Seria interessante explicar como surgiu a expressão
“Tradição, Família e Propriedade”.
Pelo ano de 1960, realizávamos uma reunião [1]
na sede da rua Aureliano Coutinho [2],
quando em certo momento eu disse que a trilogia adequada para designar o
nosso grupo seriam as palavras “Tradição, Família e Propriedade”.
Eu intuía que a negação desses três valores era o
ponto terminal da civilização cristã do Ocidente e o início de uma ordem
de coisas baseada no contrário. E que, portanto, a Tradição, a Família, a
Propriedade deveriam ser o nosso título [3].
Lembro-me de ter dito também: “O nome perfeito de
nosso Grupo deveria ser Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade. É o modo de nós fazermos uma ação anticomunista não
meramente negativista, mas afirmando três valores que, por uma erosão
lenta, o comunismo quer derrubar para depois vencer” [4].
Os que estavam presentes aceitaram a sugestão com
toda a naturalidade, com toda a alegria [5].
O nome foi portanto objeto de uma cuidadosa reflexão,
de uma meticulosa atenção, para corresponder exatamente aos nossos ideais [6].
Três outras palavras que resolvêssemos colocar juntas
não formariam necessariamente uma trilogia. Já Tradição, Família,
Propriedade é uma trilogia de liames profundos, que constituem uma
seqüencia* [7].
* Percebeu-o
perfeitamente, mais de uma década depois, o conhecido autor belga de
orientação francamente progressista, Max Delespesse, em livro com o
significativo título Tradition, Famille, Propriété: Jésus et la triple
contestation.
Pondera ele com
acerto e precisão:
“Observadores
superficiais poderiam surpreender-se diante da trilogia
‘tradição-família-propriedade’ como se se tratasse de um amálgama
artificial. Na realidade, a junção destes três termos não se deveu ao
acaso. [...] ‘Tradição-família-propriedade’ é um bloco coerente que
se aceita ou se rejeita, mas cujos elementos não podem ser separados”
(Max Delespesse, Tradition, Famille, Propriété. Jésus et la triple
contestation, Fleurus, Paris, 1972, pp. 7, 8).
2. Constituição da TFP em 1960 e quais os sócios-fundadores
Com base nessa trilogia, resolvemos fundar uma
sociedade civil [8]
e registrá-la [9]
como organização juridicamente constituída [10],
e que tivesse como corpo societário o núcleo de amigos que se tinha
reunido em torno do Legionário* [11].
* A data oficial de
fundação da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade (TFP) é 26 de julho de 1960.
Tive a iniciativa de fundar a TFP, e fui eu quem lhe
deu o nome e reuni os amigos que constituíram seu primeiro núcleo [12].
E os estatutos foram redigidos por mim com muito cuidado, com muita
seriedade, portanto com muita autenticidade [13].
O autor dos estatutos fui eu.
Quis o título de “Presidente do Conselho Nacional”
e não “Presidente da TFP”. E tinha “n” razões para querer isto e
para o querer ainda hoje assim [14].
A TFP é a única associação que eu conheça que tem
duas diretorias: o Conselho Nacional e a DAFN (Diretoria Administrativa e
Financeira Nacional). São duas diretorias completas. O Conselho Nacional é
presidido por mim, e cuida de toda a parte intelectual, de formação e de
todas as atividades da TFP, exceto as econômicas. As econômicas são
atribuição da Diretoria Administrativa e Financeira Nacional, a DAFN [15].
Pelos estatutos da TFP, o Conselho Nacional é o órgão
deliberativo. E a TFP tem como sócios a mim, os membros do Conselho
Nacional, os da DAFN e alguns membros da Ordem Imediata [16].
* * *
Como se formou este corpo jurídico eu já o disse, e
está na história da TFP.
Até mais ou menos 1949, o grupo era constituído
apenas pelos membros do posteriormente chamado grupo da Pará e por mim,
que era o presidente por ser o segundo mais velho e por condescendência do
Dr. José de Azeredo Santos, um ano mais velho do que eu.
Também os rapazes da rua Martim Francisco, com o
passar do tempo, tornaram-se elementos dirigentes.
Ajudou nisto o fato de que a diferença de idade entre
nós do grupo da Pará e os do grupo da Martim Francisco, como é natural,
foi aos poucos se adelgaçando. E então convencionou-se favorecer uma
espécie de fusão entre os membros do grupo da Martim Francisco e os
membros do grupo da rua Pará, mantendo-se entretanto, para estes últimos,
dentro da nossa vida cotidiana, uma ordem de precedência.
Desta forma constituiu-se naturalmente a diretoria
desse novo organismo.
E quando a TFP foi fundada no ano de 1960, muito
naturalmente os membros do grupo da Pará e da Martim passaram a ser os
sócios fundadores e ao mesmo tempo a diretoria, com uma meia dúzia de mais
novos que também foram indicados para sócios. E esta ficou sendo
juridicamente a TFP.
Os cooperadores, pelos estatutos, não pertencem à
TFP* [17].
* Esses
cooperadores, inicialmente chamados de militantes, eram os membros
dos grupos do Alcácer e da Aureliano, ademais de numerosos jovens de todo
o Brasil que foram aderindo aos ideais da TFP, com dedicação integral.
Mais tarde
formaram-se ainda os correspondentes e esclarecedores, constituídos
por famílias que, atuando em seus meios sociais próprios, apoiavam a
entidade em toda medida de suas possibilidades.
Com o tempo,
alargou-se também substancialmente o círculo de simpatizantes dos ideais
da TFP por todo o País, o que favoreceu enormemente o êxito incomum das
campanhas da entidade.
Se no tempo em que a TFP foi fundada alguém
perguntasse: “É possível fundar uma sociedade com as características da
TFP?”, a quase totalidade das pessoas responderia que seria
impossível, que isso não nasce mais nos dias de hoje.
Aquilo que parecia uma utopia se realizou. E quando
uma utopia se realiza isto se chama milagre [20].
Aspecto do
ato de fundação da "Sociedad Argentina de Defensa de la Tradición,
Familia y Propiedad"
Foi nesse período que começaram as viagens por outros
países à procura de pessoas afins com o nosso ideário, sobretudo na
América Latina, porque nós queríamos formar uma confederação mundial,
queríamos agir no mundo inteiro [21].
Organizamos então uma ida de várias pessoas nossas à
Argentina e fomos assim tomando contato com grupos católicos de lá [22].
A Argentina para mim foi uma revelação [23].
Era uma nação muito mais preservada, do ponto de vista religioso e do
ponto de vista da prática dos Mandamentos, do que a nação brasileira [24].
Havia na Argentina daquele tempo, e deve ainda haver
em alguma medida, um bloco de população seriamente católica, de alto a
baixo nas várias classes sociais, compreendendo pessoas tanto da alta
sociedade, quanto da média e das classes menos favorecidas. Sobretudo as
senhoras eram assim, mas os homens também, e constituíam uma força enorme [25].
Vimos lá grande número de pessoas rezando nas
igrejas, muito mais do que no Brasil. Igrejas lindas, sérias, imagens com
fisionomias combativas, com uma dignidade, um espírito de cavalaria e de
audácia que me agradaram [26].
O número de senhoras e de homens entrando e saindo
para visitas rápidas ao Santíssimo era impressionante.
Era gente que estava fazendo negócios, que tinha o
tempo tomado, mas que entrava um instante para saudar o Santíssimo. Outros
demoravam mais. Homens de posição, de destaque, não tinham a menor dúvida
de se afirmar publicamente católicos, sem respeito humano: passavam diante
de uma igreja, tiravam o chapéu. Coisa que fazia gosto de ver [27].
Dei-me conta, então, de que a Argentina herdara da
Espanha um teor de catolicidade único. E deduzi daí que provavelmente esta
deveria ser também a herança da atuação da Espanha em todas as suas
antigas colônias — hoje nações independentes na América Latina — numa
dosagem de Fé católica muito maior do que eu poderia imaginar à primeira
vista.
O resultado é que o nosso futuro em matéria de
relações exteriores, durante muitos anos, se voltou para a América do Sul [28].
* * *
Conhecemos na Argentina uma direita, em cuja sombra
viviam pessoas com uma vocação idêntica à nossa [29].
Foi numa dessas viagens à Argentina que encontramos
um grupo que imprimia a revista Cruzada, extraordinariamente afim
conosco, composto todo ele de jovens, filhos de pais pertencentes a essa
direita [30].
Indo à Argentina, tomei contato com esses rapazes, e
fiquei uma longa temporada lá.
Esses contatos frutificaram e em certa ocasião, no
ano de 1965, fiz um simpósio com esse grupo de jovens de Buenos Aires.
Eles vieram a São Paulo para resolver algumas “de las mil y mil
cuestiones” entre os dois grupos. Este simpósio correspondeu a
esclarecer o seguinte problema: o que somos nós?
Nossa Senhora favoreceu esse simpósio, e no final das
contas eles resolveram aderir integralmente aos nossos ideais e formar
naquele país uma TFP autônoma mas irmã da nossa. Nasceu assim a TFP
Argentina.
2. Chile
Também em viagem ao Chile conhecemos o grupo de
Fiducia, pessoas jovens que publicavam uma revista do mesmo nome.
Com eles a aproximação foi muito mais fácil. Já nos
primeiros contatos nos entendemos bem. Logo depois, vieram alguns deles ao
Brasil, seguidos depois de outros. E assim começaram a vir em roldana, e
nos entendíamos perfeitamente. Eles se transformarem em TFP chilena foi a
coisa mais fácil, mais simples, mais desembaraçada que houve.
O Sr.
Patricio Larrain Bustamante lê, no Club de la Unión de
Santiago, o manifesto de fundação da TFP: nasce uma força jovem e
vitoriosa a serviço do Chile contemporâneo
3. Uruguai
A partir do momento em que pudemos dizer que tínhamos
grupos com os mesmos ideais na Argentina e no Chile, abriram-se as portas
de outros lugares.
Na Argentina informaram-me da existência de pessoas
com idéias semelhantes às nossas em Montevidéu, onde de fato encontrei um
grupo de homens de boa situação social, aproximadamente da minha idade, e
alguns até bem mais velhos do que eu.
O mais moço desse grupo convidou-me para almoçar em
casa dele, onde vi brincar pelo salão alguns meninos, dois dos quais, mais
tarde, formaram um grupo em Montevidéu.
4. Viagens por outros países latino-americanos
Concomitantemente, membros dos grupos da Pará e da
Martim realizaram uma série de viagens apostólicas pelos outros países da
América hispânica: Dr. Fernando Furquim de Almeida, Dr. Paulo Barros de
Ulhôa Cintra, Dr. Sérgio Brotero Lefèvre, Dr. Fábio Xavier da Silveira,
Dr. Paulo Corrêa de Brito Filho. Eles percorreram a América do Sul em
todos os sentidos [31].
De cá, de lá e de acolá, em cada país, alguns
punhados de jovens respondiam positivamente [32].
De maneira que o circuito interbrasileiro de expansão
dos ideais da pré-TFP se enriqueceu com o bandeirismo dos componentes do
grupo de Catolicismo, bandeirismo esse que passou a ser, além de
nacional, também hispano-americano.
Foram dois circuitos de viagens, igualmente épicas,
igualmente trabalhosas, igualmente dispendiosas, algumas delas frustradas.
Mas daí veio todo o surto de grupos afins da América do Sul.
No início, como disse, eram os meus amigos da Pará e
da Martim que palmilhavam de alto a baixo toda essa zona. Mais tarde
também os do grupo do Alcácer e da Aureliano empreenderam viagens
semelhantes [33].
Quando ainda menino, eu ia todos os dias de bonde do
bairro dos Campos Elíseos para o Colégio São Luís, localizado na Avenida
Paulista.
O bonde atravessava a rua da Consolação, e certo dia
vi uma faixa: “Ligas Agrárias”.
Chegando em casa, perguntei oque eram essas
Ligas Agrárias.
— Ah! isso é um movimento comunista, feito para
dividir as terras dos proprietários.
Eu pensei com os meus botões: “É preciso fechar o
passo a essa gente, porque por aí vai começar o comunismo”.
Em fins de 1959, já com os meus 50 anos, ao ver as
primeiras notícias sobre a Reforma Agrária, pensei: “Aqui está o
comunismo entrando” [34].
2. Vislumbre da grande luta numa pequena notícia
No ano de 1959, nosso grupo programou uma ida a Poços
de Caldas para um pequeno simpósio, do qual participaram cerca de vinte
pessoas*.
* Este simpósio foi
realizado em setembro de 1959, durante o feriado da Semana da Pátria.
Eu me lembro que fazíamos as reuniões no terraço de
um bonito hotel que dava para um jardim também muito bonito, tudo
contrastando com a situação triste em que nos encontrávamos.
Estando ali, certa manhã li uma noticiazinha [35],
talvez de 5 ou 10 linhas [36],
dizendo que estava a pique de ser lançada no País uma Reforma Agrária [37].
Desci para o café da manhã e disse aos rapazes:
— Li no Estado de S. Paulo a notícia de que estão
querendo fazer uma Reforma Agrária no Brasil. E se fizerem Reforma
Agrária, eu lhes garanto que o nosso grupo intervém.
Eles ficaram meio espantados.
Eu disse: “Eu lhes garanto. É uma campanha que o
nosso adversário lança prematuramente, pois a opinião nacional não está
preparada para recebê-la. E essa Reforma Agrária que está sendo planejada
é contrária à doutrina católica. Quando a propaganda agro-reformista
estiver bem estufada, nós lançamos um golpe contra ela”.
Vi que eles ficaram esperançados, mas com certa
dúvida: “Como pode um grupo tão pequeno dar uma tacada desse tamanho”? [38]
3. A Revisão Agrária de Carvalho Pinto
São Paulo era na época governado por Carvalho Pinto [39],
muito conhecido meu. Ele fora meu colega na Faculdade de Direito. Era
pessoa de um trato agradável, simpático. Mas, enquanto governador, lançou
de repente uma grande propaganda de Reforma Agrária [40].
Logo nos primeiros meses do ano seguinte, 1960, ele
enviou um projeto de Revisão Agrária à Assembléia Legislativa paulista [41],
apoiado desde logo por parte da imprensa e rádio, e por quase todo o
Episcopado paulista, bem como pela CNBB [42].
No próprio texto do governo estadual, tal projeto era
apresentado como “um primeiro passo, na verdade pioneiro” de outras
Reformas Agrárias [43].
E se transformou na lei básica que deveria ser adaptada às diversas
regiões da Nação, servindo como modelo para uma lei nacional de Reforma
Agrária em futuro próximo.
* * *
Esse projeto obedecia a uma doutrina, a uma
“filosofia”, a uma “mentalidade”, conforme asseverou o
Secretário da Agricultura, Sr. José Bonifácio Coutinho Nogueira, em
discurso na Assembléia Legislativa de São Paulo.
A conseqüência dessa Reforma Agrária seria, portanto,
a constituição de um imenso poder do Estado sobre os pequenos
“proprietários”, reduzidos à escravidão. A “propriedade”, em vez de
dar-lhes a liberdade, os obrigaria a vestir uma camisa de força. A
perspectiva era portanto entrar em um estado de coisas socialista,
preâmbulo do dirigismo estatal do comunismo [44].
4. Escrevendo o livro
Tendo essa propaganda agro-reformista subido de tom,
fui a Santos para escrever a parte doutrinária do livro que depois tomou
como título Reforma Agrária—Questão de Consciência. A parte
econômica ficou a cargo do economista Luiz Mendonça de Freitas, que
pertencia ao grupo da Martim.
Lembro-me de que passei de 15 a 20 dias naquela
cidade. Era um livro difícil de escrever, pois para produzir todo o efeito
que eu queria provocar supunha muita atenção.
Quanto mais avançava a redação do livro, mais eu me
certificava de que, com a propaganda da Reforma Agrária solta como estava,
o livro iria provocar uma enorme repercussão.
E se confirmou em meu espírito que, com essa
campanha, iríamos passar, de um mero grupo que apenas os especializados em
assuntos religiosos conheciam, para um grupo que teria o seu raio de ação
expandido a todo o ambiente brasileiro [45].
5. Mídia, Clero e cúpulas rurais coniventes: cerco a furar
A situação do lado político era a seguinte.
Tudo quanto era jornal, jornalão e jornalzinho fazia
propaganda clara ou velada a favor da Reforma Agrária.
Esses órgãos apontavam os fazendeiros como uma classe
de sanguessugas que dominavam a lavoura e que a mantinham em regime de
atraso.
Consequentemente, diziam eles, a lavoura no Brasil
não produzia o suficiente para manter a população, por causa do espírito
tacanho e atrasado desses fazendeiros e, sobretudo, pela manutenção do
regime de grandes e médias propriedades, que eles consideravam, sem base
nenhuma na realidade, um regime pouco produtivo.
