Atualíssimo manifesto de Resistência
Sinto-me na contingência de tratar agora da
Resistência católica à Ostpolitik de S. Santidade o Papa Paulo
VI.
Em princípio, está na augusta missão do Vaticano
entabular negociações diplomáticas com os regimes comunistas, no intuito
de suavizar a situação dos católicos perseguidos. De minha parte, sempre
sustentei a legitimidade dessa conduta.
Não se pode, porém, sustentar que a chamada
Ostpolitik do Vaticano consistia simplesmente nisto. Era patente que
ela incluía dois aspectos. Um era o diplomático, de chancelaria a
chancelaria.
Mas havia outro. Paralelamente com a détente
diplomática do Vaticano com o Leste, houve, em larguíssimos meios
católicos, uma sensível mudança de posição em relação aos partidos
marxistas do Oeste.
A atitude militantemente anticomunista, que
caracterizava tais meios desde os primórdios do marxismo até a morte de
Pio XII, se abrandou rapidamente com a eleição de João XXIII, e rareou a
tal ponto no pontificado de S.S. Paulo VI, que se tornou quase uma exceção
à regra.
As censuras de autoridades eclesiásticas e
organizações católicas contra o comunismo baixaram muitíssimo em número, e
mais ainda em tom.
De sorte que, não raras vezes, tinham muito mais o
aspecto de uma queixa de amigo a amigo, do que de crítica a um adversário
irreconciliável.
Era absolutamente notório que, não raras vezes,
autoridades eclesiásticas e organizações católicas haviam chegado, nesta
linha, até a franca colaboração com correntes comunistas [91].
Ora, os católicos que tomavam a sério as encíclicas
de Leão XIII, Pio XI e Pio XII, sabiam que estes Papas ensinaram que o
regime comunista era o oposto da ordem natural das coisas, e a subversão
da ordem natural — na economia como em qualquer outro campo — só podia
trazer frutos catastróficos [92].
A linguagem nova de muitas das reivindicações sociais
eclesiásticas por vezes era tal que, sem ser definidamente marxista,
parecia inspirada no vocabulário e no estilo usado pelos comunistas.
Somam-se a essa massa de fatos os contatos secretos
da Santa Sé com chefes de Estado vermelhos, de viagens diplomáticas que
Monsenhor Casaroli — o Kissinger Vaticano — fazia a toda hora aos países
comunistas.
Obviamente, a distensão vaticana tinha por efeito uma
desmobilização psicológica dos 500 milhões de católicos em relação ao
perigo comunista. Estes eram fatos absolutamente impossíveis de serem
contestados [93].
2. Viagem de Monsenhor Casaroli a Cuba, a gota d’água que entornou o
copo
O povo paulista tomou conhecimento, no dia 7 de abril
de 1974, dos resultados da viagem a Cuba de Monsenhor Casaroli, secretário
do Conselho para os Assuntos Públicos do Vaticano.
Esses resultados, enunciou-os o próprio dignitário,
em uma entrevista (cfr. O Estado de São Paulo de 7 de abril de
1974)*.
* Esta viagem havia
se realizado entre os dias 27 de março e 5 de abril de 1974.
Asseverou S. Excia. que "os católicos que vivem em
Cuba são felizes dentro do regime socialista".
Não seria preciso dizer de que espécie de regime
socialista se tratava aí, pois era conhecido que o regime vigente em Cuba
era o comunista.
|
Monsenhor Cesar Zacchi
—
à direita de Fidel Castro na foto,
—
oferece uma recepção, no Palácio da Nunciatura, por ocasião de sua
sagração como bispo de Zella. O ato teve a participação de Monsenhor
Clarizzo
—
à esquerda do ditador -, então Delegado Apostólico no Canadá.
Exemplo da política de distensão vaticana com o castrismo, e que
tinha por efeito a desmobilização psicológica dos católicos em
relação ao perigo comunista. |
Sempre falando do regime Fidel Castro, S. Excia.
continuou: "os católicos e, de um modo geral, o povo cubano, não têm o
menor problema com o governo socialista".
Desejando talvez dar a estas declarações
estarrecedoras certo ar de imparcialidade, Monsenhor Casaroli lamentou
entretanto que o número de sacerdotes fosse insuficiente em Cuba: apenas
duzentos. Acrescentou ter pedido a Castro maiores possibilidades de
praticar cultos públicos. E terminou asseverando muito inesperadamente que
"os católicos da ilha são respeitados em suas crenças como quaisquer
outros cidadãos".
