Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção I

A investida do socialismo contra a propriedade rural

Titulo III

Como a campanha pela "Reforma Agrária" encontra eco num povo que não é socialista

Capítulo I

A propaganda socialista sub-reptícia

 

A "Reforma Agrária", típica revolução social e religiosa

As crises ideológicas e institucionais tendem por natureza a se alastrarem para todos os terrenos, entre os quais o do vocabulário. Elas exercem uma pressão sobre certas palavras, que vão assim perdendo sua clareza e admitindo sentidos cada vez mais vastos e imprecisos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o termo "revolução". O que significa ele hoje em dia? Pode-se dizer que a "Reforma Agrária" é uma revolução?

A palavra "revolução" designa muitas vezes uma ação apoiada na força e destinada a impor aos poderes públicos, ou a uma categoria numerosa de pessoas, ou enfim a todo um povo, a aceitação de uma violação qualquer de direitos. A deposição de um chefe de Estado é, neste sentido, uma revolução. Como o é também o ato de um governo que, apoiado pela força, amplia suas atribuições além dos limites estatuídos por lei. Em ambas as hipóteses, a circunstância de ocorrer, ou não, derramamento de sangue é apenas acessória: a revolução arquetípica é cruenta, mas pode haver revoluções incruentas de caráter muito mais profundamente revolucionário do que ela.

Uma lei votada e sancionada pelos poderes competentes pode chamar-se revolucionária na acepção apontada? Se tal lei atenta contra instituições como, por exemplo, a propriedade ou a família, que resultam da própria ordem natural criada por Deus (47) e se fundam no Decálogo, então se deve dizer que é revolucionária: ela é um ato revolucionário do homem contra Deus.

Neste sentido, a lei que implantasse a "Reforma Agrária" constituiria uma revolução. Revolução de índole social e econômica, porque a "Reforma Agrária" visa a alterar a estrutura da sociedade e da economia. Revolução de cunho religioso, porque a alteração projetada é em si mesma contrária à lei de Deus e ao ensinamento da Igreja.

Ora, como é bem sabido, as revoluções tem como que intuições ou instintos políticos finíssimos, que as levam a dizer ou calar o que lhes convém, lhes inspiram a escolha de slogans adequados, e de fórmulas hábeis para irem revelando por etapas os seus desígnios.

É o que se nota nesta fase incipiente de agitação em prol da "Reforma Agrária".

A "Reforma Agrária" encontra diante de si um primeiro problema tático: se as doutrinas socialistas fossem enunciadas explícita e concatenadamente, como um sistema ideológico, e se sempre se dissesse que são socialistas, elas não seriam aceitas pela maioria dos brasileiros.

 

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Por isto mesmo, o único modo que há para as disseminar consiste em velá-las ou diluí-las sob um palavreado impreciso, que insinue sem afirmar. E ainda assim, insinuando uma ou outra tese socialista, cumpre evitar que seja posta em relação com as demais de maneira a se perceber que constituem um só bloco doutrinário firme e coeso.

Esta tática tem sido usada também por outras correntes, como a dos modernistas, acerca dos quais observou com perspicácia o Papa São Pio X: "Com astuciosíssimo engano, costumam apresentar suas doutrinas, não coordenadas e juntas em um todo, mas dispersas e como que separadas umas das outras, a fim de serem tidas por duvidosas e incertas, ao passo que de fato estão firmes e constantes" (48).

A primeira precaução desse método consiste em silenciar quanto possível sobre as benemerências da agricultura para com o trabalhador rural e o País.

Preparado o terreno, começa então a ofensiva. Realça-se que o homem do campo vive em condições infra-humanas. Em lugar de tratar o assunto com os matizes que ele comporta, apontando as zonas e as lavouras em que tal se dá, e as em que não se dá, simplifica-se e generaliza-se dando a entender que isto ocorre por toda parte.

Daí se passa para a procura de soluções.

Evidentemente, o problema posto assim em abstrato pede uma solução também em abstrato, isto é, a promulgação de uma lei que de um só golpe atenda às situações mais diversas na prática. Os discursos, as conferências, os artigos de revistas e jornais se multiplicam. A ocasião é boa para estadear dotes oratórios e literários, exibir erudição e fazer política. E assim o assunto, sempre tratado nas nuvens, começa a ferver.