Então, para o Brasil progredir, seria preciso acabar
com a grande e a média propriedades, e passar a um sistema de apenas
propriedades pequenas.
* * *
Desde o primeiro momento, a esquerda católica
meteu-se por inteiro na campanha a favor dessa Reforma Agrária [46].
E esta era uma das mais fortes razões para se escrever o livro*.
* Dos 187 Bispos que
constituíam naquela época a Hierarquia no Brasil, 49 haviam se pronunciado
a favor de uma Reforma Agrária socialista e confiscatória. Eles tinham
como carro-chefe o então secretário geral da CNBB, Dom Helder Câmara.
Poucos Bispos se
pronunciaram contra. E a grande maioria conservava-se muda.
A seguinte poesia
comunista de Vinicius de Morais, acolhida e posta em realce no semanário
católico-esquerdista Brasil Urgente, dirigido pelo tristemente
famoso dominicano Frei Carlos Josaphat, mostra bem a virulência da
propaganda agro-reformista levada a cabo pela esquerda católica:
“Senhores barões
da terra / Preparai vossa mortalha / Porque desfrutais da terra / E a
terra é de quem trabalha / Bem como os frutos que encerra [...] Chegado é
o tempo da guerra / Não há santo que vos valha. /
[...] Queremos que a terra possa / Ser tão nossa quanto vossa /
Porque a terra não tem dono / Senhores donos da terra. / [...] Não a foice
contra a espada / Não o fogo contra a pedra / Não o fuzil contra a enxada:
/ Granada contra granada! / — Metralha contra metralha! E a nossa guerra é
sagrada! / A nossa guerra não falha!” (Cfr. A escalada da ameaça
comunista—Apelo aos Bispos Silenciosos, 4ª edição, 1977, Editora Vera
Cruz, São Paulo).
Tal era o apoio que a agitação agro-reformista vinha
recebendo dos meios religiosos, que em várias partes do Brasil os
fazendeiros começaram a sentir escrúpulos de consciência de possuírem
terras herdadas de seus maiores, ou legitimamente adquiridas pelo
trabalho. Uns eram assim induzidos a uma atitude entreguista, e outros
começavam a revoltar-se contra a Igreja [47].
Tudo isto se deu antes do Concílio Vaticano II,
quando o prestígio do Episcopado no Brasil era muito maior do que hoje.
Uma palavra do Episcopado poderia ser decisiva para
encaminhar o País para certo rumo. E se o Episcopado em peso desse apoio à
Reforma Agrária, esta seria feita, porque os fazendeiros não tinham
ninguém que levantasse a voz a favor deles, nem mesmo as associações de
Agricultura. Boa parte delas eram dirigidas por cúpulas coniventes e
concessivas, as quais não estavam fazendo nada de prático contra a Reforma
Agrária.
Somava-se a isto o fato de que a parte da
intelligentsia nacional que se ocupava do assunto manifestava-se em
geral a favor do agro-reformismo*.
* Começou
simultaneamente a haver agitações agrárias em alguns pontos do País:
invasões de terras em Pernambuco e em São Paulo; atuação das Ligas
Camponesas do deputado comunista Francisco Julião; tentativa de
sindicalização comunista de trabalhadores rurais no Norte do Paraná e
outras.
Tinham esses
protagonistas meios de propaganda possantes, apoio dos comunistas e de
certa burguesia comunistóide.
Agitação
promovida pelas Ligas Camponesas em Recife, noticiada pela revista
Life de 2 de junho de 1961
Para nós punha-se o problema de levantar a defesa da
propriedade privada, inclusive dando aos fazendeiros dois recursos que
eles não tinham para se defenderem.
O primeiro recurso era mostrar que havia um livro que
defendia a legítima causa deles. E o segundo era mostrar à opinião pública
que, junto com dois leigos católicos, dois Bispos também lutavam contra a
Reforma Agrária: Dom Mayer e Dom Sigaud.
O público precisava ver que esses dois Bispos
tachavam a Reforma Agrária de comunistizante, num período em que ainda
havia horror ao comunismo. E perceber que os católicos não eram unânimes
em favor da Reforma Agrária, ao contrário do que dava a entender a
propaganda.
Com esses dois recursos na mão, seria possível
mostrar aos fazendeiros que, enquanto católicos, eles não eram obrigados
em consciência a estar de acordo com a Reforma Agrária.
* * *
Era indispensável a revisão do texto e a assinatura
dos dois Bispos — Dom Mayer e Dom Sigaud. Levei a minuta do livro para
eles, pedi-lhes que o revissem e perguntei se estavam de acordo. E
convidei-os a darem seus nomes como co-autores.
Essas tratativas foram realizadas durante um
Congresso Eucarístico em Curitiba [48],
ao qual deveriam comparecer todos os Bispos brasileiros, portanto Dom
Mayer e Dom Sigaud também*.
* Era o VII
Congresso Eucarístico Nacional, realizado entre os dias 5 e 8 de maio de
1960.
Eles ali, nos tempos vagos, entre um ato e outro do
Congresso, foram revendo a minuta [49].
Reuníamo-nos na saleta de meu quarto no hotel. E,
finda a revisão, eles concordaram em dar o nome como co-autores.
Tanto Dom Mayer como Dom Sigaud fizeram várias
observações. Dom Sigaud até acrescentou páginas bem interessantes.
Dr. Plinio Xavier também foi de muita valia nessa
ocasião, ajudando a examinar a parte econômica escrita pelo Dr. Luiz
Mendonça de Freitas [50].
7. A revisão de Dr. Castilho
Afinal, depois de tudo acertado, confiei ao saudoso e
querido Dr. José Carlos Castilho de Andrade a tarefa de fazer a revisão
final do texto. Ele me pediu um número “x” de dias.
Dr. Castilho era um revisor muito competente,
meticulosíssimo e implacável: não deixava passar nada. Por isso era um bom
revisor. Um revisor indolente não me serviria para nada. O revisor
verdadeiramente amigo é o que se coloca diante de mim como se fosse um
inimigo.
O modo de ser dele era singular. Quando se encontrava
diante de uma situação perplexitante, ele apertava e estalava os quatro
dedos da mão e dizia: “Bem...”
Feita a revisão, ele sentou-se e me disse:
— Bem, Dr. Plinio, eu não sei o que seria melhor:
o senhor escrever outro livro, ou fazermos a revisão deste mesmo, porque
tenho 400 objeções a levantar.
Diante da idéia de escrever de novo o livro, tive um
sobressalto. Mas corrigir quatrocentos defeitos apontados pelo Dr.
Castilho equivalia mais ou menos a corrigir seiscentos. Porque eu
apontaria quatrocentas soluções, das quais duzentas ele acharia
defeituosas.
Então eu disse:
— Não, Castilho, prefiro rever as suas objeções.
E fomos vendo ponto por ponto, sempre para a frente.
Em várias observações eu não concordava com ele, e
saía discussão. Mas tomei a deliberação de, sempre que não conseguisse
convencê-lo, eu optaria pela opinião dele, para não haver perigo de
"torcer" por mim mesmo.
Pode-se imaginar com que plenitude de alegria vi Dr.
Castilho chegar à última folha com a mesma calma com que ele havia
começado a primeira, e me dizer:
— Bem... então agora ...está tudo
terminado, tudo revisto [51].
8. Receio de vazar a notícia do livro
antes da hora
Terminada afinal a revisão do livro, tínhamos que
entregá-lo a uma tipografia. A que tipografia entregar?
A questão era delicada: se o Clero esquerdista
soubesse antes da hora do lançamento desse livro, poderia vir uma carta do
Núncio obrigando Dom Mayer e Dom Sigaud a retirarem os seus nomes. E
tirados os nomes dos Bispos, grande parte do impacto do livro cessaria*.
*
Este receio não era vão. O Núncio na época era Dom Armando Lombardi, o
qual, segundo o ex-deputado Márcio Moreira Alves, costumava almoçar
semanalmente com Dom Helder Câmara, cujo grupo procurava sempre apoiar
(cfr. Márcio Moreira Alves, O despertar da Revolução Brasileira,
Empresa de Publicidade Seara Nova, Lisboa, 1974, p. 220). E pouco depois
ele iria tentar fazer calar Dom Mayer e Dom Sigaud, como será dito
adiante.
Batemos então de tipografia em tipografia, até chegar
à que editava a Revista dos Tribunais em São Paulo. Contratamos o
serviço e entregamos o texto. Tratava-se de fazer a impressão a toda
pressa, mas a tipografia estava cheia de encomendas. E a impressão se
arrastava.
Afinal, ela ficou pronta. Não sabemos que proteções
de Nossa Senhora houve, mas a Cúria não teve notícia prévia do livro.
9. Estoura a “bomba”: best-seller
nacional
Isto resolvido, apareceu mais um problema: a quem
confiar o lançamento?
Havia uma grande empresa de distribuição de livros,
chamada O Palácio do Livro, localizada na Praça da República, em
São Paulo.
Os Xavieres foram tratar com o diretor e este
manifestou muito boa vontade. E ficou combinado que ele se incumbiria da
distribuição nas 50 livrarias com que tinha contrato. Grande número delas
em São Paulo, algumas eram no Rio de Janeiro e outras do interior do
Estado.
Ele nos sugeriu utilizarmos também, na propaganda, os
serviços de uma organização chamada Clube do Livro, que possuía um
fichário de milhares de leitores.
E aí começou, a partir de 10 de novembro de
1960, a grande difusão de RA-QC* [52].
* O primeiro anúncio
foi publicado em página inteira na edição de setembro de 1960 de
Catolicismo. No número do mês seguinte, ou seja, em outubro, saiu um
artigo de Dr. Plinio contendo um largo resumo das teses centrais da obra.
E em 10 de novembro
O Estado de S. Paulo publicou, pegando todo o rodapé da primeira
página, o seguinte anúncio: “Em todas as livrarias do País: Reforma
Agrária—Questão de Consciência — Um livro de grande atualidade que aponta
os aspectos socialistas e anticristãos da Reforma Agrária” (v. O
Estado de S. Paulo, 10/11/60).
Anuncio
publicado no pé da primeira página da edição de O Estado de S. Paulo
de 10/11/60
Foi uma superbomba! [53]
O livro se espalhou pelo Brasil inteiro [54]
e a certa altura foi reconhecido como best-seller nacional pela
seção bibliográfica do jornal O Globo (30/6/61) [55].
Num relance, o Brasil ficou sabendo do livro.
A primeira edição, com 5.000 exemplares, esgotou-se
em três semanas. A seguinte foi de 7.000 exemplares. A terceira foi de
10.000 exemplares e esgotou-se em 2 ou 3 meses.
Capas das
primeiras edições do RAQC em português e espanhol
[para aceder
aos textos clicar sobre a foto]
No começo do ano seguinte, publicamos a 4ª edição, de
8.000 exemplares* [56].
* Entre as medidas
socialistas denunciadas no livro, figuravam a eliminação das grandes e
médias propriedades pela partilha compulsória de terras, a desapropriação
por preço muito inferior ao real e a instituição do regime de propriedades
comunais.
De outro lado,
RA-QC analisava alguns aspectos sociais e religiosos do problema: se
podia existir socialismo cristão; se era justo haver desigualdades
econômicas e sociais; se o fazendeiro era um parasita ou um benemérito do
País; se a Reforma Agrária viria abalar a instituição da família; e ainda
outros.
Na parte econômica,
Dr. Luiz Mendonça de Freitas mostrava que a Reforma Agrária pretendia
eliminar não só as grandes, mas também as médias propriedades. E provava
com dados estatísticos que a agricultura brasileira vinha cumprindo o seu
dever. Além disso, fazia a defesa de nossa estrutura rural e apontava os
males do excessivo intervencionismo estatal, do confisco cambial e outras
medidas do gênero.
11. Assembléia Legislativa paulista: convite para debate
O impacto causado pelo livro, como previsto, foi
enorme.
Tanto é que, seis dias após o lançamento, a Comissão
de Economia da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo nos convidou
para falar sobre a Revisão Agrária no âmbito da Comissão* [57].
* A sessão
realizou-se no dia 16 de novembro de 1960. O tema era a Revisão Agrária
proposta pelo governador Carvalho Pinto.
Para isto, Dom Sigaud e Dom Mayer vieram para São
Paulo, e nos preparamos para a discussão do assunto perante os membros da
Comissão.
Qual não foi a nossa surpresa quando verificamos que,
dado o interesse suscitado pelo assunto, a Comissão de Economia iria fazer
a sessão no próprio plenário da Assembléia. Havia grande número de
deputados, inclusive alguns esquerdistas, e a galeria ficou toda tomada.
Os autores do livro abordaram os vários aspectos do
projeto de Revisão Agrária, ressaltando notadamente o caráter igualitário
e anticristão de seus dispositivos. Fui o primeiro a falar, e em seguida
os dois Bispos, Dom Sigaud e Dom Mayer. Por fim, o economista Mendonça de
Freitas falou sobre os aspectos econômicos do projeto.
Enfrentamos depois um acalorado debate. Várias
perguntas foram dirigidas a Dom Sigaud, a Dom Mayer e a mim. Dom Sigaud e
Dom Mayer responderam muito bem. E Dr. Luiz Mendonça de Freitas expôs com
sobranceria extraordinária os assuntos atinentes à sua especialidade [58].
Esse nosso pronunciamento teve em São Paulo uma
repercussão enorme. Foi um belo lance da campanha anti-agro-reformista [59].
12. Na TV Tupi, polêmica com Paulo de Tarso
Realizei também um debate público em São Paulo, no
programa O Grande Júri, com o deputado Paulo de Tarso, ex-prefeito
de Brasília, não propriamente sobre a Reforma Agrária, mas sobre se o
socialismo e o catolicismo eram compatíveis* [60].
* Neste momentoso
debate, travado no dia 24/10/61 ante as câmaras da TV Tupi de São Paulo, o
deputado pedecista Paulo de Tarso (ele fora prefeito de Brasília no
governo Jânio Quadros e era um expoente da esquerda católica brasileira)
defendia a posição de que o socialismo era compatível com a doutrina da
Igreja, e o capitalismo condenado por Ela.
Com base nas
encíclicas papais que tratavam do assunto, Dr. Plinio demonstrou o
contrário: que o capitalismo, em si, não era condenado pela Igreja,
mas tão somente em seus abusos; e o socialismo, este sim, estava condenado
até mesmo nas suas formas mitigadas.
Ainda neste debate,
Dr. Plinio foi colocando problemas que levaram o deputado pedecista a
revelar convicções sócio-econômicas que o público não lhe conhecia. Isto
contribuiu na época para desvendar, em seus reais matizes, as tendências
ideológicas do chamado esquerdismo católico (cfr. Meio século de
epopéia anticomunista, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 1980).
1. Dom Armando Lombardi exige silêncio dos dois Bispos e tenta amarrar
as suas mãos
Dias depois, Dom Sigaud e Dom Mayer receberam uma
carta do Sr. Núncio Apostólico, Dom Armando Lombardi, em que este pedia
aos dois Bispos para explicar as razões das críticas que faziam à Revisão
Agrária, ordenando-lhes ao mesmo tempo que “evitassem manifestações
públicas sobre a matéria”*.
* Os dois Bispos
responderam, em carta conjunta ao Sr. Núncio, que “tendo recebido só no
dia 27 de novembro a carta de V. Excia. do dia 15 do corrente”,
estavam preparando "com a devida urgência o parecer que V. Excia. pedia".
Mas aproveitavam para significar a Dom Armando Lombardi a perplexidade
deles diante de fatos que, "segundo supomos, não se enquadram nas
perspectivas que as cartas que V. Excia. nos escreveu no dia 15 sugerem.
Com efeito, desejando conhecer nossas objeções sobre o projeto de revisão
agrária [...], e pedindo-nos que silenciássemos por algum tempo
sobre a matéria [...], um conjunto de fatos parece prenunciar uma
ofensiva pública de vários Senhores Bispos contra a atitude por nós
assumida”.
Depois de se
referirem a notícias confirmando esses rumores — o anunciado
pronunciamento do Episcopado paulista que seria uma réplica ao livro
RA-QC, o discurso de Dom Helder em Brasília, e as declarações do Sr.
Cardeal de São Paulo favoráveis à Revisão Agrária — concluíam:
“A um diplomata
da alta categoria de V. Excia. não escaparão desapercebidas as
conseqüências a que podem conduzir os fatos aqui narrados. Embora não
tenhamos recebido convite para essa reunião de Senhores Bispos, que se
realizará antes mesmo de terem chegado às mãos de V. Excia. as
[nossas] razões [...], não receamos para nossas pessoas
qualquer refutação. Estamos certos de estar com a verdade, e, forçados a
voltar à liça por um dever de honra, e segundo os princípios da justiça
natural, saberemos com a graça de Deus fazer triunfar a boa doutrina.