Monsenhor Casaroli asseverava ainda que "a Igreja
Católica cubana e seu guia espiritual procuram sempre não criar nenhum
problema para o regime socialista que governa a ilha"*.
* Nessa mesma estadia em Cuba, Monsenhor Casaroli fez afirmações pasmosas
no dia 4 de abril de 1974, em homilia na Catedral de Havana, a qual foi
publicada por Vida Cristiana (edição de 18/5/74), única publicação
católica autorizada em Cuba.
Nessa homilia, o Prelado elogia a Igreja de Cuba por estar
"vitalmente
incorporada no atual contexto cubano", ou seja, no regime comunista. E
por atuar "não como elemento de divisões daninhas, mas como benéfico
fermento de fraternidade". Ou seja, elogia-a por não lutar contra o
comunismo (cfr. artigo
Casaroli: incorporação no contexto, Folha de S.
Paulo, 30/6/74) .
Dói dizê-lo, mas a verdade óbvia era esta: a viagem
de Monsenhor Casaroli a Cuba desfechou numa propaganda da Cuba
fidel-castrista [94].
Ao ler estas notícias, percebi não só que Monsenhor
Casaroli havia passado da conta, mas que no ambiente geral da opinião
pública mundial o fato havia despertado uma indignação contrária [95].
3. Ainda estava quente o caso do Cardeal Mindszenty
Ainda estava quente o caso relativamente recente de
Monsenhor Mindszenty [96].
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O Cardeal Mindszenty,
condenado a detenção indefinida em 08 de fevereiro de 1949, foi
libertado pelos rebeldes a 31 de outubro de 1956. Depois de alguns
dias, ele se refugiou no interior da Embaixada Americana. Na foto, o
cardeal Mindszenty
acompanhado de seus próprios libertadores, 2 de novembro de 1956.
Budapeste, Hungria. |
Ele era um florão de glória da Igreja aos olhos até
dos que nela não criam. Este florão foi quebrado: foi destituído da
Arquidiocese de Esztergom, para facilitar a aproximação com o governo
comunista húngaro* [97].
* Sua destituição
se deu no dia 2 de fevereiro de 1974.
Comemorava-se o 25º aniversário de sua encarceração
pelos comunistas. Ficou célebre a fotografia que o mostrava no banco dos
réus com olhar aterrado, mas inquebrantável na resolução de cumprir até o
fim seu dever.
Veio depois o rápido intermezzo da sublevação
anticomunista*.
* Ele fora
novamente preso pelos comunistas em 1949. Nesta sublevação anticomunista,
que durou de 23 de outubro a 10 de novembro de 1956, o Cardeal Mindszenty
foi libertado. Com a derrota dessa sublevação, ele pediu asilo na
embaixada dos Estados Unidos em Budapeste.
Começou então para Monsenhor Mindszenty o longo
cativeiro na embaixada norte-americana. Cativeiro no qual — oh mistério! —
lhe era vedado o contato até com os habitantes do edifício. Mas, como
coluna solitária no meio das ruínas de sua pátria, Monsenhor Mindszenty
permanecia de pé [98].
|
Morto Pio XII, em largos setores católicos a
tendência à colaboração com o comunismo foi apagando a admiração
para com o grande Cardeal. Por fim, do trono de São Pedro foi-lhe
pedido que renunciasse ao isolamento grandioso na Hungria em ruínas
e aceitasse a trivialidade de um exílio confortável. O grande
Cardeal obedeceu. Nunca a voz de Pedro se mostrou mais poderosa do
que ao por de joelhos o varão altaneiro, a quem a pressão conjunta
de Moscou e Washington não conseguira vergar. |
A jogada do Vaticano para retirá-lo de Budapeste,
conta-a o próprio Cardeal em suas memórias, começou em 1971. Tinha-se
iniciado, então, o terrível drama da détente com o comunismo,
acionada a quatro mãos, do lado do Ocidente, por Nixon e Paulo VI.
Um dos efeitos quase imediatos desse processo de
autodemolição da Cristandade — pois objetivamente outra coisa não foi a détente — foi que o Vigário de Jesus Cristo e o então Presidente dos
Estados Unidos começaram a pressionar o Cardeal húngaro, por manifesta
imposição do governo de Budapeste.