Há uma categoria de espíritos que essa atmosfera atrai e põe em realce: são principalmente os "filósofos", quase diríamos os poetas, da agricultura e das questões sociais, que vivem nas cidades e tomam uma e outras como tema para literatura. Naturalmente sensíveis ao aplauso e ávidos de propaganda, são propensos às fórmulas fáceis, novas e sensacionais que lhes podem valer a admiração de certo público viciado em só apreciar o que é novo, extravagante e fácil de entender. E assim vão tendendo cada vez mais para as reformas drásticas e simplistas. O trabalhador ganha pouco? O remédio é obrigar o patrão a pagar-lhe mais. Pois o meio mais simplista de remediar a situação de quem não tem, é tirar de quem tem. O proprietário não tem renda suficiente para dela se deduzirem salários melhores: terras ele as tem; pois então dividam-se as terras. E assim por diante.

Outros espíritos tendem a se afastar desses ambientes. São os homens afeitos ao concreto, de inteligência matizada e objetiva, que não procuram soluções brilhantes mas sérias, que sabem que nem tudo se resolve com leis, e estão persuadidos de que as soluções imediatas raramente são as melhores. Estes, conservadores – no bom sentido do termo – à força de serem sensatos, e estimando o progresso real e não as aventuras, dificilmente atraem a atenção e nada de espetacular têm a dizer a multidões intoxicadas de sensacionalismo. Seus projetos de reforma, criteriosos, sérios, a serem realizados por etapas, não falam à imaginação.

O ambiente está preparado para tudo, assim, sem freios nem contrapesos, e por ele perpassam como relâmpagos algumas palavras que, por força das circunstâncias peculiares, se revestem de uma extraordinária riqueza sugestiva.

Não se trata de analisar aqui estas palavras em seu sentido próprio, legítimo e bem conhecido, mas nos imponderáveis que trazem consigo na atual situação.

Ouvimo-las e as lemos com freqüência crescente.

O vocábulo "evolução", por exemplo, insinua que todo o passado é necessariamente menos bom que o presente, e que o presente é menos bom que o futuro. Daí decorre uma tendência a rejeitar todas as tradições como coisa morta, e a pensar que tudo que existe deve ser mudado e que, portanto, não há, pela natureza das coisas, princípios nem instituições indestrutíveis até o fim do mundo. A propriedade privada fica, dessa maneira, atirada ao campo viscoso das discussões, considerando-se pelo menos tão natural que ela viva, como pereça.

A palavra "social", legítima em si, também tem sua magia. Ela insinua, soprada pela demagogia, que os interesses coletivos, em oposição necessária e crônica aos interesses privados, devem estar sempre procurando como cercear e algemar estes.

Um "problema" é, nestes ambientes, algo de viscoso e decorativo como um traje novo ou uma jóia. Cada qual se prende a um "problema" para resolvê-lo. E cada "problema" serve de "hobby" para certo número de afeiçoados. Feliz de quem descobre um "problema" novo e cria um círculo de "aficionados" para lhe degustar a análise e as possíveis soluções. Assim se vai originando o hábito de não ver em todo o corpo social senão uma imensa contextura de problemas. Os espíritos acabam, desta forma, desesperando das soluções comedidas e correntes, e procurando espetaculares soluções de base, que por uma reforma completa resolvam tudo. Quem sabe se o comunismo, que conseguiu pôr um foguete na lua, resolve todos estes problemas. Comunismo... a palavra arranha. É quase um palavrão. Mas um socialismozinho macio não seria útil?

"Feudalismo" e "latifúndio" são expressões freqüentemente tomadas em sentido pejorativo, das quais mais detidamente nos ocupamos na pág. .... [Proposição 8, n. 9].

Os exemplos poderiam multiplicar-se ao infinito. Mencionemos só mais um. É o emprego conjugado das palavras "democracia" e "justiça social". Democracia soa, para certos ouvidos, como igualdade absoluta. Justiça social passaria a ser, em conseqüência, tal democracia aplicada no terreno social e econômico. Logo, a justiça social, a essa luz, só se realiza plenamente na igualdade econômica e social completa, que é, como ensina Leão XIII, o objetivo do socialismo:

O socialismo "quer que no Estado o poder pertença ao povo, de tal modo que, sendo suprimidas as classes sociais e os cidadãos tornados iguais, se caminhe para a igualdade das fortunas. Por isso, também, quer que o direito de propriedade seja abolido, e que todas as riquezas que pertencem a particulares, mesmo os instrumentos de produção, sejam consideradas bens comuns" (49).

O próprio destas e de outra fórmulas consiste em que quem as emprega inocula por vezes o vírus do socialismo nas pessoas que as ouvem. E estas, por sua vez, não percebem que sua mentalidade se está tornando socialista.