Contudo, desejamos que todas as conseqüências que dessa reunião se
seguirem pesem apenas sobre os que a promovem” (cfr. carta de Dom
Sigaud e Dom Mayer ao Sr. Núncio Dom Armando Lombardi, de 1°/12/60).
2. Pronunciamento dos Bispos paulistas contra o livro
Silenciados os dois Bispos, menos de um mês após o
lançamento de RA-QC, Dom Helder Câmara, enquanto secretário geral
da CNBB, começou a organizar um pronunciamento coletivo do Episcopado
paulista contra o nosso livro e de apoio à Revisão Agrária* [61].
* Um dos sintomas
dessa campanha episcopal foi o aviso que de repente começou a aparecer nos
principais jornais de São Paulo, anunciando com insistência e de modo
enigmático: “Reforma Agrária—Questão de Consciência: assista dia 5, às
21,30 horas, nos Canais 4, 5 e 7”.
Nesse momento, eu estava no Rio passando alguns dias [62].
* * *
Afinal, no dia 5 de dezembro reúnem-se os Bispos das
Províncias Eclesiásticas de São Paulo, com a presença de Dom Helder
Câmara, e apóiam a Revisão Agrária promovida pelo Governo do Estado.
E em sensacional programa de TV, sete Bispos
divulgaram largamente o pensamento da Assembléia sobre o assunto* [63].
Todos eles fizeram declarações, não diretas, mas implicitamente contra o
livro.
* Vale a pena
registrar o nome desses Bispos: Dom Helder Câmara, enquanto relator e
Secretário da CNBB; Dom João Batista da Motta e Albuquerque, Arcebispo de
Vitória; Dom Antonio Macedo, Bispo Auxiliar de São Paulo; Dom Aniger
Melilo, Bispo de Piracicaba; Dom David Picão, Bispo de São João da Boa
Vista; Dom Jorge Marcos de Oliveira, Bispo de Santo André; e Dom Vicente
Zioni, Bispo Auxiliar de São Paulo.
D. Helder
Câmara e o Episcopado paulista tentam atenuar a força de impacto de
“Reforma Agrária – Questão de Consciência” criticando o livro em
programa de TV. Seus argumentos impressionam pouco, e a corrente
aglutinada em torno da TFP não cessa de engrossar
Dom Helder, durante
a entrevista, havia afirmado estar “expressamente autorizado por todos
os Arcebispos e Bispos de São Paulo”. Perante a História cumpre
assinalar que Dom Henrique Gelain, então Bispo de Lins, não compareceu à
reunião do Episcopado paulista, e não consta que se tenha solidarizado com
suas conclusões. Dom José Maurício da Rocha, Bispo de Bragança Paulista, e
Dom Germano Vega Campón, Bispo titular de Oreo e residente no Estado de
São Paulo, além de não comparecerem, solidarizaram-se publicamente com
RA-QC.
O pronunciamento do
Episcopado paulista deixava no ar uma perplexidade sobre que atitude devia
tomar o simples fiel quando os Pastores divergem entre si. Assim, por
ordem de Dom Mayer, o Secretário do Bispado de Campos, Padre João Bloes
Netto, publicou um Esclarecimento, em que recordava os ensinamentos
da Sagrada Teologia sobre o Magistério dos Bispos. Frisava esse
Esclarecimento que, embora cada Bispo fale com autoridade própria a
ele conferida pelo mesmo Cristo, seu ensinamento não tem o privilégio da
infalibilidade, o qual assiste apenas ao Soberano Pontífice. Quando há
divergências de doutrina entre Bispos, o fiel deve procurar conhecer o
ensinamento pontifício para se conformar com ele (cfr.Um homem, uma obra, uma gesta,
Edições Brasil de Amanhã, Artpress, São Paulo, 1988, pp. 69 e ss.).
Nós estávamos no nosso auditório da rua Vieira de
Carvalho, com a televisão colocada na mesa de conferências e assistindo a
transmissão.
Não se sabe por que, as figuras dos Bispos saíam
deformadas no vídeo, uma coisa espantosa. Dom Helder, então, parecia uma
obra prima de arte moderna!
Quer pelo desfiguramento das pessoas, quer porque já
tínhamos difundido muito o livro, o fato concreto é que a cena não
produziu nenhum efeito sobre o público e desagradou profundamente a classe
dos proprietários rurais [64].
* * *
Um comentário muito de passagem sobre o Núncio Dom
Armando Lombardi.
D. Armando
Lombardi em foto de 1961
Ele e Dom Helder Câmara tinham almoços dominicais na
Nunciatura Apostólica, que ainda funcionava no Rio de Janeiro. E nesses
almoços eram “cozinhadas” as nomeações de Bispos inovadores* [65].
* Dom Mayer e Dom
Sigaud decidiram submeter “ao alto julgamento da Suprema Sagrada
Congregação do Santo Ofício, a declaração de 5 de Dezembro do Venerando
Episcopado Paulista”, em ofício dirigido ao seu secretário Cardeal
Alfredo Ottaviani (cfr. Ofício de Dom Mayer e Dom Sigaud ao Cardeal
Ottavini, de 20/12/60).
Poucos meses depois,
escreviam nova carta ao mesmo Cardeal Ottaviani, em que faziam notar “a
gravidade da situação criada pela atuação perniciosa de S. Excia. Revma.
Dom Helder Câmara como Secretário da C.N.B.B. Aos poucos S. Excia.,
fortemente apoiado pela Nunciatura Apostólica, vai levando o Episcopado
das várias províncias a posições francamente socialistas. [...] A
desorientação do Secretário e dos Arcebispos que dirigem a C.N.B.B. é tão
grande, seus conceitos e suas teses a respeito do direito de propriedade
são tão eivados de socialismo que, em uma mensagem de solidariedade que a
Comissão Central da Conferência dos Bispos do Brasil enviou aos Bispos da
atormentada Ilha de Cuba se lêem surpreendentes afirmações. [...]
Escrevendo a Cuba, onde os católicos devem ser sustentados com firmeza em
sua luta contra o comunismo e em favor do instituto da propriedade, os
membros da Comissão [Central] da C.N.B.B. põem tais restrições ao
direito de propriedade que no fim, quem tem razão é Fidel Castro.
[...] O Episcopado Nacional está sendo tangido para um conceito
socialista da propriedade pelos membros da Comissão Central, com o Sr. Dom
Helder Câmara à frente. Infelizmente esta penetração de idéias vai
progredindo rapidamente e vai se traduzindo em atitudes igualitárias, em
fomento escandaloso de greves, em apoio a legisladores de tendências
esquerdistas [...]. Sabemos que em vários Senhores Bispos estas
atitudes provêm da confiança que depositam nos elementos que dirigem a
C.N.B.B., que vêem bafejada pelo apoio da Nunciatura. Mas com isso se vai
quebrando a resistência dos católicos, suas idéias vão se corrompendo, os
Bispos que se opõem a essas idéias são apresentados como cismáticos,
separatistas, sua atitude vai sendo destruída, e os espíritos vão sendo
levados a abraçar idéias e soluções socialistas, sob o pretexto de que
tais princípios e soluções correspondem à doutrina da Santa Igreja.
Sabemos que a maioria dos Srs. Bispos tem uma grande docilidade diante dos
ensinamentos da Santa Sé. Esta docilidade é de grande vantagem, pois
permite à Santa Sé guiá-los com facilidade. Mas como esta docilidade não
vem acompanhada de bastante ciência, discernimento, prudência e energia,
facilmente acontece que a presença da Sagrada Púrpura e o nome da colenda
Nunciatura façam com que a boa fé de um Bispo não dê o fruto que deveria
dar” (Carta de Dom Mayer e Dom Sigaud ao Cardeal Ottavini, de 4/2/61).
3. Dom Sigaud elevado a Arcebispo de Diamantina
Estávamos no meio de toda essa polêmica quando
ocorreu um episódio que iria marcar a nossa história.
Eu tinha ido passar alguns dias no Rio. Ainda no
hotel, logo que acordei, lembro-me de ter feito mentalmente um balanço de
nossa situação.
Desci em seguida para o
hall, onde já me
esperavam Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra e Dr. Fábio Xavier da Silveira,
que haviam me acompanhado nessa viagem.
Nisto me telefona de São Paulo o Dr. José Fernando de
Camargo.
Eu disse ao Fábio:
— Você me faz um favor? Atenda o telefone e veja o
que quer o José Fernando.
Volta o Fábio do telefonema dando risada. Ele era
muito engraçado, muito humorista:
— O senhor não imagina o que aconteceu.
— Diga o que é.
— O Dr. José Fernando deu a notícia de que o Papa
elevou Dom Sigaud a Arcebispo de Diamantina.
A nomeação de Dom Sigaud para Arcebispo de Diamantina
figurou como uma aprovação indireta da Santa Sé ao livro
RA-QC, e
alterou em alguma medida o panorama que ia se delineando turvo*.
* Essa nomeação
havia se dado a 20 de dezembro de 1960, mas a notícia só foi dada a
público no dia 31 do mesmo mês. Ele tomou posse de sua Arquidiocese no dia
16 de abril de 1961. O n° 126 de Catolicismo, de junho de 1961, fez
uma cobertura do evento.
Eu me lembro de que fizemos festa a respeito da
passagem de Dom Sigaud para Diamantina, mandamos notícias para os jornais
e realçamos que era um dos autores de
RA-QC.
Os proprietários rurais, com o livro na mão,
entenderam o seguinte: “Esses Bispos de São Paulo pensam tal coisa. Mas
esse outro, que acaba de ser promovido pelo Papa a Arcebispo de
Diamantina, pensa de outra maneira. Logo, pomos em dúvida o que dizem os
Bispos paulistas, e não vamos ligar para eles”.
E assim a classe rural se firmou em sua posição
contra a Reforma Agrária.
4. Difusão pública em feiras e exposições rurais
Para aumentar a venda do livro, lançamos pela
primeira vez as campanhas de difusão em feiras, exposições rurais e outros
eventos públicos. E isto marcou uma mudança de fase na história da TFP,
recentemente fundada.
Coleta de assinaturas para o manifesto de apoio às
teses de Reforma Agrária – Questão de Consciência, em abril de 1964
Nosso pessoal ainda não usava as características
insígnias de campanha, ou seja, a capa vermelha e o estandarte. Tínhamos
só o antigo distintivo de congregado mariano.
Os rapazes começaram também a viajar pelo Brasil
inteiro, numa espécie de prenúncio das caravanas itinerantes [66].
* * *
Quando a campanha começou, a pré-TFP era muito
pequena.
Com essas sucessivas atitudes públicas, ela foi
ganhando prestígio. E a grande alta da TFP veio depois com as campanhas de
rua. Aí é que ela tocou o zênite [67].
Pode-se dizer que essa pré-TFP mudou de estatuto,
porque ela passou a ser um grupo já então conhecido no País inteiro, com
projeção nacional.
5. Classe rural aliviada: quebra-se o mito da unanimidade em torno da
esquerda católica
Premido pelas circunstâncias, na época um líder rural
veio visitar-nos para agradecer o livro em nome da associação dele, e
disse nessa ocasião que os fazendeiros, antes do livro, tinham a sensação
de estar num incêndio sem socorro. Quando apareceu o nosso livro, eles
tiveram a impressão de quem vê chegar o corpo de bombeiros jogando água e
apagando o incêndio. Esta era a situação em que eles estavam [68].
Outro efeito. Dom Helder Câmara, que teve o maior
apoio publicitário jamais obtido na história do Brasil por nenhum
brasileiro (nem mesmo o falecido Presidente Getulio Vargas conseguira tal
apoio publicitário), ameaçava o Brasil com o seu movimento de "pressão
moral libertadora" de sentido fortemente agro-reformista [69].
Pois bem, com a nossa campanha, o público em geral
começou a ver que aquele Prelado não era o porta-voz indiscutível da
Igreja, nem levava atrás de si a massa dos católicos [70].
6. Críticas esperadas, críticas não esperadas
Estávamos certos, de antemão, de que o livro sofreria
muitas críticas, e como pressupúnhamos que, dentre elas, algumas pelo
menos seriam substanciosas, destras, corteses, prelibávamos os prazeres
intelectuais rijos, inerentes às lutas ideológicas travadas segundo as
nobres normas do cavalheirismo e da lógica.
A reação prevista veio de fato, mas quão diferente do
que esperávamos! Nenhum grande artigo apareceu contra nosso livro, opondo
tese a tese e argumento a argumento, com a lealdade e o vigor do torneio
intelectual de boa lei.
Pelo contrário, pulularam as pequenas notas de
imprensa, carregadas de invectivas pessoais ou afirmações gratuitas, que
por sua inteira inconsistência não mereciam, e em rigor nem sequer
comportavam, qualquer réplica*.
* Uma dessas
declarações contrafeitas foi a do então Secretário da Agricultura de São
Paulo, o Sr. José Bonifácio Coutinho Nogueira, o qual considerava a
difusão do livro neste Estado “inoportuna, desde que poderá causar
trauma ideológico no espírito dos católicos”. Dizia ele que
“somente Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta está autorizado a falar
em nome da Igreja em São Paulo e a ele cabe a última palavra sobre o
assunto [sic!]. Sabemos que a opinião de Sua Eminência é favorável
ao projeto de Revisão Agrária, conforme manifestação anteriormente feita,
bem assim como de outro príncipe da Igreja, Dom Helder Câmara, do Rio de
Janeiro. Os autores do referido livro [...] pertencem a uma parcela
de reacionários apegados a sistemas superados” (Última Hora,
São Paulo, 25/11/60).
Na época, essa
declaração causou estranheza. Pois, para defender a Reforma Agrária, o
Secretário da Agricultura paulista não alegou razões técnicas de sua
competência, mas se erigiu em zeloso campeão do que lhe pareceu ser a boa
ordem na Igreja!
Em uma tentativa de criar condições para um debate de
alto nível, escrevi um artigo (Julio Verne, Homero e o
agro-revisionismo, Diário de São Paulo, 11/1/61) convidando os
opositores de Reforma Agrária-Questão
de Consciência a modificarem o tom de suas investidas, despindo-as de
seu cunho pessoal e dando-lhes mais conteúdo intelectual.
Nada consegui, pois embora a obra continuasse a
figurar entre as mais procuradas nas livrarias, as críticas, que já vinham
sendo menos frequentes, tanto quanto pude apurar, cessaram inteiramente.
* * *
Entretanto, não dava eu por frustrada a esperança de
um verdadeiro e sério debate sobre a matéria. É que, antes mesmo de ser
publicado meu apelo no Diário de São Paulo, ouvira dizer que o Sr.
Gustavo Corção estava preparando uma série de artigos "de arrasar", contra
Reforma Agrária- Questão de
Consciência.
Jornalista de relevo, polemista lúcido e eficiente,
dotado de sólida inteligência e boa cultura, elevaria ele, sem duvida, o
debate ao nível esperado. Aguardava eu, pois, com vivo interesse, a
temível investida.
Os artigos saíram,
por fim, em numero de três.
Não os li desde logo,
pois as semanas em que eles vieram a lume coincidiram com o período da
enfermidade e morte de meu velho e querido pai*.
* Coincidiram também
com a realização do I Congresso Latino-americano de Catolicismo
(25-1 a 1º-2-1961). Os artigos de Gustavo Corção tinham como título
Reforma Agrária: Questão de Consciência; Reforma agrária e direito
de propriedade; e Harmoniosa desigualdade, publicados em O
Estado de S. Paulo de 22/1/61, 29/1/61 e 5/2/61 respectivamente.
Assim que pude,
entretanto, tratei de me inteirar deles. E confesso que tive uma decepção
a mais, acompanhada de um vivo sentimento de perplexidade.
A decepção veio da
nota panfletária do ataque. Esperei que ela não estivesse presente nos
artigos, ou que pelo menos estes espelhassem algo do talento do autor,
isto é, que fossem concisos, brilhantes, inteligentes. Pelo contrário,
vieram opacos, prolixos e pesadamente injuriosos, sem conseguir vulnerar
de fato a parte adversa.
Mas o pior da
desilusão me veio da circunstância de que, logo no primeiro relance, os
três artigos do Sr. Gustavo Corção me deixaram ver que o fogoso crítico
não lera seriamente Reforma Agrária-Questão
de Consciência.
Ora, doía-me a
perspectiva de ter de afirmar isto de público, a propósito de um
intelectual com quem muitas vezes não tenho estado de acordo, mas que
merece, não a fúria destemperada com a qual tratou nossa obra e de algum
modo nossas pessoas, mas uma real consideração*.
* Dr. Plinio
respondeu a esses ataques em uma série de três artigos publicados em O
Jornal, Rio de Janeiro, 17, 18 e 19/3/61 e Diário de S. Paulo,
18, 21 e 23/3/61. Catolicismo transcreveu o primeiro dos três
artigos sob o título:
Reforma Agrária-Questão
de Consciência: livro odioso como a invasão da Hungria? (Catolicismo
nº 124, abril de 1961); e depois os outros dois artigos, sob o título
Reforma Agrária-Questão de
Consciência - livro que o Sr.
