionais e da Igreja.

 

Textos Pontifícios

 

Normalmente, deve o Estado proteger de modo especial os pobres

"A classe rica faz das suas riquezas uma espécie de baluarte e tem menos necessidade da tutela pública. A classe indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, conta principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre" (146).

Compete ao Estado preservar ricos e pobres das lutas sociais

"Intervenha... a autoridade do Estado e, reprimindo os agitadores, preserve os bons operários do perigo da sedução e os legítimos patrões de serem despojados do que é seu" (147).

O igualitarismo sopra a revolta da multidão contra os que têm posses

"Desfeito... ou afrouxado aquele duplo vínculo de coesão de todo o corpo social, a saber, a união dos membros entre si pela caridade mútua, e dos membros com a cabeça pelo acatamento à autoridade, quem se admirará com razão, Veneráveis Irmãos, de que atualmente a sociedade humana se apresente como que dividida em duas grandes facções que lutam entre si impiedosamente e sem tréguas?

Defrontando-se com os que a sorte ou a atividade própria dotaram de bens de fortuna, estão os proletários e operários, abrasados pelo ódio porque, participando da mesma natureza, não gozam entretanto da mesma condição. Naturalmente, enfatuados como estão pelos embustes dos agitadores, a cujo influxo costumam submeter-se inteiramente, quem será capaz de persuadi-los de que, nem por serem iguais em natureza, devem os homens ocupar o mesmo posto na vida social; mas que, salvo circunstâncias adversas, cada um terá o lugar que conseguiu por sua conduta? Assim, pois, os pobres que lutam contra os ricos como se estes houvessem usurpado bens alheios, agem não somente contra a justiça e a caridade, mas também contra a razão; principalmente tendo em vista que podem, se quiserem, com honrada perseverança no trabalho, melhorar a própria fortuna. É desnecessário declarar quais e quantos prejuízos acarreta esta rivalidade de classes, tanto aos indivíduos em particular, como à sociedade em geral. Todos estamos vendo e deplorando as freqüentes greves, em que costuma ficar repentinamente paralisado o curso da vida pública e social, até nas funções de mais imprescindível necessidade; e, igualmente, essas ameaçadoras revoltas e tumultos em que, com freqüência, se chega ao emprego das armas e ao derramamento de sangue" (148).

Interesse dos empregados: usar de justiça e caridade para com os empregadores

"Lembrem-se também os empregados das obrigações de caridade e de justiça para com os empregadores, e fiquem certos de que dessa maneira melhor ainda defenderão os próprios interesses" (149).

Ricos e pobres são filhos de Deus

"... é necessário afastar da democracia cristã outra acusação: a de que ela consagra os seus cuidados de tal modo aos interesses das classes inferiores, que parece pôr de lado as classes superiores, que não são menos úteis para a conservação e melhoramento da sociedade. Este perigo está prevenido na lei cristã da caridade, de que falamos acima. Esta abre os seus braços para acolher todos os homens, qualquer que seja a sua condição, como filhos de uma só e mesma família, criados pelo mesmo Pai benigníssimo, resgatados pelo mesmo Salvador e chamados à mesma herança eterna" (150).

Principalíssimo dever do Estado: defender a propriedade contra o igualitarismo

"É dever principalíssimo dos governos assegurar a propriedade particular por meio de leis sábias. Hoje especialmente, no meio de tamanho ardor de cobiças desenfreadas, é preciso que o povo se conserve no seu dever; porque, se a justiça lhe concede o direito de empregar os meios de melhorar a sua sorte, nem a justiça nem o bem público consentem que se danifique alguém na sua fazenda nem que se invadam os direitos alheios sob pretexto de não se sabe que igualdade" (151).

Elogio do princípio da função supletiva

"... assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los.

Deixe, pois, a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam de que quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, segundo este princípio da função "supletiva" dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro o estado da nação" (152).