Não há muito, falou-se da "ação subliminar" no cinema. Esta ação decorreria de se projetarem na tela, por instantes, algumas palavras – um slogan, por exemplo – e isto tão rapidamente que o público nem tivesse tempo de as perceber conscientemente. Entretanto, subconscientemente este lhes perceberia o sentido, que assim produziria sobre ele um efeito profundo e inadvertido.

Não sabemos se a "ação subliminar" no cinema existe realmente. Mas que há um processo "subliminar" de propaganda socialista, é certo.

Os exemplos acima não importam em negar que as palavras justiça social, evolução, problema e outras tenham um significado bom. Nem tampouco em contestar a necessidade de pesquisar os problemas que existem e dedicar-se a fundo à solução deles.

Afirmamos, isto sim, que no ambiente caótico em que vivemos tudo isto facilmente se transforma em veneno ou caricatura.

Em um clima tão falseado, não é difícil ir gradualmente levando todos a estudarem os problemas reais ou imaginários em função da solução simplista que é sacrificar por sistema o proprietário, suposto um nababo, ao trabalhador e ao Estado, sempre indigentes. O direito de propriedade é o grande inimigo de um e de outro. Se esse direito não existisse, todos se tornariam ricos!

E assim, por uma "ação subliminar" resultante de um conjunto de influências ambientais, de palavras esparsas de valor mágico, contendo opiniões veladas, se vai aos poucos ficando socialista.

Como se vê bem, é mais do que uma doutrina que se difunde. É uma mentalidade que se forma. E essa mentalidade é terreno fértil para a semeadura de todos os germes socialistas.

A infeliz cobaia desse método não percebe que foi ardilosamente objeto de uma "lavagem de cérebro" e que ficou socialista, e até militante do socialismo, sem saber o que é o socialismo.

Quando se quer formar essa mentalidade em um católico emocionável e ignorante da doutrina social dos Papas, é todo um palavreado muito legítimo que se emprega, infelizmente falseado. Assim, sob pretexto de provar que a Igreja não é contra o progresso, cria-se uma visão ingênua do presente e do futuro, marcada pelo otimismo evolucionista, e uma verdadeira idiossincrasia contra a tradição. Sob pretexto de modernidade e amor ao progresso, transige-se com costumes imprudentes e até censuráveis, que solapam a família. Sob pretexto de justiça social, cria-se a idéia de que a Igreja é mestra e paladina da mais radical igualdade. Enfim, sob o pretexto de legítima proteção aos pobres e aos pequeninos forma-se um estado de espírito rancorosamente hostil a toda e qualquer hierarquia, seja ela política, econômica, social ou até religiosa (50). Em suma, as palavras, em si excelentes e contendo um significado ótimo, podem continuar a ser as da doutrina católica mas são pronunciadas com o hálito pestífero do socialismo.

Leão XIII apontou claramente esse perigo: "... os socialistas, abusando do próprio Evangelho, a fim de enganarem mais facilmente os espíritos incautos, adotaram o costume de o torcerem em proveito de sua opinião" (51).

Essa tática socialista produziu lamentáveis efeitos, não só pelas tentativas absurdas de criar um socialismo católico, mas pelo aparecimento de toda uma categoria de católicos imbuídos de modernismo e, "pelas suas mesmas doutrinas, formados numa escola de desprezo a toda autoridade e todo freio" (52).

Decorreu daí um modernismo socialista assim descrito por Pio XI: "Quantos, com efeito, admitem a doutrina católica sobre a autoridade civil e o dever de lhe obedecer, sobre o direito de propriedade, os direitos e deveres dos operários da agricultura e da indústria, as relações dos Estados, as relações entre operários e patrões, entre os poderes religioso e civil, os direitos da Santa Sé e do Pontífice Romano, os privilégios dos Bispos, enfim a respeito dos direitos de Cristo Criador, Redentor e Senhor, sobre todos os homens e sobre todos os povos? E estes mesmos, nos seus discursos, nos seus escritos e no conjunto de sua vida, agem exatamente como se os ensinamentos e as ordens promulgados tão reiteradamente pelos Soberanos Pontífices, com especialidade por Leão XIII, Pio X e Bento XV, tivessem perdido seu primitivo valor ou não devessem ser tomados em consideração. Este fato revela uma espécie de modernismo moral, jurídico e social, que condenamos tão formalmente quanto o modernismo dogmático" (53).

Esses processos são costumeiros nas revoluções. Eles lhes dão o necessário impulso, mas ao mesmo tempo semeiam o caos. O caos, por sua vez, é aproveitado pelas revoluções.