Gustavo Corção não leu (Catolicismo nº 125, maio de 1961).
Nesses artigos ficava provado que o
ilustre jornalista havia formulado suas críticas sem antes estudar o livro
com a devida atenção. O jornal O Estado de S. Paulo, que havia
publicado os artigos de Corção, não publicou as respostas.
Outro episódio interessante dessa polêmica. Nós não
tínhamos adversário mais impetuoso contra a causa que sustentávamos do que
o Cardeal Motta [71].
Ele tomou desde logo uma posição francamente favorável à Revisão Agrária.
Mais tarde ele se poria decididamente ao lado de Jango Goulart [72].
Enquanto Cardeal de São Paulo, deu uma entrevista
para uma revista francesa, dizendo que o Episcopado Nacional era favorável
à Reforma Agrária, com exceção da voz dissonante de dois Bispos*.
* A entrevista foi
concedida à revista católico-esquerdista francesa Informations
Catholiques Internacionales de 15/12/61.
O Purpurado afirmava
que “os Cardeais, Arcebispos e Bispos do Brasil” estavam concordes
“sobre a oportunidade e a urgência de uma reforma agrária digna desse
nome”, não obstante “a opinião dissonante de dois Bispos,
co-autores
de um livro largamente difundido e, mais bem, favorável ao ‘statu quo’".
Dom Sigaud e Dom Mayer escreveram então uma carta a
Dom Motta impugnando suas declarações à imprensa francesa. Mas a cortesia
do Sr. Cardeal não se aplicava nas relações para conosco, de forma que não
deu a menor resposta. Para ele, a política era a do fato consumado: ou se
aceitava sem discutir o que ele queria, ou ficava-se acusado de cindir o
Episcopado...
Dom Sigaud e Dom Mayer mandaram ainda, se não me
engano, mais duas cartas no mesmo teor. Na última delas, anunciavam que se
veriam obrigados a sair a público. E o Cardeal novamente nada respondeu.
Eles então publicaram nos jornais uma declaração,
mostrando que o Cardeal havia desfigurado a realidade e que boa parte do
Episcopado não havia se manifestado a favor da Reforma Agrária*.
* Nesse comunicado
de Dom Sigaud e Dom Mayer, publicado como seção livre na grande imprensa
do Rio e de São Paulo, os dois Prelados faziam notar que, dos 187 Bispos
brasileiros, apenas 49 haviam feito declarações que, ora mais claramente,
ora menos, divergiam de RA-QC. E que os outros 138, entre eles dois
Cardeais (o do Rio e o de Salvador) não se haviam pronunciado sobre a
matéria. Ademais, o livro de que eram co-autores propugnava uma reforma
agrária sadia, de onde não se poder afirmar que seus autores fossem pura e
simplesmente “favoráveis ao ‘statu quo’“ (cfr. Catolismo n°
136, abril de 1962).
* * *
Pouco depois desse comunicado, fui a uma festa de
aniversário onde encontrei uma pessoa que tinha certas relações de família
comigo e também com o Cardeal. E a interpelei:
— Como está a questão do Cardeal?
Ela disse:
— Naquela questão do Cardeal vocês ganharam. E o
Cardeal não vai lhes dar resposta nenhuma. Mas vai sair uma reparação do
governo a ele, uma coisa extraordinária.
De fato, o governo estadual promoveu atos de
reparação a ele nas escadarias da Catedral, com rojões e fogos de
artifício, mas sem dizer a propósito do quê era a reparação. E aquilo
morreu. O público paulista não deu a menor atenção.
Esses embates, naqueles tempos anteriores ao Concílio
Vaticano II, eram uma coisa nunca vista. Mas, grosso modo, graças a Deus,
nesse episódio a Reforma Agrária perdeu mais uma batalha [73].
1. Viagem a Brasília: 27 mil agricultores contra a Reforma Agrária
Nós resolvemos, a essa altura, lançar um
abaixo-assinado de fazendeiros, dirigido ao Congresso Nacional, local onde
estava sendo votada uma lei de Reforma Agrária, pedindo para que essa lei
não fosse aprovada: aderiram 27 mil fazendeiros do Brasil inteiro.
Encerrado esse abaixo-assinado, Dom Sigaud, Dom
Mayer, Dr. Luiz Mendonça e eu, acompanhados de Dr. Plinio Xavier, fomos a
Brasília para entregá-lo ao Congresso Nacional. Isto no mês de julho de
1963.
Fomos muito felizes, porque já no avião encontrei o
então presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli [74].
Apresentei Dom Mayer e Dom Sigaud a ele e fui falando a respeito da
questão.
Eu tinha conhecido Ranieri Mazzilli em Paris, na
Chapelaria Gelot da Place Vendôme. Fui encomendar um chapéu e ele
estava lá também. Ele se aproximou e me disse:
“O senhor não é
brasileiro?” — “Sou sim, e o senhor também?” — “Também”. Trocamos os
nomes e vimos que éramos do mesmo Estado; ele é paulista da cidade de
Caconde. Daí as nossas relações.
Chegando a Brasília, no dia seguinte fomos em
comissão à Câmara dos Deputados e ao Senado.
Tínhamos revisto o abaixo-assinado com todo o
cuidado, verificando se as assinaturas estavam em ordem. E tínhamos
noticiado pelos jornais que íamos entregá-lo.
Chegamos à sala de Ranieri Mazzilli, ele nos recebeu
logo. Ele é um homem de um trato muito agradável, muito gentil.
Fiz um discursinho e entreguei o abaixo-assinado, na
presença de representantes da imprensa.
Conversamos um pouco e eu disse:
— Bem, Dr. Mazzilli, o senhor vai me dar licença,
Dom Mayer, Dom Sigaud, Dr. Mendonça e eu vamos agora visitar o presidente
do Senado e mostrar a ele o abaixo-assinado. Depois trago-o de volta para
o senhor.
Ele, com toda amabilidade, me disse:
— Não, Dr. Plinio, o abaixo-assinado está
entregue. Ele agora vai para os técnicos da Câmara examinarem.
Ou seja, os técnicos da Câmara iriam examinar se as
assinaturas eram autênticas, que fazendeiros haviam assinado e que
influência política tinham esses fazendeiros.
Graças a Deus estávamos com a consciência tranqüila [75].
Descemos em seguida e passamos pelo café onde havia
vários deputados. E vejo Dom Sigaud parar e falar com um homem que eu não
conhecia pessoalmente, mas que reconheci por ter visto as fotografias no
jornal: Milton Campos [76].
Dali fomos ao gabinete do presidente do Senado,
senador Nogueira da Gama. Ele também foi muito amável. Convocou certo
número de senadores para nos receber. E depois convidou-nos para
assistirmos da tribuna de honra a uma sessão do Senado, onde demoramos
muito pouco.
Ao sairmos, ele nos acompanhou até o limite externo
do Senado.
Ao aproximar-se a conturbada era janguista, em que o
País esteve a ponto de soçobrar na subversão [78],
o esquerdismo católico que apoiou Goulart quase deitou o Brasil por terra [79].
A dramática controvérsia referente às reformas de
base chegava ao auge justamente nas vésperas da queda de João Goulart.
Nessa ocasião, católicos belo-horizontinos, sob a
inspiração da TFP, promoveram um grande e vitorioso movimento contra a
realização na capital do Estado, de um congresso da CUTAL, organismo de
orientação claramente comunista.
Logo depois, com o apoio da TFP, 210 mil brasileiros
subscreveram uma interpelação à Ação Católica de Belo Horizonte.
Esta se pronunciara de modo violento contra os
católicos mineiros que corajosamente haviam impedido a realização de um
comício de Brizola favorável às Reformas de Base, e negara, ao mesmo
tempo, que tais reformas envolvessem uma questão de consciência* [80].
* Esse documento da
Ação Católica afirmava que os católicos, enquanto católicos, nenhuma
oposição tinham a fazer às Reformas de Base. E nele ficava claro que, ao
negar a questão de consciência, tinha como alvo o livro RA-QC.
Ainda mais: trazia o
alto placet de Dom João Rezende Costa, Arcebispo Coadjutor (depois
titular) de Belo Horizonte, que apôs a ele as seguintes palavras: “De
boa vontade autorizo esta publicação” (cfr. O Diário de Belo
Horizonte, edição de 29/2/64).
Em face desse
pronunciamento, a nossa interpelação pedia à Ação Católica que definisse
claramente sua posição ideológica, e que fundamentasse a estranha
afirmação de que não havia questão de consciência em matéria de
reformas de base (v. texto na íntegra em Catolicismo n° 160, abril
de 1964).
3. Revolução de 64: Goulart passa recibo
Todos temos na memória com quanta vitalidade, com que
ardor se dividiram as correntes de pensamento, os partidos políticos, as
organizações de classe, no debater os prós e os contras da Reforma Agrária
proposta pelo então Presidente João Goulart.
Chegou-se mesmo a afirmar na imprensa que os marcos
divisórios entre os partidos políticos haviam desaparecido, só restando
dois campos, o dos adeptos e o dos opositores da Reforma Agrária [81].
Um irresistível movimento de inconformidade com a
orientação fortemente esquerdista do Governo João Goulart desfechara na
Revolução de 64*.
* João Goulart
chegou mesmo a encaminhar ao Congresso Nacional um pedido para governar em
estado de sítio, mas encontrou a oposição da maioria dos parlamentares,
sendo então retirado.
Entre os gravames então formulados pela imensa
maioria dos brasileiros contra o presidente deposto, tinha acentuado
realce a inconformidade de todo o País com as intenções agro-reformistas
que aquele governo acalentava [82].
* * *
O que aconteceu depois faz parte da história recente
e é do conhecimento de todos [83]:
um movimento militar, apoiado em larga medida pela população civil, esta
por sua vez inspirada na sua orientação anti-agro-reformista pelo livro
RA-QC, acabou depondo o governo Jango Goulart.
Não que a TFP tivesse trabalhado para depor o governo [84].
Ela não participou do golpe de 64 [85],
não participou de nenhum conciliábulo, de nenhuma reunião preparatória.
Não integrou nenhuma das comissões que promoveram as célebres "Marchas"* [86].
* Essas marchas
ficaram conhecidas como “Marcha da Família com Deus pela Liberdade".
Discurso no
Automóvel Clube, em 30 de março de 1964, de João Goulart
O que a TFP fez foi criar um estado de espírito
anti-agro-reformista, sem outras intenções. Esse estado de espírito levou
a que muitos brasileiros se coligassem para a derrubada de Jango Goulart,
que eles julgavam irremediavelmente comprometido com a esquerda e com as
Reformas de Base, sobretudo com a Reforma Agrária* [87].
* O próprio João
Goulart disto assinou recibo. No último discurso que antecedeu de um dia a
sua queda, referiu-se indiretamente à ação ideológico-religiosa da TFP, ao
dizer, com voz incendiada:
“O veto desta
minoria reacionária ao meu governo [...] fortaleceu-se quando
afirmei que as Reformas de Base são um imperativo da hora em que vivemos.
[...] Passaram a acusar de anticatólicos não apenas o Presidente da
República, mas o próprio Cardeal de São Paulo. Na hora em que ainda
ressoam as Encíclicas Sociais de João XXIII, é demasiada audácia a desses
aventureiros se atreverem a falar em nome da Igreja. Não me cabe, porém,
combater essa usurpação, pois a Ação Católica de Minas e de São Paulo já
tomou essa iniciativa” (O Globo, 31/3/64).
4. Cardeal Motta removido pela Santa Sé
Antes do Concílio Vaticano II, a Santa Sé tinha muito
senso diplomático.
Menos de um mês depois do golpe de 31 de março de
1964, mais precisamente no dia 16 de abril, o Cardeal Motta foi
transferido de São Paulo e enviado como Arcebispo para a Diocese de
Aparecida [88].
Em boa parte, ele fora afastado por causa das medidas por ele tomadas.
Anteriormente, tinha havido todo o episódio do Em
Defesa e a carta por mim escrita ao Episcopado pedindo o julgamento do
livro, o que o deixavam muito mal.
Mais proximamente, o que provavelmente liquidou sua
carreira foi a questão da Reforma Agrária. Naquela época, os proprietários
rurais se tornaram muito mais reativos contra a Reforma Agrária do que
hoje. E vendo, com surpresa, que uma parte ponderável do Clero tinha
passado para a esquerda influenciada pelo Cardeal, isto produziu uma
impopularidade em torno dele verdadeiramente enorme, o que pode ter movido
o Vaticano a afastá-lo [89].
5. Declaração do Morro Alto
No meio dessas batalhas todas, começou a circular um
zum-zum de que a TFP era muito negativista, pois só fazia campanhas
contrárias à Reforma Agrária, mas não apresentava um projeto favorável à
agricultura.
Não era verdade, porque RA-QC tratava disso.
Mas, para acabar com este zum-zum, Dr. Fábio Xavier da Silveira aglutinou
um grupo de fazendeiros da região de Amparo e formamos com eles uma
comissão que elaborou a chamada Declaração do Morro Alto, a qual
foi transformada em um fascículo contendo a nossa política positiva em
matéria de agricultura. Esse livro foi também largamente espalhado pelo
Brasil* [90].
* Lançado em outubro
de 1964, teve duas edições em português, num total de 22.500 exemplares,
além de sua transcrição integral em Catolicismo n° 167, de novembro
de 1964. Foi igualmente traduzido para o castelhano e incluído na edição
espanhola de Reforma Agrária—Questão de Consciência.
Nesse ínterim, a Nação brasileira tomou conhecimento
de que a Câmara dos Deputados acabara de aprovar, num enigmático
congraçamento de bancadas janguistas e antijanguistas, o projeto de lei de
Reforma Agrária de autoria do pedecista Aniz Badra, emendado pelo
integralista Ivã Luz.
A grande maioria dos brasileiros — e mesmo dos
agricultores — não conhecia senão muito vagamente o conteúdo do projeto
Aniz Badra.
Entre os próprios Srs. Deputados, provavelmente
muitos não conheciam o substituto Ivã Luz que festivamente aprovaram.
Convinha esclarecer urgentemente a opinião brasileira
sobre essa nova lei que, numa hora de magnífica e sadia reação nacional
contra o comunismo, consolava de seus dissabores o Sr. Luiz Carlos
Prestes, pois ela dava um grande passo no sentido de reduzir a lavoura
brasileira a escrava do Estado, tal qual acontece na URSS, em Cuba etc.
* * *
O projeto Aniz Badra continha dispositivos
autorizando uma desapropriação confiscatória dos imóveis rurais.
O substitutivo Ivã Luz não continha essas disposições
confiscatórias. Entretanto, continha em todos os seus elementos essenciais
a parte talvez mais despótica e reprovável do projeto Aniz Badra.
No artigo 16, fulminava com verdadeira pena de
confisco sem indenização todo o "imóvel rural susceptível de
aproveitamento econômico, mantido totalmente inexplorado e sem
benfeitorias por mais de dez anos". Desta duríssima penalidade não
eram sequer excetuados os bens de órfãos, viúvas ou inválidos.
Ele instaurava no Brasil uma ditadura agrária cem
vezes mais férrea do que todos os regimes autoritários por que tem passado
o País. Ele conferia ao Presidente da República um poder discricionário
sobre todos os fazendeiros, reduzidos a párias. Ele aumentava de tal
maneira o poder da União que destruía na prática o regime federativo.
E, supremo paradoxo, era para pôr nas mãos do Chefe
de Estado tal soma de poderes, que, aprovando tal projeto, confluíram os
partidos políticos que acabavam de derrubar o Sr. João Goulart. Eles
criaram uma ditadura econômico-social de sentido totalitário e janguista.
Jango teria caído, e o janguismo teria triunfado.
Numa atitude respeitosa e cordial apelamos para os
detentores do Poder Legislativo, na Câmara e no Senado, para que depois de
madura reflexão, e no exercício de suas altas atribuições constitucionais,
detivessem o passo à Reforma Agrária socialista e confiscatória que
parecia na iminência de ser aprovada também no Senado* [91].
* Esse apelo foi
publicado na íntegra no Diário de S. Paulo de 8 de abril de 1964 e
no Estado de Minas de 11 de abril de 1964. Numerosos outros jornais
publicaram resumos. O comunicado denunciava a aprovação do projeto pela
Câmara dos Deputados e tinha como título “Reforma agrária Aniz
Badra-Ivã Luz significa janguismo sem Jango”.
O estudo foi
entregue em mãos, com uma mensagem, a cada senador e a cada deputado, e
largamente difundido pela imprensa e contribuiu para sensibilizar de algum
modo os congressistas. A propositura, já aprovada na Câmara na sessão do
dia 7 de abril, foi sustada no Senado.