Este governo comunista nada desejava mais
ardentemente do que ver Monsenhor Mindszenty fora do território húngaro. E
o Purpurado começou a sentir que já não era persona grata na
embaixada norte-americana, onde se refugiara.
Ao mesmo tempo Paulo VI delegou junto ao Cardeal um
Prelado para incitá-lo a sair da Hungria [99].
Então tínhamos diante de nós este quadro. Como a
simples presença do Cardeal Mindszenty na Hungria perturbava o sono dos
governantes húngaros, estes conseguiram de Paulo VI que utilizasse a
obediência — única força diante da qual o grande Cardeal anticomunista se
inclinou — para removê-lo da Hungria [100].
Monsenhor Mindszenty chegou, por fim, e muito a
contragosto, a uma combinação que lhe pareceu ser o máximo do que poderia
aceitar sem ferir sua consciência. Deixou então a embaixada
norte-americana a 29 de setembro de 1971.
Ao sair do edifício, abençoou, num grande gesto
paternal e trágico, sua Arquidiocese e sua Pátria. E acompanhado do Núncio
Apostólico de Viena, transpôs a fronteira com a Áustria.
De passagem por Viena, recebeu as homenagens de
Monsenhor Casaroli. Este o acolheu com o mesmo sorriso que mais tarde
traria nos lábios ao tratar com Fidel Castro.
A alegria do Kissinger vaticano se explicava: estava
cumprido o primeiro ponto do programa do governo de Budapeste. O
Cardeal-Primaz já não molestava os chefes ateus e igualitários da Hungria
comunista.
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Paulo VI
recebe o Cardeal Mindszenty na que seria sua residência em Roma |
A boa acolhida de Monsenhor Casaroli não foi senão um
prenúncio de melhor acolhida ainda da parte de Paulo VI. Os jornais do
tempo publicaram largamente todas as honrarias e atenções do Sumo
Pontífice para com o crucificado Cardeal.
Mas, ainda mesmo antes disto, começaram as surpresas.
Chegando a Roma, Monsenhor Mindszenty tomou conhecimento de que o Osservatore Romano de 28 de setembro de 1971, dia em que deixou a
embaixada norte-americana na Hungria, se referia à saída dele como a
remoção de um estorvo para as boas relações entre a Igreja e o governo
húngaro. "Para mim — comenta o Cardeal — foi a primeira
experiência amarga, pois compreendi que o Vaticano não estava dando
nenhuma atenção aos termos específicos que eu havia formulado em
Budapeste".
Fatos posteriores vieram confirmar a estranheza de
Monsenhor Mindszenty.
Havia sido combinado que, depois de uma estadia em
Roma, o Cardeal residiria no Seminário húngaro de Viena. O corolário dessa
obrigação assumida pela Santa Sé era que esta última obtivesse o agreement prévio do governo austríaco.
Comenta o Cardeal que, segundo parece, o Vaticano não
tomou essa providência. Pois quando, após três semanas de estada em Roma,
ele quis partir para Viena, o embaixador austríaco junto à Santa Sé se pôs
a levantar dificuldades. O indômito Cardeal aplainou as barreiras e a
partida foi decidida.
* *
*
O ato em que Monsenhor Mindszenty se despediu de
Paulo VI ficará para sempre na História da Igreja, quer pelo que então
sucedeu, quer pelo que veio depois. O Papa da détente teve para com
o herói do anticomunismo ternuras que arrancariam lágrimas [101].
Quis Paulo VI que Monsenhor Mindszenty, antes de
seguir para Viena, concelebrasse com ele a Missa. Ao fim desta, deu-lhe,
"como símbolo de amor e respeito", a capa cardinalícia que usava
antes de ser Papa. Prometeu-lhe apoio, dizendo em latim: "És e
continuas a ser Arcebispo de Esztergom e Primaz da Hungria. Prossegue
trabalhando, e se tens dificuldade, volta-te sempre confiantemente para
nós". Depois...
Depois tudo correu em rumo oposto.
Monsenhor Mindszenty pediu que lhe fosse devolvida a
faculdade de indicar padres para as comunidades húngaras no estrangeiro.
Amarga decepção: o pedido foi recusado pelo Vaticano — comenta o cardeal —
para não "incomodar o regime de Budapeste".