Família, dignidade humana e função supletiva

"Paz social – Esta encontra uma base firme no respeito mútuo e recíproco da dignidade pessoal do homem. O Filho de Deus Se fez homem e sua Redenção não diz respeito somente à coletividade, mas também ao homem individual: "ele amou-me, e entregou-Se a Si mesmo por mim", como diz São Paulo aos gálatas (Gal. 2,20). E se Deus amou a tal ponto o homem, isto significa que este Lhe pertence e que a pessoa humana deve absolutamente ser respeitada. Tal o ensinamento da Igreja, que, para a solução das questões sociais, fixou sempre o olhar sobre a pessoa humana e ensinou que as instituições e as coisas – os bens, a economia, o Estado – existem principalmente para o homem, e não o homem para elas. As perturbações que abalam a paz interior das nações têm sua origem precipuamente no fato de que o homem tem sido tratado, de modo quase exclusivo, como um instrumento, uma mercadoria, uma desprezível peça de uma grande máquina, uma simples unidade de produção. Somente quando se tomar como base de apreciação do homem e de sua atividade a sua dignidade de pessoa é que se poderão apaziguar os conflitos sociais e as divergências, muitas vezes profundas, que reinam, por exemplo, entre os empregadores e os operários. Poder-se-á sobretudo garantir à instituição familiar as condições de vida, de trabalho e assistência adequadas a permitir-lhe desincumbir-se melhor de sua função de célula da sociedade e de primeira comunidade instituída pelo próprio Deus para o desenvolvimento da pessoa humana" (153).

Função do Estado: absorver, não; proteger, sim

"Qual é... a verdadeira noção de Estado, senão a de um organismo moral fundado sobre a ordem moral do mundo? Ele não é uma onipotência opressiva de toda autonomia legítima. Sua função, sua magnífica função é, pelo contrário, favorecer, auxiliar, promover a íntima coalizão, a cooperação ativa no sentido de uma unidade mais elevada de membros que, ao mesmo tempo que respeitam sua subordinação ao fim do Estado, provêm do melhor modo ao bem de toda a comunidade, precisamente na medida em que conservam e desenvolvem seu caráter particular e natural. Nem o indivíduo, nem a família devem ser absorvidos pelo Estado. Cada um conserva e deve conservar a própria liberdade de movimentos, desde que ela não crie o risco de causar prejuízo ao bem comum. Ademais, há certos direitos e liberdades dos indivíduos – de cada indivíduo – ou da família, que o Estado deve proteger sempre e não pode violar nem sacrificar a um pretenso bem comum. Referimo-nos, para não citar mais que alguns exemplos, ao direito à honra e à boa reputação, ao direito e à liberdade de venerar o verdadeiro Deus, ao direito originário dos pais sobre os filhos e sobre sua educação" (154).

O Estado não deve atentar contra a propriedade privada

"Os socialistas, para curar este mal (a opressão dos proletários por um pequeno número de ricos), instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens de um indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para os Municípios ou para o Estado. Mediante esta trasladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes.

Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Outrossim, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social" (155).


Notas:

(144) Cfr. Proposição 6.

(145) Cfr. Proposição 3.

(146) Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 27.

(147) Idem, pág. 28.

(148) Bento XV, Encíclica "Ad Beatissimi", de 1º de novembro de 1914 – "Les Enseignements Pontificaux – La Paix Intérieure des Nations – par les moines de Solesmes"- Desclée & Cie., págs. 286-287.

(149) Pio XI, Encíclica "Divini Redemptoris", de 19 de março de 1937 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 28.

(150) Leão XIII, Encíclica "Graves de Communi", de 18 de janeiro de 1901 - "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 8.

(151) Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 27-28.

(152) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis,págs. 31-32.

(153) João XXIII, Radiomensagem de Natal de 1959 – AAS, vol. LII, n. 1, págs. 28-29.

(154) Pio XII, Discurso ao Congresso Internacional das Ciências Administrativas, de 5 de agosto de 1950 – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XII, pág. 160.

(155) Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 5.


Índice  Adiante Atrás Página principal