2. O Estatuto da Terra
Meses depois de empossado, o novo chefe de Estado
apresentou ao Congresso o projeto de lei do Estatuto da Terra, o qual
abria as portas do País para uma drástica Reforma Agrária.
A popularidade do Marechal Castelo Branco e o
otimismo desavisado dos vencedores fizeram com que ninguém tomasse a sério
a possibilidade da aplicação de tal Estatuto.
Para explicar sua promulgação, se lhe atribuíam as
mais variadas causas, menos a explicação normal e lógica de que o Governo
tinha pura e simplesmente propósitos agro-reformistas [92].
Tratava-se de um arrefecimento geral, que atingiu
todos os setores da opinião pública sem discriminação e se manifestou de
modo flagrante, não só no marasmo dos adversários do agro-reformismo, como
na tibieza dos aplausos convencionais de quase todos os que, sendo
agro-reformistas, tinham diante de si a tarefa sempre grata e atraente de
bater palmas a uma medida desejada com todo o afinco pelo alto.
Acessos como este, de súbita apatia, não são muito
raros na História. Eles exprimem um estado de euforia confiante, e ao
mesmo tempo de extenuação e de enfastiamento de uma opinião pública que
acaba apenas de sair de um período de grandes convulsões.
A Nação se encontrara, de um momento para outro, às
portas do comunismo. Reagindo contra o perigo, mobilizou ela suas forças
vivas para uma luta que ameaçava ser titânica.
O desfecho inesperado da crise, poupando ao País a
carnificina iminente, varrendo o regime comuno-corruptor, e alçando ao
poder a figura por todos acatada do ilustre Marechal Castelo Branco, teve
como conseqüência uma distensão brusca e profunda.
Esta atitude, de gregos e troianos, foi um erro.
Ela teve por efeito que as notícias sucintas
divulgadas de quando em quando pela imprensa sobre uma Reforma Agrária de
iniciativa governamental, a quase ninguém alarmaram.
Essa causa psicológica, genérica e profunda, fez com
que larguissimos setores da opinião pública assistissem "dopados" pela
despreocupação eufórica do período de pós-revolução a aprovação do
Estatuto da Terra.
O debate no Legislativo seria a ocasião normal para
que o público se esclarecesse sobre o conteúdo do projeto.
Mas a urgência imposta pelo governo para a tramitação
dele estrangulou os debates, e constituiu obstáculo a que fosse
esclarecida a opinião nacional*.
Em 22 dias de debates e votação, a propositura teve
de ser aprovada.
Com o apoio das bancadas janguistas, os
representantes das correntes que depuseram Jango fizeram através da
aprovação do Estatuto da Terra a "reforma" que Jango queria.
Consumou-se assim às carreiras um dos mais
importantes fatos da vida nacional desde a Independência [93].
* * *
Após a açodada aprovação, pelo Congresso, do Estatuto
da Terra e sua promulgação pelo governo federal, a TFP quis consignar ante
a História seu respeitoso mas formal desacordo [94].
Sem recear as punições do regime ditatorial,
publicamos em seção livre de página inteira de O Estado de S. Paulo
um manifesto de minha autoria, que mostrava ser uma espécie de novo
janguismo sem Jango essa lei do Estatuto da Terra* [95].
* O documento
intitulado
Manifesto ao povo brasileiro sobre a Reforma Agrária
foi publicado, a partir do dia 25 de dezembro de 1964, em 22 jornais de
todo o País (cfr. Catolicismo n° 431-432, novembro/dezembro de
1986, pp. 11 a 20).
"Manifesto
ao povo brasileiro sobre a Reforma Agrária" publicado, entre
outros, em O Estado de S. Paulo, edição de 30/12/1964
Fizemos um manifesto categórico, dizendo tudo o que
tinha de ser dito. Não houve a menor réplica, o menor revide: nada! [96]
E foi a voz da TFP a única que teve a coragem de
conclamar o País a uma posição de previdência e alerta contra esse
janguismo sem Jango que acabava de penetrar assim na vida do campo [97].
Quando, posteriormente, o regime militar começou a
fazer expropriações usando a lei assinada por Castelo Branco, fê-las de
maneira tão discreta e tão na surdina, que a maior parte da população não
se deu conta [98].
* * *
Em toda essa refrega agro-reformista, um fato era
positivo: a TFP germinara, e de dentro das trincheiras do anonimato, dera
tiros muito bem acertados. No final das contas, a Reforma Agrária estava
impedida e a TFP conhecida no Brasil inteiro [99].
Lembro-me perfeitamente do dia em que recebi a
notícia da eleição de João XXIII. Estávamos na sede da rua Vieira de
Carvalho acompanhando pelo rádio as notícias sobre a morte de Pio XII e a
eleição de seu sucessor* [100].
* Pio XII morreu no
dia 9 de outubro de 1958. No dia 28 de outubro foi eleito o Cardeal Angelo
Roncalli, que tomou o nome de João XXIII.
Eu tinha uma tênue esperança de que elegessem outro
Pio XII, que mantivesse os assuntos da Igreja mais ou menos de pé [101].
Em certo momento ouvimos a música da Guarda Suíça do
Vaticano, precedendo o anúncio urbi et orbi da eleição do novo
Papa. Veio ao microfone um Cardeal e disse: “Eu vos anuncio uma grande
alegria: habemus Papam, na pessoa do Cardeal Angelo Roncalli, que
tomou o nome de João XXIII”.
Em seguida a Guarda Suíça tocou nova música. Eu então
pressenti a derrocada de todas as tradições que viria [102].
Eu sabia perfeitamente quem era o Cardeal Roncalli [103].
Vi tudo de uma vez, e bebi toda a amargura naquele momento.
O que se seguiu foi uma tristeza muito grande. A
questão era aceitar essa tristeza, mas ela potencialmente já tinha sido
aceita [104].
Três meses depois de sua eleição, João XXIII anuncia,
em 25 de janeiro de 1959, sua intenção de convocar um Concílio a reunir-se
em São Pedro de Roma. Seria o mais numeroso da História.
Pode-se imaginar o meu desgosto quando soube, mais
tarde, que João XXIII convidara para ele observadores de todos os cultos,
entre os quais os da I.O. (igreja “ortodoxa” russa) pró-comunista [105].
* * *
Discurso de
abertura do Concílio por João XXIII
O anúncio da convocação do Concílio chegou-me durante
uma das sessões da 7ª Semana de Estudos de Catolicismo, que se
realizava em uma casa apalaciada, hoje demolida [106],
chamada a Imperial Camargo, localizada na esquina da Avenida
Angélica com a Alameda Barros, em São Paulo [107].
Dom Sigaud e eu estávamos presidindo a uma reunião [108],
quando alguém, por detrás da mesa, deu-me um jornal, indicando-me a
notícia do decreto de convocação.
Eu li essa notícia e depois, por debaixo da mesa,
passei o jornal a Dom Sigaud.
Ele leu-o também, leu-o até detidamente.
Ele depois me contou o pensamento que teve naquele
momento: “Está tudo resolvido: o Santo Padre agora vai pôr em ordem
todas as cabecinhas dos Bispos e o caso da Igreja estará resolvido”. O
Papa era João XXIII.
Eu pensei o contrário: “São os Estados Gerais da
Igreja, o começo da Revolução na Igreja” [109].
Eu quis dizer isto a ele, mas notei que não
encontraria a menor ressonância [110].
Eu via a Revolução Francesa, ele via o Reino de Maria [111].
* * *
Não muito tempo depois, percebi que Dom Mayer e Dom
Sigaud não estavam se preparando nem estudando para os debates do
Concílio. E, em separado, manifestei minha preocupação aos dois.
A Dom Sigaud eu disse: “Esta é uma oportunidade
incomparável para exercermos nosso apostolado. Agora, se Vossa Excia. não
estudar a fundo..."
A Dom Mayer, lembro-me que disse isto a meia voz,
atravessando a Praça da República de taxi. Passávamos nessa hora bem em
frente à Escola Caetano de Campos.
Quando chegaram a Roma, eles estavam “verdes” para o
Concílio e se deixaram subjugar completamente por aquele ambiente [112].
Na primeira
fase do Concílio, Plinio Corrêa de Oliveira e o secretariado do
grupo de Catolicismo por ele montado em Roma atuaram com empenho em
duas iniciativas de alcance histórico [ver Capítulo IX] . Na foto, Plinio e alguns
membros do secretariado em frente à Basílica de São Pedro.
1. Dissabores em série
Minha presença em Roma [113]
durante o Concílio não foi uma justaposição de prazeres e contentamentos
de um lado, e de severos pesares de outro lado [114].
Eu estava carregado de aborrecimentos [115].
Essa estadia de tal maneira constituiu um sofrimento
para mim que, quando voltei para São Paulo e pisei o chão, tive uma
sensação de alívio: “Afinal acabou!”
Por que razão? Porque durante todo esse tempo, dentro
do Concílio, e portanto dentro da Igreja, tudo se moveu mal e erradamente.
Minha intenção primeira era ir sempre assistir às
sessões do Concílio, porque significava ver a Igreja na sua maior pompa,
instalada com dois mil Bispos naquele edifício colossal da Basílica de São
Pedro, todos de mitra, báculo. Eu poderia ficar ali quatro a cinco horas
simplesmente olhando aquele protocolo e esplendor [116].
Mas fui apenas uma vez. E depois não pus mais os pés
na Basílica, a não ser quando, no encerramento da primeira fase do
Concílio, fui assistir a uma Missa celebrada por Dom Mayer no altar de São
Pio X.
Íamos sair todos de Roma e a Missa encerrava aquela
fase de atividades. Fora disso, NÃO, de tal maneira eu estava
entristecido, para não dizer mais, com o desenrolar do Concílio [117].
* * *
Uma coisa que me causou especial desagrado foi ver os
Bispos chegarem de coletivos, e não de automóvel para as sessões.
Vinham às vezes em ônibus com nome de colégios de
meninas: Collegio delle Bambine, Collegio del Sacro Cuore.
Os Bispos orientais desciam desses ônibus e na
própria praça vestiam seus hábitos. Era uma coisa que não se compreendia
que fizessem.
"Irmãos
Separados" - Na recepção para os observadores não-católicos,
chamados de "irmãos separados" , vê-se o Cardeal Bea (centro),
encarregado de promover a unidade dos cristãos; e os observadores
ortodoxos e protestantes [Life, Vol. 53, Nº 18, 2 de novembro de
1962]
Na saída das sessões, a mesma coisa: no átrio da
igreja, tiravam aqueles hábitos com pressa, pois era preciso chegar a
tempo para o almoço no colégio. Então faziam tudo correndo, e no meio de
brincadeiras.
Havíamos alugado uma sede em um bairro muito bom de
Roma, chamado Parioli. Neste bairro tínhamos uma ampla casa, e
vários do nosso grupo nela se alojaram.
Em um
instituto da Societas Verbi Divini, organização missionária
que opera em 33 países , um grupo de Bispos relaxa com Scoth e Conhaque [ Life, Vol. 59, Nº 25, 17 de
Dezembro de 1965]
Dom Mayer vinha toda tarde a esta sede e participava
de uma reunião diária que fazíamos, a qual constava de duas partes.
A primeira parte versava sobre o que se tinha passado
no plenário do Concílio, e outra parte sobre o trabalho de bastidores do
Coetus [120]
da direita: que planos tinham, como havia corrido a execução dos planos
nesse dia e quais eram os planos para o dia seguinte. De si, uma coisa
muito interessante e para a qual estávamos lá.
Mas ele contava também coisas jocosas acontecidas
durante a sessão.
Por exemplo, ele dizia que, dentro da Basílica,
montaram vários pequenos bares para os Bispos comerem ou beberem alguma
coisa: um cafezinho, um chá, um refrigerante, um pequeno lanche.
Como
“bar”, em hebraico, significa
“filho
de”, os Bispos começaram a designar esses bares: Bar Jonas,
filho de Jonas, Barrabás... Ali brincavam uns com os outros,
caçoavam, de um modo que absolutamente não correspondia à responsabilidade
que eles tinham em um Concílio Universal.
Afinal, cansavam-se e voltavam para o plenário para
tomar parte nas discussões...
Essas discussões, naturalmente, eram completamente
controladas pelo Vaticano. Quem fizesse alguma coisa fora das diretrizes,
expunha-se a ser severamente repreendido. Os Bispos então andavam na
linha.
O Coetus dos Prelados da direita fazia planos
e depois se deixava embair de modo absurdo*.
* Um exemplo disso
foi o que aconteceu com a petição de condenação do comunismo assinada por
centenas de Bispos, como veremos mais adiante.
Fatos desses se deram em série.
Nós sugeríamos a Dom Sigaud e a Dom Mayer tomar tal e
tal atitude, mas eles não davam importância. Um funcionário de portaria de
hotel tinha tanta influência no Concílio quanto nós. Isso depois de termos
feito um gasto enorme — mas enorme! — para estarmos presentes e de alguma
forma atuarmos no Concílio.
Os leigos da direita e os da esquerda eram convidados
a promover conferências de imprensa para jornalistas e políticos sobre
pontos em que estes desejassem ser informados.
Pe. Ralph
Wiltgen, SVD
Tais reuniões estavam programadas para se realizar no
convento dos Padres do Verbo Divino, congregação religiosa a que pertencia
Dom Sigaud.
Eu também fui convocado para essas reuniões. E me
dirigi para lá.
Um padre alemão do Verbo Divino, que tinha muita
simpatia por nós, me acolheu muito bem: era um grande amigo de Dom Sigaud.
Chamava-se Padre Ralph Wiltgen [121].
Este sacerdote me disse:
— Pela escalação, o senhor tem uma conferência
agora. Vamos até a sala, pois já há pessoas esperando.
Íamos entrando e nisto aparece um padre que diz:
— Quem é esse senhor?
— É o professor Plinio Corrêa de Oliveira, de São
Paulo.
— Não precisava falar. Por que ele precisa falar?
Disse assim, com essa brutalidade!
O padre nosso amigo respondeu cortês:
— Ele consta da lista de pessoas convidadas. Não
há razão para ele não falar.
— Não! Não! Ele é muito antiquado, muito
conservador. Não há jeito de cortar?
O Padre Ralph Wiltgen disse:
— Não, não há jeito! Professor, por favor, suba na
cátedra que já estão à sua espera.
Dei então uma conferência de imprensa* para homens
que eu nem sabia bem quem eram. Estava tudo mal arranjado.
* Essa conferência
de imprensa realizou-se no dia 16 de outubro de 1962 e versou sobre o tema
Reforma Agrária.
Terminada a conferência, um daqueles padres me disse:
— O senhor está dispensado das outras
conferências. Houve um engano e o seu nome não figura na lista*.
* Boicote semelhante
foi narrado pelo Príncipe Dom Bertrand em reunião plenária da TFP de 30 de
junho de 1984:
“Monsenhor
Zanini, redator do Osservatore Romano, teve vários contatos com o prof.
Fernando Furquim de Almeida e depois entrevistou Dr. Plinio no Hotel
Excelsior sobre a crise na América do Sul. Dr. Plinio desenvolveu o que há
de mais ortodoxo sobre a crise moral e religiosa, dizendo que se os 97% de
católicos no Brasil cumprissem os dez Mandamentos, não haveria crise
nenhuma no País. Foi uma entrevista absolutamente ‘hors série’.
Monsenhor Zanini, muito contente com essa entrevista, levou-a para o Osservatore Romano. Mas caiu sobre ela um veto absoluto. [...] Não
havia nenhum ataque ao progressismo; mesmo assim não podia sair nem o nome
de Dr. Plinio nem a tese da crise religiosa”.
* * *
O Padre Ralph Wiltgen escreveu depois um célebre
livro, cujo título parece à primeira vista extravagante, mas tem sua plena
razão de ser: O Reno deságua no Tibre.
Sendo rios que geograficamente não se encontram, era
um modo de dizer que as idéias teológicas e filosóficas dos piores
modernistas alemães estavam amplamente representadas entre os teólogos e
filósofos do Concílio, e que, portanto, essas idéias tiveram uma grande
entrada e uma grande influência*.
* O livro recebeu o
nihil obstat e imprimatur do futuro Cardeal Terence Cooke,
Arcebispo de Nova York. O Padre Wiltgen sofreu muitas pressões para cessar
a divulgação desse livro [122].
1. Gênese da petição para consagrar a Rússia ao Imaculado Coração de
Maria
Houve duas iniciativas de alcance histórico em que
estivemos empenhados a fundo, também boicotadas durante o Concílio. A
primeira foi o pedido de consagração da Rússia ao Imaculado Coração de
Maria e a segunda de condenação do comunismo pelo Concílio.
Quanto à primeira, a
idéia nasceu de uma conversa,
que deve ficar registrada nos anais de nossa história, mantida com Dom
Sigaud e Dom Mayer numa sala de estar da Fazenda Morro Alto, em Amparo.