Em nosso caso concreto, o caos se nota pela leitura dos discursos, das entrevistas, dos projetos de lei que se têm publicado sobre a "Reforma Agrária". Vistos em seu conjunto, ao mesmo tempo se parecem tanto uns com outros, e tanto se diferenciam entre si nos mais diversos aspectos, que dão a impressão de um emaranhado talvez inextricável. É necessária muita atenção para perceber que há método nesse caos, isto é, que, em medidas e formas diferentes, é a doutrina socialista que inspira essa luta. Ora, este caos tem um efeito psicológico altamente nocivo para os defensores do bom-senso, e muito vantajoso para a demagogia. Um fato recente nos permite pôr em relevo este ponto.

Como se sabe, nas vésperas da conferência de cúpula programada para o mês de maio deste ano, em Paris, declarações de Nikita Kruchev fizeram esperar que a tensão criada pelo incidente do avião norte-americano U-2 se dissipasse. Entretanto, o ditador soviético causou surpresa, melhor diríamos pasmo, ao tomar uma atitude tão espetacularmente agressiva, que a conferência nem chegou a se reunir.

Os círculos diplomáticos se esgotaram em conjecturas, umas mais plausíveis e outras menos, para descobrir as intenções do ministro-ator. Quando as discussões pela imprensa iam acesas, um psicólogo inglês, William Sargente, publicou no "Times" de Londres uma explicação. O conhecido cientista russo Pavlov provou por experiências com cães que, quando se dão a esses animais instruções sucessivas e contraditórias, eles se angustiam e acabam perdendo a "vontade". Ora, diz Sargent, fato análogo se produz com os homens. Impondo à política internacional sucessivas e contraditórias mudanças de rumo, e fazendo os povos do Ocidente oscilarem constantemente, angustiados, entre perspectivas de paz e de hecatombe atômica, Kruchev desmantela o próprio nervo da resistência do adversário, que é a vontade de lutar e de sobreviver.

Não é o caso de nos pronunciarmos aqui sobre as posições doutrinárias de Sargent e de Pavlov, nem de saber se esse efeito de opinião foi o único visado por Kruchev. O fato é que há muito de bom-senso na observação do psicólogo inglês, e que, pelo menos colateralmente, este efeito foi previsto... e alcançado.

Ora, é lícito perguntar se o instinto demagógico, de si mesmo tão fino, tão sutil, não se compraz em desnortear e debilitar a vontade do adversário dentro desse caos de propostas diversas de "Reforma Agrária", que percorrem toda a gama que vai do "moderado" ao terrificante. Isto obtido, o adversário se interrogará desnorteado e exausto: não será preferível ceder algo para não perder tudo? No dia em que este problema tiver impressionado grandes setores da opinião, estará criado o clima para se darem os primeiros passos nas vias da socialização da lavoura.

Depois disto, parar-se-á talvez um pouco. O agricultor ingênuo, entre tristonho e tranqüilizado, respirará.

Mas o imenso movimento ideológico e temperamental que vai impelindo o mundo moderno para a igualdade completa numa sociedade sem classes, não pode contentar-se com tão pouco, porque tudo que é forte e impetuoso não se detém, não pode deter-se espontaneamente a meio caminho. Ou se lhe erguem barreiras firmes, em nome dos princípios básicos da civilização cristã, ou de si a avalancha do igualitarismo chegará aos últimos extremos. E a "Reforma Agrária" socializará inteiramente o campo, à espera do dia em que se socializem o comércio e a indústria.

Assim, pois, ao cabo de algum tempo, a investida recomeçará. E já então será muito mais difícil conte-la. É possível conter a pedra que oscila no alto do morro. Mas quem conterá o alude que rola volumoso e rápido à meia encosta?

Tendo em vista o bem da civilização cristã e do Brasil, cumpre considerar, pois, que este sistema de progressos graduais do socialismo rural, e de destruição paulatina e implacável do instituto da propriedade privada, facilitados por uma cega política de concessões, é o perigo que mais se deve recear.


Notas:

(47) Cfr. Título II, Capítulo II.

(48) Encíclica "Pascendi Dominici Gregis", de 8 de setembro de 1907 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 5.

(49) Encíclica "Graves de Communi", de 18 de janeiro de 1901 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 6.

(50) Cfr. D. Antônio de Castro Mayer, "Carta Pastoral sobre os problemas do apostolado moderno"- "Boa Imprensa Ltda.", Campos, 1953.

(51) Encíclica "Quod Apostolici Muneris", de 28 de dezembro de 1878 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 8.

(52) Encíclica "Pascendi Dominici Gregis", de 8 de setembro de 1907 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 5.

(53) Encíclica "Ubi Arcano", de 23 de dezembro de 1922 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 25-26.


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