Com o mesmo fim de não "incomodar o regime de
Budapeste", a Santa Sé foi avante, e estatuiu que todas as declarações
públicas do grande prelado fossem submetidas a um conselheiro indicado por
Roma. Monsenhor Mindszenty retrucou que as submeteria "só ao Santo
Padre, quando ele explicitamente o pedisse".
Logo depois, a Nunciatura em Viena informou a
Monsenhor Mindszenty que a Santa Sé dera garantias ao governo húngaro,
durante as tratativas de 1971, de que uma vez posto em liberdade, o
Purpurado nada diria que pudesse contrariar as conveniências de Budapeste.
Esta garantia, dada às ocultas do Cardeal, violava o mais essencial do
acordo que estava sendo negociado entre este e o Vaticano.
Assim, mediante tal concessão ao governo húngaro,
Paulo VI empregou a autoridade conferida por Nosso Senhor Jesus Cristo a
São Pedro, a fim de forçar o Cardeal a não contrariar os planos do
imperialismo comunista. As chaves de Pedro funcionando segundo os desejos
de ateus perseguidores implacáveis da Religião: o que era isto, senão uma
bomba, provavelmente a maior bomba na História da Igreja, de Pentecostes
até hoje?
Logo depois, as diretrizes do governo húngaro
começaram a se fazer sentir através do Vaticano. Estava sendo impresso em
Portugal um discurso para o Cardeal ler em Fátima. Emissários da
Nunciatura de Lisboa intervieram na tipografia para — a não sabendas do
Purpurado — suprimir um trecho em que este alertava os católicos do mundo
contra a política de sorrisos dos comunistas.
Mas o pior estava por vir.
Algum tempo depois, Paulo VI escreveu a Monsenhor Mindszenty pedindo que renunciasse à Arquidiocese de Esztergom. O Cardeal
recusou. Paulo VI destituiu-o então. Travo particularmente amargo: a carta
foi entregue ao Cardeal precisamente na data em que se comemorava o 25º
aniversário de seu glorioso encarceramento pelos comunistas.
Estava terminado o drama. Ao longo dele, de começo a
fim, a conduta do Vigário de Cristo foi a que desejava o imperialismo
comunista, isto é, o Anticristo [102].
4. Cessar a luta ou explicar a nossa posição
Somados ao caso Casaroli, todos esses fatos tomavam
um vulto extraordinário [103].
A posição fundamentalmente anticomunista da TFP
resultava das convicções católicas dos que a compunham. Era porque
católicos, era em nome dos princípios católicos que os diretores, sócios e
cooperadores da TFP eram anticomunistas.
A diplomacia de distensão do Vaticano com os governos
comunistas criava, entretanto, para os católicos anticomunistas, uma
situação que os afetava a fundo, muito menos enquanto anticomunistas do
que enquanto católicos.
Pois a todo momento se lhes podia fazer uma objeção
supremamente embaraçosa: a ação anticomunista que efetuam não conduz a um
resultado precisamente oposto ao desejado pelo Vigário de Jesus Cristo? E
como se pode compreender um católico coerente, cuja atuação ruma em
direção oposta à do Pastor dos Pastores?
Tal pergunta trazia como conseqüência, para todos os
católicos anticomunistas, uma alternativa: cessar a luta, ou explicar sua
posição.
Cessar a luta, não podíamos. E era por imperativo de
nossa consciência de católicos que não o podíamos. Pois se era dever de
todo católico promover o bem e combater o mal, nossa consciência nos
impunha que defendêssemos a doutrina tradicional da Igreja, e
combatêssemos a doutrina comunista.
Sentir-nos-íamos mais agrilhoados na Igreja do que o
era Soljenitsin na Rússia soviética, se não pudéssemos agir em consonância
com os documentos dos grandes Pontífices que ilustraram a Cristandade com
sua doutrina. [104].
5. Preito de amor ao Papado
Depois das declarações de Monsenhor Casaroli, passei
o domingo de 7 de abril de 1974 pensando no assunto. Na Missa, rezei tão
afincadamente quanto estava em mim rezar, para que Nossa Senhora me
ajudasse a ver qual o caminho a seguir [105].
Lembrei-me das aulas de catecismo em que me
explicaram o Papado, sua instituição divina, seus poderes, sua missão. Meu
coração de menino (eu tinha então 9 anos) se enchia de admiração, de
enlevo, de entusiasmo: eu encontrara o ideal a que me dedicaria por toda a
vida.