Ali tive ocasião de expor aos dois Bispos a alta
conveniência de promover aquela súplica, pedindo a consagração da Rússia
de acordo com a mensagem de Fátima.
Irmã Lucia havia dito que essa consagração era uma
das condições colocadas pela Virgem para afastar a ameaça do castigo que
pairava sobre o mundo. E Nossa Senhora havia estabelecido certos quesitos
para que essa consagração fosse válida*.
* Na terceira
aparição na Cova da Iria, a 13 de julho de 1917, a Virgem Santíssima havia
dito: "Virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a
comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a
Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo,
promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o
Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por
fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-Me-á a
Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz".
E em aparição à Ir.
Lúcia em 1929,Nossa Senhora veio, conforme prometido, formular o
seu pedido: “É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre
fazer, em união com todos os Bispos do mundo, a consagração da Rússia ao
meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio” (cfr.
Memórias e Cartas da Irmã Lúcia, apud Antonio Augusto Borelli
Machado, As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da
Irmã Lúcia, Artpress, São Paulo, 1997, 46ª ed.).
As consagrações que Pio XII fizera do mundo em 1942 e
"dos povos da Rússia" em 1952 ao Imaculado Coração de Maria não
correspondiam a essas circunstâncias pedidas por Nossa Senhora.
Isto eu li em livros publicados a respeito. E também
ouvi pessoalmente do Arcebispo de Coimbra, Dom Ernesto Sena de Oliveira,
encarregado da guarda da Irmã Lúcia. Este afirmou que, segundo a Irmã
Lúcia, essas consagrações não tinham atendido ao que fora pedido. Vê-se
esta afirmação ainda em uma carta da própria irmã Lúcia ao seu confessor
jesuíta, Padre José Aparício, o qual emprestou-me a carta: nela estava
declarado que o pedido não havia sido atendido*.
* Nossa Senhora fora
explícita: tinha de ser uma consagração feita: 1) pelo Papa; 2) em união
com os Bispos do mundo; 3) da Rússia; 4) e ao Imaculado Coração de Maria.
Pio XI recebeu a
mensagem, mas, por razões não divulgadas, não realizou a consagração.
A consagração feita
por Pio XII, não foi “em união com os Bispos do mundo”. E tampouco
foi feita “a consagração da Rússia”. Não atendeu portanto duas das
quatro condições pedidas por Nossa Senhora.
Na segunda
[iniciativa do secretariado], Dom Sigaud entrega a Paulo VI a
petição de 510 Prelados (78 países), que rogava ao Papa consagrar a
Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Essa petição fazia eco ao
pedido expresso de Nossa Senhora, até hoje misteriosamente não
atendido.
Tanto é que, quando
em 31/10/42 Pio XII consagrou a Igreja e o gênero humano ao
Imaculado Coração de Maria, a Irmã Lúcia escreveu ao Pontífice
comunicando, da parte de Nosso Senhor, que, como o ato “foi incompleto,
fica a conversão da Rússia para mais adiante” (cfr. Antonio Augusto
Borelli Machado, As aparições e a mensagem de Fátima conforme os
manuscritos da Irmã Lúcia, Artpress, São Paulo, 1997, 46ª ed., p. 41).
Em 21/11/64, Paulo
VI “confiou” (não consagrou) “o gênero humano” (e não
explicitamente a Rússia) ao Imaculado Coração de Maria.
Portanto, a petição
dos Padres conciliares tinha todo o propósito.
Deixamos de lado o
complexo problema do atendimento ou não da vontade de Nossa Senhora nas
consagrações que se seguiram depois do Concílio. Apenas assinalamos que
João Paulo II, em 13/5/82 e 25/3/84, consagrou o mundo (e não a Rússia) ao
Imaculado Coração de Maria. O mesmo fez o Papa Francisco a 13 de outubro
de 2013.
Tendo os dois Bispos aceito a nossa sugestão, Dr.
Castilho estudou com cuidado toda a temática, para indicar como a
consagração deveria ser feita, de modo a atender, na petição, todos os
requisitos necessários para que a vontade de Nossa Senhora fosse
satisfeita.
E assim Dom Mayer e Dom Sigaud foram os promotores
entre os Padres conciliares da famosa petição solicitando ao Santo Padre a
consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria.
Houve então na história de Fátima este fato
importantíssimo: dois Bispos da Igreja Católica se levantaram, e esses
dois Bispos conseguiram a assinatura de 510 outros Bispos, pedindo essa
consagração [123].
O pedido não foi atendido, a vontade de Nossa Senhora
não foi cumprida.
Mas ficou assinalado perante a História que um
movimento, o de Catolicismo, foi sensível à voz de Fátima. E esse
movimento, através de dois Bispos, fez o possível e o impossível para que,
de um modo oficial e altamente prestigioso, essa voz de Nossa Senhora
fosse ouvida e reboasse dentro do Concilio [124].
2. Petição de condenação do comunismo repercute intensamente
Também na Fazenda Morro Alto estabelecemos — Dom
Sigaud, Dom Mayer e eu — a temática da petição de condenação ao comunismo,
que recebeu a adesão de 213 Padres conciliares de 54 países*.
* A imprensa
italiana e a internacional noticiaram com todo o relevo a entrega dessa
petição por Dom Mayer, no dia 3 de dezembro de 1963, à Secretaria de
Estado da Santa Sé, na pessoa de seu titular, o Sr. Cardeal Amleto
Giovanni Cicognani.
Na divulgação desse
documento, foi valiosa a cooperação do Divine Word News Service,
que era a agência noticiosa dirigida pelo mencionado Padre Ralph Wiltgen
SVD. Ela distribuíu em primeira mão a notícia da entrega dessa petição a
650 jornalistas presentes na sede do Comitê de Coordenação das
Comunicações sobre o Concílio, incluídos os representantes das agências
internacionais, que a divulgaram para o mundo inteiro.
Simultâneo à
petição, por seu íntimo nexo com os termos do documento, foi amplamente
distribuído a esses jornalistas, pelo secretariado do grupo de
Catolicismo em Roma, o livro A liberdade da Igreja no Estado
comunista, traduzido para o inglês, francês, espanhol e italiano. Essa
distribuição também foi feita aos 2200 Padres conciliares.
Il Tempo, o
maior matutino romano, noticiando no dia seguinte a entrega da petição,
considerou-a, "na atmosfera conciliar", um episódio
"importantíssimo para todos os católicos italianos". Já o diário
Roma, de Nápoles, abriu um título em que dizia: "Uma notícia-bomba
do Vaticano", considerando a petição "una pompa vera e propria"
— "Uma própria e verdadeira bomba" (cfr. Catolicismo n° 157,
janeiro de 1964).
Esta petição continha uma série de teses do livro
Revolução e Contra-Revolução que era pouco comum ouvir-se de lábios de
Bispos. Várias dessas teses entraram como fundamentação do pedido de
condenação do comunismo [125].
3. Condenar o comunismo atrapalharia o ecumenismo com os comunistas
Reportagem
de Catolicismo sobre a primeira [iniciativa do secretariado]:
petição de 213 Padres conciliares (54 países) para que o Concílio
condenasse o socialismo e o comunismo, e que seria escandalosamente
boicotada pela secretaria do Concílio, ao omitir qualquer condenação
à maior das heresias do século XX.
Qual era a meta da petição?
O Concílio Vaticano II foi numericamente o maior
Concílio da História. Nunca houve tantos Bispos reunidos em um Concílio.
Seria importantíssimo que nele se fizesse uma condenação do comunismo.
Até aquela data [126],
a posição da Igreja se manifestava na condenação total da doutrina
comunista, na proibição a todos os católicos de lerem (sem as devidas
licenças) livros comunistas, de se filiarem a um partido comunista, ou de
prestarem à conservação ou à expansão de órgãos comunistas qualquer forma
de apoio.
Talvez a límpida rigidez dessa atitude nunca se tenha
manifestado com maior coerência e força do que no famoso decreto de 1° de
julho de 1949, aprovado por Pio XII, em que o Santo Ofício declarava
excomungados e apóstatas da fé católica todos aqueles que professassem,
defendessem ou divulgassem a doutrina comunista* [127].
* Este decreto
continha as seguintes perguntas e respostas: “I. — É lícito aos
católicos dar seu nome e prestar sua ajuda aos partidos comunistas?
Resposta: Não é lícito, o comunismo é materialista e anticristão; com
efeito, os chefes comunistas, inclusive quando dizem por palavras que não
combatem a religião, na realidade, contudo, tanto pela doutrina como pela
ação, mostram-se inimigos de Deus, da verdadeira Religião e da Igreja de
Cristo. II. — É lícito editar, difundir ou ler livros, revistas, jornais e
folhetos que defendem a doutrina ou atividades comunistas, ou neles
escrever? Resposta: Não é lícito; está proibido ipso jure (cânon 1399 do
Código de Direito Canônico). III. — Os fiéis que, consciente e livremente,
tenham incorrido nos atos de que tratam os números I e II, podem ser
admitidos aos Sacramentos? Resposta: Não podem ser admitidos, em
conformidade com o princípio geral de que se deve negar os Sacramentos
àqueles que não estão nas devidas disposições para recebê-los. IV. — Os
fiéis que professam a doutrina materialista e anticristã dos comunistas e
principalmente aqueles que a defendem e divulgam, incorrem, ipso facto, na
excomunhão reservada de modo especial à Sé Apostólica, como apóstatas da
Fé católica? Resposta: Sim, incorrem” (AAS., vol. XLI, p. 334. —
Colocamos as respostas em seguida a cada pergunta, para facilidade de
leitura. No original elas vêem depois de todas as perguntas).
Nas novas circunstâncias, uma condenação formal da
doutrina comunista pelo Concílio teria sido um imenso entrave às relações
ecumênicas que evidentemente estavam se preparando com os países
comunistas [128].
4. O pacto de silêncio da Santa Sé sobre o comunismo
João XXIII
com Vitalij Borovoj e Vladimir Kotljarov, dois observadorers da
igreja Ortodoxa Russa que participaram do Concilio Vaticano II [30
Giorni, edição em Inglês, DOCUMENT edição no. 08 - 2004 ]
João XXIII convidara para o Concílio observadores de
todos os cultos, entre os quais os da I.O. pró-comunista.
Segundo constou largamente naquela ocasião, a
condição imposta por esta I.O. para que se dignasse aceitar o convite, era
que na Sala Conciliar fosse proibido qualquer ataque ao comunismo, e que o
Concílio Vaticano II se abstivesse de dizer contra este qualquer palavra [129].
E este fora o compromisso assumido pela Santa Sé para
obter que observadores russos viessem ao Concílio [130].
A não condenação do comunismo abria caminho para possíveis negociações
entre o Estado soviético e o Vaticano, e também entre a Igreja
“Ortodoxa” russa e Roma* [131].
* Esse compromisso
nascera das reuniões realizadas em 18 de agosto de 1962 na cidade francesa
de Metz, envolvendo o Cardeal Eugène Tisserant, representante da Santa Sé,
e o metropolita Nikodim, então arcebispo cismático de Yaroslavl,
representando a Igreja Ortodoxa Russa.
A imprensa comunista
foi a primeira a revelar esse compromisso, através do semanário France
Nouvelle, boletim central do Partido comunista francês (edição de
16-22/1/63): "Como o sistema socialista mundial manifesta superioridade
de modo incontestável e goza da aprovação de centenas e centenas de
milhares de homens, a Igreja não pode satisfazer-se com um anticomunismo
grosseiro. Ela adotou o compromisso, por ocasião de suas negociações com a
Igreja Ortodoxa russa, de que no Concílio não haveria um ataque direto
contra o regime comunista".
Dessas reuniões
nasceu o Pacto de Metz, detalhado pelo jornalista e escritor Jean Madiran
em seu livro L’Accord de Metz ou pourquoi notre Mère fut muette (O
Acordo de Metz ou por que nossa Mãe permaneceu muda), publicado em
2006. Ele havia denunciado esse pacto, seis meses após as reuniões de
Metz, na revista Itinéraires de que era diretor.
Do Pacto resultou a
aceitação, por parte dos ortodoxos russos, de enviar observadores ao
Concílio Vaticano II, segundo informou o jornal católico-progressista
La Croix, o qual em sua edição de 16/2/63, revelava: “em
consequência desse encontro, Mons Nikodim aceitou que alguém fosse a
Moscou para levar o convite, sob a condição de que sejam dadas garantias
no que concerne à atitude apolítica do Concílio".
Vale recordar que o
metropolita russo Nikodin, com quem o Cardeal Tisserant firmou esse
acordo, era um espião pago pela KGB para infiltrar o Conselho Mundial das
Igrejas, da qual chegou a ser presidente (cfr. Gerhard Besier, Armin
Boyens, Gerhard Lindemann, Nationaler Protestantismus und Ökumenische
Bewegung. Kirchliches Handeln im kalten Krieg (1945-1990), Duncker und
Humblot, Berlino 1999, apud José Antonio Ureta, apud Catolicismo
n° 742, outubro de 2012).
Mais tarde vieram à
tona outros detalhes desse compromisso "quase secreto", revelados
pelo Professor Romano Amerio em seu momentoso livro Iota Uno (in
Studio delle variazioni della Chiesa Cattolica nel secolo XX,
Milão-Nápoles, R. Ricciardi, 1985).
Corria então uma palavra de ordem imperiosa entre os
Padres Conciliares e também entre os leigos mais chegados ao Concílio:
podiam escrever os artigos que quisessem nos jornais, porém jamais falar
contra o comunismo e não estimular ninguém a falar contra [132].
Não era uma proibição oficial, mas apenas
extra-oficial, porque Paulo VI não queria tornar público que tinha assumido
esse compromisso [133].
Ou seja, a Igreja, naquela ocasião máxima, havia
optado por não falar contra a maior heresia dos tempos atuais.
E isto jogou a Igreja nessa posição verdadeiramente
sem sentido: reúne-se um Concílio, há uma heresia que ameaça deglutir a
Igreja e esta assume o compromisso de não falar contra esta heresia* [134].
* O que significou
este silêncio, Dr. Plinio delineou com precisão na 4ª edição em português
de Revolução e Contra-Revolução: “Dentro da perspectiva de
Revolução e Contra-Revolução, o êxito dos êxitos alcançado pelo
comunismo pós-staliniano sorridente foi o silêncio enigmático,
desconcertante, espantoso e apocalipticamente trágico do Concílio Vaticano
II a respeito do comunismo.
“Este Concílio se
quis pastoral e não dogmático. Alcance dogmático ele realmente não o teve.
Além disto, sua omissão sobre o comunismo pode fazê-lo passar para a
História como o Concílio a-pastoral. [...]
“Em outros
termos, atuaram como verdadeiros Pastores aqueles que, no Concílio
Vaticano II, quiseram espantar os adversários ‘minores’, e impuseram livre
curso - pelo silêncio
- a favor do adversário ‘maior’?
“Com táticas
‘aggiornate’
- das quais, aliás,
o mínimo que se pode dizer é que são contestáveis no plano teórico e se
vêm mostrando ruinosas na prática
-
o Concílio Vaticano II tentou afugentar, digamos, abelhas, vespas e aves
de rapina. Seu silêncio sobre o comunismo deixou aos lobos toda a
liberdade.
“A obra desse
Concílio não pode estar inscrita, enquanto efetivamente pastoral, nem na
História, nem no Livro da Vida. É penoso dizê-lo. Mas a evidência dos
fatos aponta, neste sentido, o Concílio Vaticano II como uma das maiores
calamidades, se não a maior, da História da Igreja.
“A partir dele
penetrou na Igreja, em proporções impensáveis, a ‘fumaça de Satanás’, que
se vai dilatando dia a dia mais, com a terrível força de expansão dos
gases. Para escândalo de incontáveis almas, o Corpo Místico de Cristo
entrou no sinistro processo da como que autodemolição” (Revolução e
Contra-Revolução, Artpress, São Paulo, 4ª edição em português, 1998,
pp.166 a 168).
5. Petição, única estratégia possível para tentar quebrar esse acordo
Uma vez aceito pela Santa Sé o compromisso de não
discutir a questão do comunismo, o único modo de contornar essa palavra de
ordem seria organizar, com base na série de razões doutrinárias e
históricas contidas em nossa petição, um abaixo-assinado solicitando fosse
posto em votação no plenário um pedido de condenação do comunismo.
Os representantes da igreja ortodoxa russa certamente
advertiriam antes a Santa Sé:
— Soubemos dessa petição da bancada de Bispos
conservadores. Se eles a levarem adiante, nós nos retiraremos.
A Santa Sé teria como saída dizer a esses Bispos
conservadores:
— Foi feita essa combinação e, portanto, o Santo
Padre quer que os senhores retirem essa petição.
Se isto se desse, e se os membros da bancada
conservadora estivessem dispostos a chegar até as últimas conseqüências,
deveriam afirmar:
— Nossa consciência não nos permite fazer isso.
Vossa Santidade, se quiser, exclua-nos do Concílio, mas suplicamos que
declare a razão.
Se assim se fizesse, a História do Concílio, da
Igreja e do mundo hoje seria outra.
Não adianta alegar que não havia o número
suficiente de membros para isso.
No Concílio, o Coetus conservador era
constituído por cerca de 30 Arcebispos e Bispos (entre os quais Dom
Sigaud, Dom Mayer, Monsenhor Marcel Lefebvre), dentro de um total de
aproximadamente dois mil e quinhentos Arcebispos e Bispos*.
* Na sessão seguinte
do Concílio (1964) o Coetus Internationalis Patrum chegou a ter
mais de 250 participantes entre os Padres Conciliares.
E não seriam necessários trinta: apenas dois que
fizessem isto (Dom Sigaud e Dom Mayer por exemplo), teriam virado o leme
da História para o outro lado.
6. Um procedimento totalmente irregular obstruiu o encaminhamento da
petição
Em vista de tudo isto, dei a sugestão de uma petição
de condenação ao comunismo a Dom Sigaud e a Dom Mayer. Eles pediram-me
então que lhes redigisse extra-oficialmente uma moção nesse sentido. E eu
redigi essa moção.
Essa petição foi assinada por 213 Cardeais,
Arcebispos e Bispos de 46 nações. E foi apresentada em tempo hábil para os
trâmites necessários* [135].
* O essencial do
pedido era que fosse posta em votação no Concílio, “em sua próxima
sessão, uma nova condenação do marxismo, do socialismo e do comunismo, em
seus aspectos filosófico, sociológico e econômico, expondo ao mesmo tempo,
a doutrina social católica, e profligando os erros e a mentalidade que
preparam o espírito dos católicos para a aceitação daqueles sistemas
falsos”. A Secretaria de Estado enviou a petição a Monsenhor Felici,
secretário do Concílio, para que a fizesse chegar à Comissão Mista
encarregada da redação do esquema sobre a Igreja no mundo contemporâneo, o
assim chamado Esquema XIII que desembocou na constituição pastoral
Gaudium et Spes.
Mas o tempo foi passando sem que houvesse resposta [136].
7. Nova petição contra o comunismo é sabotada
Na quarta e última sessão (iniciada a 14 de setembro
de 1965), o Coetus levantou um novo abaixo-assinado — desta vez com
435 assinaturas de Padres conciliares de 86 países*.
* Essa nova petição,
que era uma emenda à constituição Gaudium et Spes, foi entregue no
dia 9 de outubro de 1965 por Dom Geraldo de Proença Sigaud e por Monsenhor
Marcel Lefebvre na Secretaria Geral do Concílio. Nela se requeria que,
“depois do parágrafo n° 19 do esquema ‘A Igreja no mundo contemporâneo’,
que trata do problema do ateísmo, se acrescente um novo e apropriado
parágrafo que trate expressamente do problema do comunismo” (Acta
Synodalia, vol. IV, pars II, pp. 898900, apud
Roberto De Mattei, Il crociato del secolo XX, Piemme, Milão, 1996).
O novo documento teve que caminhar, por causa da
burocracia interna do Concílio, até à mesa de Monsenhor Glorieux. Era um
monsenhor, como os havia tantos no Vaticano. Tenho quase certeza de que,
naquela altura, não era Bispo. Depois, talvez tenha sido feito, já que
prestou um tão grande “serviço” à ala inovadora [137].
Ele é quem devia dar despacho ao documento [138].
Mas Monsenhor Glorieux não lhe deu andamento algum.
Dom Sigaud e Monsenhor Lefebvre foram então conversar
com ele. E lhe perguntaram como estava o andamento da petição.
* Monsenhor Glorieux
de início alegou que não a havia transmitido às comissões que estavam
trabalhando na redação final do esquema, para não dificultar os
trabalhos...
Dom Luigi Maria
Carli, Bispo de Segni, dirigiu então à Presidência do Concílio uma carta
denunciando o caráter arbitrário da Comissão Mista que havia ignorado um
documento de tamanha importância. Monsenhor Glorieux defendeu-se afirmando
falsamente que a petição tinha chegado fora do tempo, mas foi desmentido
pelo próprio Monsenhor Pericle Felici, secretário do Concílio.
Depois de várias démarches evasivas, este
monsenhor disse que tinha perdido a documentação. Equivalia a dizer que a
documentação não teria andamento*.
* No dia 23/11/65, a
já citada agência de notícias Divine Word Service, próxima dos
prelados conservadores difundiu um longo comunicado sobre o escândalo do
desaparecimento das propostas de nada menos que 435 Padres conciliares. E
assim, ao mesmo tempo que o escândalo explodiu na imprensa, Paulo VI
convocou uma reunião restrita de colaboradores, na qual ficou decidido que
não era oportuno condenar o comunismo (cfr. José Antonio Ureta, O
enigmático silêncio do Vaticano II sobre o Comunismo, Catolicismo
n° 742, outubro de 2012).
A Divine Word
divulgou o seguinte comentário do Padre Wiltgen: “O fato de um único
homem ter tido a possibilidade de impedir que um documento tão
significativo chegasse às mãos da comissão conciliar à qual era
oficialmente dirigido é uma das grandes tragédias do Concílio Vaticano II
e poderá passar à história como o maior escândalo a vir a prejudicar as
graves deliberações desta sacra assembléia” (cfr. Roberto de Mattei,
O Concílio Vaticano II — Uma História Nunca Escrita, Editora
Caminhos Romanos, Porto (Portugal), 2012).
O Cardeal
Willebrands acompanhado pelo Metropolita Nikodim no último dia do
Concílio Vaticano II. O Pacto de Metz foi respeitado. O Comunismo
não foi condenado, nem mesmo mencionado, nos documentos oficiais do
Concílio.
Desse modo, o Concílio Vaticano II deixou de condenar
o maior erro de nossos dias: o comunismo [139].
Não poderia deixar de figurar —
absolutamente não poderia! — a atitude da Igreja face ao seu maior
adversário naqueles dias. Adversário tão poderoso, tão brutal, tão
ardiloso como outro igual a Igreja não encontrara na sua História então já
quase bimilenar.
Tratar dos problemas contemporâneos da
religião sem tratar do comunismo, seria algo de tão falho quanto reunir
hoje em dia um congresso mundial de médicos para estudar as principais
doenças da época, e omitir do programa qualquer referência à AIDS... * [140]
* Alegou-se na época
que a Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano
II, em nota de rodapé, havia se referido ao problema do ateísmo
e até citado a encíclica Divini Redemptoris, de Pio XI, e outros
documentos do Magistério Pontifício que condenavam, entre outros erros,
também o comunismo. Daí se procurava deduzir que o Concílio não havia sido
inteiramente omisso em matéria de condenação do comunismo. Mas tal
alegação é frágil: por que omitir toda e qualquer referência explícita ao
comunismo, e só falar de ateísmo? Por que colocar essa referência às
encíclicas apenas em uma nota de rodapé?
Infelizmente Dom Sigaud e Dom Mayer entraram para o
Concílio imbuídos de certa mentalidade otimista.
Eles parecem não ter medido até que ponto a Revolução
havia penetrado nas entranhas mentais, ideológicas e psicológicas de
incontáveis Bispos. E, sobretudo, não mediram até que ponto muitos desses
Bispos estavam empenhados em implantar esses erros, face aos quais era
preciso tomar uma atitude e enfrentá-los.
Ora, não terem percebido isso foi uma das razões da
debilidade da atuação deles.
Era uma obrigação dos dois se prepararem seriamente,
de maneira a entrarem no Concílio armados de
pied en cap, dos pés à
cabeça, contra os erros que poderiam encontrar, e de desenvolverem uma
ação enérgica nos debates [141].
O resultado foi que Dom Sigaud e Dom Mayer acabaram por assinar sem
restrições o Concílio* [142].
* Foi o que levou o
professor Roberto De Mattei a comentar, com muita adequação, em seu já
citado livro Il crociato del secolo XX: “Bem se pode imaginar a
preocupação de Plinio Corrêa de Oliveira perante as conclusões do Concilio
e, talvez, a sua perplexidade com o fato de que os dois Prelados
brasileiros que lhe eram chegados, e o próprio Monsenhor Lefebvre,
tivessem assinado o conjunto dos Atos Conciliares, até mesmo os documentos
que tinham combatido na aula conciliar. O certo é que Plinio Corrêa de
Oliveira assumiu uma postura de respeitoso silêncio, à espera de que os
fatos confirmassem tudo quanto ele já previra”.
Lembro-me que, quando se delineou o rumo que o
Concílio Vaticano II adotaria, fiz todas as insistências junto a eles para
que tomassem uma atitude pública para deter esse rumo.
Eles recusaram terminantemente. Dom Sigaud teve esta
fórmula: “Plinio! Há uma diferença entre o que Dom Mayer e eu queremos,
e o que você quer. Nós queremos salvar o Concílio”.
Eu queria salvar a Igreja! Eles salvaram o
progressismo.
Se uma atitude pública tivesse sido tomada no momento
oportuno, com a energia necessária, a história da Igreja teria mudado [143].
Mas não fizeram o que lhes aconselhei. Por quê?
Há várias hipóteses. Mas a hipótese psicológica e
tática mais admissível é a de que, levados por esse confessado otimismo,
presente também em Monsenhor Lefebvre, eles julgavam que tudo o que estava
acontecendo acabaria se arranjando, de um jeito ou de outro, e que
portanto não valia a pena fazer esse combate frontal.
É sempre o ingênuo otimismo dos bons, que lembra a
seu modo o estado de espírito de Luís XVI diante dos avanços da Revolução
Francesa [144].
Dom Mayer pretendia que ele assinou o Concílio porque
o assinar não queria dizer nada! Não representava nenhuma adesão ao
Concílio. Era assim um ato notarial.
Ora, não há ato notarial que não queira dizer algo! [145]
9. O processo de autodemolição no pós-Concílio
A História narra os inúmeros dramas que a Igreja vem
sofrendo nos vinte séculos de sua existência. Oposições que germinaram
fora dela, e de fora mesmo tentaram destruí-la. Tumores formados dentro
dela, por ela cortados, e que já então de fora para dentro tentaram
destruí-la com ferocidade.
Quando, porém, viu a História, antes de nossos dias,
uma tentativa de demolição da Igreja, já não mais feita por um adversário,
mas qualificada de “autodemolição” em altíssimo pronunciamento de
repercussão mundial? (cfr. Alocução de Paulo VI ao
Seminário Lombardo, em 7/12/68)
Daí resultou para a Igreja e para o que ainda resta
de civilização cristã, uma imensa derrocada [146].
O fato concreto é que há hoje uma ponderável corrente
de católicos, ou antes de “católicos” entre aspas, que já não aceitam a
religião como ela era. E lutam por um catolicismo aggiornato e
comunista. Este é o fato dominante em matéria de comunismo.
Foi mais ou menos o que declarou o comunista Allende,
sobre a Igreja pré e pós-conciliar, pouco depois de eleito. Ele afirmou
que lera a Declaração dos Bispos em Medellin, e a linguagem que usavam era
a mesma deles, marxistas. E que a Igreja já não era mais um fator de
oposição ao partido dele, mas um elemento a favor* [147].
* Foram as seguintes
as suas palavras: “A Igreja Católica sofreu mudanças fundamentais.
Durante séculos, a Igreja Católica defendeu os interesses dos poderosos.
Hoje, depois de João XXIII, ela se orientou para transformar o Evangelho
de Cristo em realidade, pelo menos em alguns lugares. Tive ocasião de ler
a Declaração dos Bispos em Medellin, e a linguagem que usam é a mesma que
usamos desde nossa iniciação na vida política, há 30 anos. Naquela época,
éramos condenados por tal linguagem que hoje é empregada pelos Bispos
católicos. Acredito que a Igreja não será fator de oposição ao governo da
Unidade Popular. Ao contrário, será um elemento a nosso favor, porque
estaremos tentando converter em realidade o pensamento cristão”
(entrevista ao New York Times, reproduzida por O Estado de S.
Paulo de 4/10/70).
Por volta de 1930, havia em São Paulo grupos
anticomunistas muito efervescentes que importavam impressos contra o
comunismo de uma organização internacional suíça.
Eu era ainda um congregado mariano relativamente
novo, e um sacerdote deu-me um desses impressos e me disse: “Veja, aqui
é a última palavra em matéria de propaganda anticomunista, leia”.
Eu de fato li. E chamou-me logo a atenção o fato de
os argumentos que eles exploravam era que o comunismo queimava igrejas,
matava padres e freiras, profanava o Santíssimo Sacramento, quebrava
imagens e proibia o ensino religioso.
Luigi Taparelli d'Azeglio
Ora, eu tinha lido pouco antes o Tratado de
Direito Natural de Taparelli D’Azeglio [148],
e havia estudado as encíclicas de Leão XIII a respeito de matéria social.
E essas fontes muito sólidas, muito seguras,
apontavam outros pontos muito mais importantes sobre a incompatibilidade
entre comunismo e doutrina católica. Por exemplo, mostravam que o
comunismo queria eliminar a propriedade privada. E afirmavam a
legitimidade dela em termos tais, que não se podia conceber uma sociedade
organizada segundo o espírito da Igreja sem a propriedade privada.
Procurei mais tarde por esse padre e perguntei:
— Monsenhor, aqueles impressos falam da
incompatibilidade entre o comunismo e a doutrina católica, mas apenas no
que diz respeito a questões de ataques dos comunistas contra o culto. Não,
porém, no que diz respeito à propriedade privada. Como é que fica isto?
E acrescentei:
— Se algum dia aparecer um regime comunista que
diga à Igreja: “Eu organizo a sociedade sem propriedade privada, mas darei
liberdade religiosa”, a Igreja vai aprovar esse regime? Desaparece com
isso a razão de conflito com o comunismo?
Esse bom padre, tido como um dos mais conspícuos de
São Paulo, patinou em cima da questão e não deu resposta. Ele era um homem
de muita personalidade, mas não de grande inteligência. E eu pensei:
“Ele, em temas doutrinários, não navega com facilidade. Provavelmente não
está a par desse ponto”.
De vez em quando, para algum padre eminente, alguma
pessoa de maior categoria, eu fazia essa mesma pergunta. E a resposta era
a mesma patinação, quando nos documentos pontifícios a matéria está
tratada de maneira meridianamente clara.
Minha interrogação chegou ao auge no meu tempo de
deputado.
Apresentaram de repente, para ser incluído na
Constituição brasileira de 1934, um artigo que dizia: “Pertencem ao
Estado todas as riquezas do subsolo do país”.
Até então, pelo Código Civil, todas as riquezas,
inclusive as do subsolo, pertenciam ao proprietário do imóvel. Quem tinha
o solo, tinha o subsolo.
Nesse artigo vinha a disposição de que, para explorar
as riquezas do subsolo, era preciso licença do governo.
Na Liga Eleitoral Católica éramos muitos deputados.
Tenho má memória, mas penso que 70 ou 80 deputados, liderados pelo Tristão
de Athayde, que não era deputado, mas preposto de Dom Sebastião Leme junto
a nós.
Procuro o Tristão, procuro um ou outro e digo:
— Vocês não percebem? Se o Estado hoje toma conta
do subsolo, amanhã toma conta do solo. Votando esse artigo de lei, vocês
acabam admitindo um princípio comunista. Vejam os documentos pontifícios a
respeito.
— É, mas Dom Leme não está no Rio. Está em
Petrópolis.
— Telefonem para Dom Leme, vão até lá, para isso
existe estrada.
— Fim de semana, ele não gosta de ser perturbado.
* * *
Então tomei um automóvel e fui ao Colégio Santo
Inácio, onde havia o maior intelectual católico do Brasil: Padre Leonel
Franca.
Eu me dava muito com ele. Ainda me lembro do jeito
dele: baiano, de meia altura, calvo, mas com uma calvície
inteligentíssima, dela saíam cintilações. Sentado, quieto e com um
olhar... ele tinha uns olhos oblongos e cheios de pensamento.
Entrei no seu escritório, cheio de livros, de notas,
de fichas. Ele, sentado:
— Como vai?
— Padre Leonel, vim falar com o senhor sobre tal e
tal coisa.
— Não se preocupe, não tem importância nenhuma.
— Mas, Padre Leonel, isso é um ponto de doutrina.
— Não, mas essas coisas não são levadas tanto a
sério, assim. Não se preocupe.
— Não, eu me preocupo. E vou votar contra.
Ele:
— É um direito seu, como é um direito votar a
favor. Faça como quiser [149].
* * *
Procurei ainda vários outros Padres e colocava a
questão: “Padre, comunismo só é ruim quando é ateu? E quando ele não é
ateu, ele não é ruim? Se viesse um regime comunista que não perseguisse o
Clero, os senhores seriam contra esse regime?”