De lá para cá, o amor a esse ideal não tem senão
crescido. E sempre peço a Nossa Senhora que o faça crescer mais e mais em
mim, até o meu último alento.
Quero que o derradeiro ato de meu intelecto seja um
ato de Fé no Papado. Que meu último ato de amor seja um ato de amor ao
Papado. Pois assim morrerei na paz dos eleitos, bem unido a Maria minha
Mãe, e por Ela a Jesus, meu Deus, meu Rei e meu Redentor boníssimo.
Queria portanto dar a cada ensinamento deste Papa,
como de seus antecessores e sucessores, toda aquela medida de adesão que a
doutrina da Igreja me prescrevia, tendo por infalível o que Ela mandava
ter por infalível, e por falível o que Ela ensinava que era falível.
Queria obedecer às ordens desse ou de qualquer outro
Papa em toda a medida em que a Igreja mandava que fossem obedecidas. Isto
é, não lhes sobrepondo jamais minha vontade pessoal, nem a força de
qualquer poder terreno, e só, absolutamente só recusando obediência à
ordem do Papa que importasse eventualmente em pecado.
Pois neste caso extremo, como ensinam
- repetindo o Apóstolo São Paulo
- todos os moralistas católicos,
era preciso colocar acima de tudo a vontade de Deus.
Foi o que me ensinaram nas aulas de Catecismo. Foi o
que li nos tratados que estudei. Assim penso, assim sinto, assim sou. E de
coração inteiro [106].
E se não fosse estar em jogo o que estava em jogo —
algo que dizia respeito ao Sumo Pontífice —, há muito tempo que, com
quaisquer prejuízos ou inconvenientes, o problema já se teria resolvido [107].
Eu, portanto, protelei minha atitude o quanto pude.
Na segunda-feira, dia 8 de abril, tive um dia muito
fatigante. Deitei num sofá depois do jantar, para um pequeno repouso antes
de ir para a reunião que comumente havia na TFP às segundas-feiras.
Quando despertei, eu estava resolvido: chamei o meu
secretário e de 22:30 até 1:00 hora da madrugada, ininterruptamente, ditei
o manifesto [108].
Ele se intitulava
A política de distensão do
Vaticano com os governos comunistas — para a TFP: Omitir-se? Ou resistir?
Sua linguagem era respeitosa, mas ao mesmo tempo
muito franca [109].
E afirmava o propósito de lutar desassombradamente, nos limites das leis
canônica e civil, contra a Ostpolitik vaticana [110].
|
Primeira
datilografia do "Manifesto da Resistência" |
Esta explicação se impunha. Ela tinha o caráter de
uma legítima defesa de nossas consciências de católicos, ante um sistema
diplomático que lhes tornava irrespirável o ar, e que aos católicos
anticomunistas colocava na mais penosa das situações, que era a de se
tornarem inexplicáveis perante a opinião pública [111].
Depois que terminei de ditar, fui depressa da rua
Alagoas nº 350, onde eu morava, para o prédio da rua Martinico Prado, onde
Dom Mayer se hospedava, no 7° andar. Lá ainda estavam em conversa com Dom
Mayer, Dr. Paulo Brito e outro membro do Grupo de que não me lembro. Eu
não poderia publicar esse manifesto sem antes dar conhecimento dele a Dom
Mayer.
A minha pressa se explicava. Dom Mayer tinha
necessidade absoluta, por causa das cerimônias de Semana Santa, de partir
para Campos no dia seguinte. E tinha de descansar.
Eu, portanto, não quis retardar nada. Li diretamente
o texto para recolher as impressões dele. Dom Mayer recebeu-o muito bem.
Notei até, pela fisionomia que fez, uma certa impressão de que o manifesto
lhe parecia no fundo supermoderado.
O documento, uma vez datilografado, foi levado no dia
seguinte por Dr. Plínio Xavier ao Otávio Frias, diretor da Folha.
7. Por amor à Igreja, resistência a uma
política autodemolidora
O passo era colossal [112].
E a principal característica desse nosso manifesto era, a meu ver, que
alvejava o ponto certo, com a linguagem certa, no momento certo. Eram o
tema, a tese, a linguagem e o momento adequados [113].
O ponto central não estava no fato de a TFP denunciar
a política esquerdista que o Vaticano ia incrementando, mas na declaração
de nosso estado de resistência a essa política [114],
enquanto católicos, apostólicos, romanos. A meta era esta [115].
Nesse ato de resistência à política de Paulo VI não
havia outros componentes psicológicos senão o amor, a fidelidade e a
dedicação. Dado que o Papa é o monarca da Santa Igreja, meu gesto
importava em defender o reino em benefício do Rei, ainda quando, para
tanto, devesse incorrer no desagrado deste. Mais longe, segundo me parece,
não seria dado ao homem levar sua dedicação [116].
Seu tópico culminante, e que resumiu o espírito com
que foi escrito, é o seguinte: “Neste ato filial, dizemos ao Pastor dos
pastores: Nossa alma é vossa, nossa vida é vossa. Mandai-nos o que
quiserdes. Só não nos mandeis que cruzemos os braços diante do lobo
vermelho que investe. A isto nossa consciência se opõe” [117].
* *
*
Bem entendido, não presumo que o pronunciamento da
TFP tenha mudado a orientação da diplomacia de Paulo VI. As razões que
alegávamos eram por demais evidentes, para que já não as tivessem
ponderado, de há muito, o Sumo Pontífice e seus imediatos conselheiros.
Do ponto de vista tático, não havia comparação
possível entre as vantagens que o Vaticano imaginava capitalizar com o
apoio do moloch que era o mundo comunista, e os inconvenientes que
lhe poderiam resultar da resistência de filhos espirituais que tinha na
TFP, disseminados por quase toda a América e em algumas nações da Europa.
Nós estávamos cheios de fé, é verdade, mas desprovidos do poderio que
sobrava do lado comunista [118].
Em síntese, nossa declaração manifestava respeitoso,
mas profundo desacordo em relação a essa política de aproximação, e
afirmava o propósito de resistir a essa política [119].
8. “Resistência” no espírito em que São Paulo resistiu a São Pedro
"Resistência" foi a palavra que escolhemos de
propósito, pois ela é empregada nos Atos dos Apóstolos pelo próprio
Espírito Santo, para caracterizar a atitude de São Paulo.
Tendo o primeiro Papa, São Pedro, tomado medidas
disciplinares referentes à permanência no culto católico de práticas
remanescentes da antiga Sinagoga, São Paulo viu nisto um grave fator de
confusão doutrinária e de prejuízo para os fiéis. Levantou-se então e "resistiu em face" a São Pedro (Gal. II, 11).
Este não viu, no lance fogoso e inesperado do
Apóstolo das Gentes, um ato de rebeldia, mas de união e amor fraterno. E,
sabendo bem no que era infalível e no que não era, cedeu ante os
argumentos de São Paulo.
No sentido em que São Paulo resistiu, nosso estado
era de resistência.
E nisto encontrava paz nossa consciência [120].
No dia 10 de abril de 1974 foi lançada em Seção Livre
da Folha de S. Paulo a nossa declaração de resistência à política
de aproximação do Vaticano com os governos comunistas [clique
aqui para ver um fac símile da publicação na Folha de São Paulo].
9. Algumas fracas reações
Lançamos também com grande publicidade esse manifesto
em toda a América Latina e na Espanha. Fizemos uma tal ou qual publicidade
na França, na Alemanha e em Portugal, e nos Estados Unidos uma publicidade
média.
Nas ruas de Madri e de outras cidades da católica
Espanha, distribuímos mais de cem mil volantes com a declaração [121].
O Cardeal Tarancón, Arcebispo de Madri, publicou um
pronunciamento no Boletim da Arquidiocese de Madri (dia 24 de novembro de
1974) contra a nossa declaração, reconhecendo entretanto assistir a um bom
católico o direito de discordar da política de Paulo VI. Porém considerava
que o exercício desse direito importa em deslealdade para com a Santa Sé.
O direito de ser desleal... Tem graça!
Monsenhor Casaroli também fez uma superficial e
fugidia refutação da declaração de resistência [122],
através do porta-voz Federico Alessandrini, diretor da Sala de Imprensa do
Vaticano*.
* Nessa declaração,
Alessandrini procurava desmentir em parte as palavras atribuídas pela
imprensa a Monsenhor Casaroli, de que os católicos cubanos eram "felizes"
sob regime socialista, e que não tinham nenhum problema com o governo
cubano.
Esse desmentido,
que pedia ter sido feito imediatamente após a divulgação das palavras de
efeito devastador atribuídas a Monsenhor Casaroli, só veio a público vinte
dias depois, e num momento em que o manifesto de resistência das TFPs ia
despertando reações salutares em todo o mundo.
Em vista desse
"desmentido", Dr. Plinio pediu ao Serviço de Imprensa da TFP distribuir um
comunicado no qual afirmava que Monsenhor Casaroli só havia desmentido
duas das afirmações que fez relativamente a Cuba, o que deixava de pé as
outras. Além do mais, era um desmentido que dava novo fundamento à
declaração das TFPs, uma vez que, para não desagradar a Castro, S. Excia.
havia praticado uma política de silêncios e recuos, deixando entregues à
sua sorte as desditosas ovelhas cubanas do Bom Pastor.
Este comunicado da
TFP foi entregue à imprensa no dia 18/5/74.
Depois calou-se por largo tempo.
O desenvolvimento internacional da Resistência
induziu, por fim, o ilustre Prelado — tão merecidamente intitulado o
Kissinger vaticano — a romper, mais uma vez, o silêncio. Suas palavras
foram um confuso amálgama de subentendidos e evasivas* [123].
* Vejamos essas
suas declarações, difundidas pela agência Europa Press:
“A Santa Sé
coopera com todos os homens que tenham opções úteis para a paz [...].
Embora alguns acusem a Santa Sé de desequilíbrio nesta busca, o Vaticano
jamais esqueceu o sentido da justiça social ou internacional. Por isto, a
Santa Sé não se limita ao ensino, mas também se empenha em ações
concretas, em casos de injustiça, ainda que em alguns momentos, esses
tenham sido esquecidos”.
Em seguida o
despacho da Europa Press acrescentava: “Pelo que se refere à
Ostpolitik vaticana, Monsenhor Casaroli fez ver que este ponto de vista
não é seu, mas de Paulo VI”. Monsenhor Casaroli declarou ainda que era
“doloroso para o Santo Padre ser atacado e não poder defender-se
publicamente, ao ver algumas de suas ações criticadas por uma parte ou por
outra” (cfr. Artigo “Resistência, Tarancón e Casaroli”,
Folha de S. Paulo, 1°/12/74).
10. Tornou patente o fracasso da
Ostpolitik
É raro eu dizer que num acontecimento internacional a
TFP teve alguma influência. Sou muito cuidadoso em não exagerar o papel da
TFP.
Entretanto, uma coisa salta aos olhos.
Em todos os lugares em que difundimos esse manifesto,
a boa acolhida, ou então a atonia simpática da grande maioria levou-nos a
concluir que havia um clima de antipatia átona — mas real e generalizada —
dos meios católicos contra a détente de Paulo VI. E este fato
transmitia a imagem de um prodigioso isolamento de Paulo VI na sua
política rumo à détente.
A détente estava tendo êxito se considerada do
ângulo das relações diplomáticas, de chancelaria a chancelaria, entre o
Vaticano e Moscou. Mas não na sua verdadeira finalidade, que era a de
preparar o mundo católico para receber favoravelmente um acordo e
colaboração com o comunismo.
Ora, os dirigentes comunistas não estavam dispostos a
negociar de potência a potência com determinada pessoa, a não ser que essa
pessoa representasse toda a coletividade à testa da qual juridicamente ela
estava colocada.
Esse cálculo eles não terão tido com Paulo VI? E não
terão tomado o resultado do manifesto de resistência como um inquérito? E
não terão percebido de um modo iniludível que Paulo VI não levava atrás de
si a opinião pública católica?
A mais banal das objetividades nos impõe que
reconheçamos que houve um fracasso dessa política de Paulo VI, fracasso
esse que o manifesto de resistência não causou, mas tornou patente. E,
tornando patente, tornou catastrófico para a política de deténte.
Isto a TFP fez. Ela arrancou o véu, ela mostrou a
trampa, ela criou o caso. E se a atitude de 500 milhões de católicos
pesa no mundo, a carta foi jogada, e essa carta se chamou manifesto de
resistência.
Posso afirmar que foi, até aquele momento, a jogada
mais importante que a TFP havia feito na sua história [124].
NOTAS
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