Não saía explicação. E eu fiquei percebendo que havia
da parte deles uma vontade de amolecer a doutrina católica a esse respeito
na primeira ocasião.
O fato concreto é que, a partir de aproximadamente
1935, nos meios católicos só se ouvia falar contra o "comunismo ateu". Não
se falava mais contra o comunismo enquanto supressão da propriedade
privada [150].
Passaram-se os anos. E viajei a Roma para a primeira
fase do Concílio.
Dom Sigaud pediu-me então que eu o acompanhasse nos
contatos com os Bispos da direita. E assim compareci a certo número de
reuniões.
Nesses contatos, percebi da parte desses Bispos
também uma vontade enorme de fazer uma conciliação entre a Igreja e o
comunismo, precisamente na base clássica: a Rússia cessa as perseguições
religiosas e a Igreja deixa de lutar pela propriedade privada. E achei
isso uma coisa esquisita.
* * *
Lembro-me de uma dessas reuniões, realizada na sede
da Congregação do Verbo Divino, com Dom Sigaud presente. Era um velho
prédio junto a um parque, de pé direito alto.
Anoitecia, mas a luz ainda não havia sido acesa.
Estava uma reunião bonita: uma série de prelados
vestidos à antiga, com corrente e cruz de ouro, alguns com expressão
fisionômica muito inteligente.
Sentávamos em cadeiras que haviam sido cômodas no
tempo da juventude deles, mas nas quais já podiam ser percebidas algumas
molas protuberantes que cutucavam de vários lados. Era preciso certa
política para sentar, como era preciso certa política para falar: duas
políticas concomitantes.
A reunião caminhava para acabar em ambiente algo
crepuscular [151].
Éramos talvez umas vinte pessoas na sala, falávamos a
respeito de uma coisa e outra, e chegou a se comentar de raspão, qualquer
coisa sobre a política do Concílio em face do comunismo [152].
Aí eu interpelei Monsenhor Roberto Ronca, o mesmo que
havia publicado a Carta Pastoral de Dom Mayer na Itália. Ele participava
dessa reunião.
Monsenhor Ronca era um homem bem inteligente. Alto,
gordo, corado, quinquagenário, com restos de cabelo louro de cá ou de
acolá pela fronte, mas com um olhar de homem que sabia fazer as contas e
espírito positivo. Um varão, realmente.
Eu disse a ele:
— Monsenhor, eu queria fazer a seguinte pergunta:
se os russos, amanhã, descerem na Itália e oferecerem a liberdade
religiosa em troca da renúncia da Igreja em ensinar o princípio da
propriedade privada, a Igreja pode aceitar esse oferecimento? Se ela
aceitar, completei, acabou o regime de propriedade privada na Itália e
está implantado o comunismo. E então, pobre Itália!
Como eu tinha falado isso em voz alta, e num momento
em que a conversa ia morrendo, essa minha pergunta determinou um silêncio
geral. Tanto mais que era um “xeque”. Não foi um “xeque ao rei” mas um
“xeque ao Arcebispo” [153].
Silêncio geral! Por fim, um deles acabou dizendo:
“É certo que o Papa, nesse caso, não sairá do Vaticano”, como que me
respondendo.
Eu amavelmente disse que isso respondia a um ponto
dentro de um círculo. Mas o que seria preciso saber é o que fariam todos
os Bispos do mundo numa hipótese dessas, que diretrizes teriam: só a
diretriz de não saírem de suas dioceses? E, nesse caso, a atitude seria
ficar e falar, ou ficar e calar? Esta era a questão [154].
Aí o Arcebispo de Pompéia (Monsenhor Ronca) olhou
para mim e disse: “Não sei, não sei... É um problema importantíssimo.
Mas o que o senhor quer, professor: nós, aqui na Itália, vivemos tão
ocupados com tantos problemas, que não temos tempo de estudar esses
assuntos que os senhores, na América do Sul, numa vida muito mais
tranqüila do que a nossa, têm.
Eu pensei com meus botões: “Está bem, então vou
publicar um estudo a esse respeito, que mandarei para eles e para todos os
semelhantes a eles. Porque estou notando um vácuo dentro disso que não
disfarça convenientemente a falta de coragem de tratar do assunto, e de
tomar, caso o problema se ponha, a atitude valente que é preciso ter. Vou
entrar dentro dessa questão”.
4. Conversas com Monsenhor Ivan Bucko e Monsenhor Józef Gawlina
Ainda em Roma, procurei conhecer nessa ocasião outros
escaninhos eclesiásticos, os mais diversos.
Fotograma de
filme de 1964 por ocasião da visita de Mons. Ivan Bucko a uma exposição
sobre a " Igreja mártir" no mundo comunista, criada pelo
pároco de uma paróquia romana. Monsenhor Bucko foi ele
próprio um refugiado da perseguição da Igreja na Ucrânia [Arquivo
histórico de Luce Cinecittà].
Por exemplo, Monsenhor Ivan Bucko [155],
posteriormente elevado pela Santa Sé à dignidade de Visitador Apostólico
dos ucranianos da Europa ocidental.
Tive ocasião de o conhecer em Roma, em 1962 [156],
num seminário ucraniano situado em local muito bonito e com um nome muito
pitoresco: Passegiata del Gianicolo.
O Gianicolo é um monte com todas as
recordações da história romana. Passegiata é passeio, mas um
passeio alegre, despreocupado. E nesse lugar eu arranjei um jeito de saber
como estava o mundo pelos lados da Ucrânia e de notícias de detrás da
Cortina de Ferro.
Colocando o mesmo problema para ele, ele me disse:
— Professor, eu gostaria de saber resolver, mas é
uma questão muito embrulhada.
Eu perguntei:
— Então não seria útil que alguém fizesse um
estudo sobre ela?
— Seria utilíssimo. Seria um grande serviço à
causa da Igreja.
Eu disse: “Está bom”, mas não falei com ele
sobre o meu desígnio de o fazer.
* * *
Conheci também nessa ocasião outro Monsenhor que
tinha sido diretor geral das Congregações Marianas e que inclusive havia
estado no Brasil. Eu não o conhecia. Era um polonês, Monsenhor Gawlina [157].
Ele tinha sido general no exército polonês durante a
I Guerra. Posteriormente tornou-se sacerdote. Foi nomeado Bispo por Pio
XII e morava na igreja polonesa de Roma.
Conversei com ele, levantei o mesmo problema, e ele
deu a mesma resposta: é preciso que alguém faça esse estudo.
Que problemas eu tive de enfrentar para escrever esse
opúsculo?
A maioria das pessoas não tinha a idéia clara de que
o Partido Comunista não era uma agremiação de caráter político como as
outras agremiações partidárias. E este era um erro que importava
fortemente desmentir.
O comunismo não é sobretudo um partido político. Ele
é um conjunto de pessoas que tem uma filosofia própria, a qual envolve uma
visão do universo [159],
da vida e do homem [160].
E esta filosofia quer configurar toda a cultura, toda a civilização todas
as instituições — políticas, sociais e econômicas — segundo essa visão [161].
Os comunistas não querem simplesmente tomar o poder,
como um partido político comum. Eles querem mudar completamente todo o
estilo da vida humana e executar seu projeto em todos os países do mundo,
sem nenhuma exceção [162].
Acontece que, desde 1917 até 1963, ano em que escrevi
o livro, o comunismo havia fracassado, quer no Ocidente e no Oriente, no
seu esforço de tentar persuadir. Tanto é que não tinham conseguido, até
aquele momento, vencer nenhuma eleição livre.
Esse fracasso, entretanto, não era total. Ele tinha
alcançado dois resultados muito importantes.
O primeiro deles fora o triunfo da conjuração
modernista dentro da Igreja. O segundo, a criação de certa insensibilidade
da burguesia em relação às reformas de base socializantes, o que amoleceu
os obstáculos que ele encontraria na mentalidade ocidental.
Razão pela qual convinha aos comunistas conservar a
velha tática de uma doutrinação explícita e marcada com um fundo de ameaça
de violência, e ao mesmo tempo lançar mão de uma tática completamente
nova, que foi a da coexistência pacífica.
Essa tática nova acentuou-se especialmente logo
depois do Tratado de Yalta*.
* Realizada em
fevereiro de 1945 na cidade de Yalta, na Criméia, a desastrosa Conferência
de Yalta reuniu os chefes de Estado aliados da II Guerra, Roosevelt
(Estados Unidos), Churchill (Inglaterra) e Stalin (URSS), na qual se
estabeleceu a divisão do mundo do pós-guerra. O resultado mais
catastrófico desse tratado foi a entrega vergonhosa, por parte dos países
ocidentais, de várias nações da Europa oriental ao império soviético.
Quando Stalin voltou do encontro de Yalta, a primeira
preocupação dele foi constituir uma igreja "ortodoxa" dirigida por
eclesiásticos cismáticos que tinham se tornado comunistas pelo medo de
morrer. Foi com representantes dessa igreja cismática que a Igreja
Católica tratou por ocasião do Concílio Vaticano II.
Por que razão a Rússia adotou de repente essa atitude
de distensão com os cismáticos?
Churchill, Truman e Stalin na conferencia de Potsdam
Pelo tratado de Yalta, completado depois pelos
acordos de Potsdam, estabeleceu-se tácita ou expressamente (ninguém o sabe
com precisão) que povos europeus — que gemeram depois sob a dominação
comunista — seriam entregues à Rússia.
Mas Stalin percebeu que esse jugo iria criar para a
Rússia um grande obstáculo estratégico.
Uma coisa é dominar um povo habituado há séculos ao
domínio dos czares, o qual era um domínio absoluto, feroz. Outra, bem
diferente, seria dominar povos civilizados hostis à Rússia, como o
polonês, o alemão, o tchecoslovaco, o húngaro.
Se a Rússia não operasse certa distensão, não fizesse
algumas tantas concessões no terreno religioso, estaria ameaçada por
distúrbios para ela perigosos, porque no próprio território russo o
comunismo não contava com muito apoio.
E essas foram as duas grandes razões que deram origem
a essa manobra de distensão, dentro da Rússia em relação aos cismáticos, e
fora da Rússia em relação aos católicos e cristãos em geral.
O ponto mais sensível para a nova política russa de
distensão era a Polônia [163].
Além da Cortina de Ferro, o bloco católico mais
compacto e influente era constituído pela Polônia, com seus trinta milhões
de católicos.
Para se tornar efetiva, a dominação soviética
encontrava dois obstáculos: a secular alergia dos poloneses ao
colonialismo russo e, principalmente, a incompatibilidade entre a
catolicíssima população polonesa e o regime marxista, o qual é, por
definição, ateu, amoral e igualitário.
Tais obstáculos impunham para os comunistas de Moscou
uma alternativa: colonizar mais uma vez a Polônia, sujeitando-a
brutalmente a procônsules russos, e ao mesmo tempo desencadear no país uma
perseguição religiosa neroniana; ou então conceder à nação um minimum
de autonomia, governá-la por meio de comunistas poloneses e não russos, e
ao mesmo tempo reconhecer à Igreja um minimum de liberdade, em
condições tão precárias que, com o curso dos tempos, o comunismo
conseguisse extinguir tanto a Fé quanto o sentimento nacional. Do
contrário, a concessão desse minimum seria, para os soviéticos, uma
capitulação [164].
No campo civil, o agente dessa nova política da
Rússia foi o líder comunista polonês Gomulka.
Gomulka com
Brezhnev em 1967
Assumindo o governo polonês, Gomulka deu à Polônia um
pouco de independência do ponto de vista de impostos, de organização
política, e um pequeno tanto de liberdade à Religião.
Ele apresentava aos católicos poloneses a seguinte
tese: “Para não perderem o pouquinho que têm, apóiem-me em vez de me
combater. Se eu cair, entram os russos para governar” [165].
Vendo a situação exatamente com os mesmos olhos do
que seus opositores comunistas, Monsenhor Wyszynski teria optado por
aceitar esse minimum [166].
Ele simplificadamente sustentava a seguinte posição:
“Na situação infeliz em que a Polônia caiu, nós não podemos querer o
bem maior, só podemos pensar no mal menor. O mal absoluto é a extinção da
liberdade. O mal menor é Gomulka”.
E foi assim que uma grande parte do Episcopado
polonês se incumbiu de desmoralizar e de reprimir severamente os católicos
anti-Gomulka e anticomunistas que aparecessem.
* * *
Havia ainda outro argumento alegado para sustentar
essa política: “Se fizermos um levante contra a Rússia, os povos do
Ocidente obrigarão os respectivos governos a entrarem de nosso lado. Isto
cria o perigo de uma guerra termonuclear. É melhor, portanto, a Polônia
abaixar a cabeça e aceitar a servidão para evitar para o mundo essa guerra
termonuclear”.
O resultado que veio desse cálculo foi a efetiva
política de coexistência que se estabeleceu na Polônia: o governo polonês
não dava mostras de querer extinguir a Igreja, a não ser muito
remotamente. E a Igreja não tentava libertar-se do comunismo, a não ser
muito remotamente também. E com isto cada um permanecia ao lado do outro,
colaborando.
Esses argumentos eram válidos não só para a Polônia:
com pequenas alterações valiam para o mundo inteiro.
Criou-se então no Ocidente a idéia de que um arranjo
com os comunistas era uma coisa possível. Nos países onde eles dominassem,
mais valia a pena não lutar, para salvar o pouco que se pudesse salvar. E
assim a problemática polonesa acabou tendo uma repercussão no mundo
inteiro.
4.
Silêncio da Igreja, compromisso
moralmente inaceitável
O que Gomulka pedia como troca aos católicos?
Ele afirmava que se suicidaria politicamente se
permitisse aos católicos desenvolver uma pregação normal e sistemática a
favor da propriedade privada.
Então ele pedia aos católicos poloneses em matéria de
propriedade privada, o mesmo que o Estado liberal pediu à Igreja em
matéria de separação da Igreja e do Estado. Nos seminários católicos do
Estado liberal ensinava-se que, em tese, melhor seria a união entre a
Igreja e o Estado; mas que, na prática, hoje em dia era melhor a
separação. E ai do leigo ou do padre que fosse fazer o elogio da união
Igreja-Estado! Era preciso não ter nem saudades, porque as autoridades
eclesiásticas liquidariam quem trabalhasse por sustentar essa tese.
A mesma coisa se deu na Polônia em matéria de
propriedade privada. De acordo com os Mandamentos, em tese seria melhor
que houvesse propriedade privada. Mas, na prática — diziam os partidários
da coexistência — houve tantos abusos do capitalismo que acabou sendo
preferível estabelecer a comunidade de bens.
Em termos simplificados, tudo o que em tese é bom, na
prática é ruim; e tudo quanto na prática é bom, em tese é ruim. Ficava-se
assim com uma Religião em tese, e uma prática comunista completamente
diferente da tese que a pessoa defendia.
O resultado era que os católicos, ouvindo isto
passivamente durante vinte anos, começariam a tomar como normal a
existência da comunidade de bens e eliminariam de seu horizonte mental a
propriedade privada.
Esta era, em suma, a fórmula polonesa de coexistência
pacífica.
Em meu ensaio, procurei
frustrar essa manobra já em 1963, mostrando que é intrínseco ao regime
comunista eliminar ou mutilar muito gravemente o instituto da propriedade
privada, o que, por sua vez, é contrário à doutrina da Igreja [168].
Nenhum Cardeal, nenhum Bispo, nenhum sacerdote, nenhum fiel que queira
manter a sua alma isenta de pecado, pode aceitar esse acordo, porque ele é
imoral. [169].
Para ser fiel à sua
missão, a Igreja não poderia deixar de combater tal regime, ainda que este
lhe reconhecesse inteira liberdade de culto. Tal combate criaria um
inevitável conflito entre os católicos e qualquer Estado comunista [170].
O opúsculo lançava, pois, uma divisão intencional no
meio católico, entre os que queriam dobrar o joelho diante da Besta, e os
que diziam: “Jamais aceitaremos tal acordo, sejam quais forem as
conseqüências”.
Isto criava uma grande dificuldade no meio dos
teólogos, dos moralistas, do Episcopado e em toda a opinião pública.
Se houvesse uma estirpe de católicos devotos de Nossa
Senhora e resolvidos a aceitar a tese de A liberdade da Igreja no
Estado comunista, esses iriam para a clandestinidade, para as
catacumbas, iriam morrer mártires, mas assegurariam a aurora da Igreja e
do Reino de Maria no dia de amanhã.
2. Uma noite para redigir o livro
Eu estava ainda em Roma quando escrevi, numa só
noite, a maior parte desse ensaio. Amanheci com o ensaio essencialmente
pronto.
Vim com ele para o Brasil, e cheguei à conclusão de
que ainda não era o momento de o publicar. Ele passou seis ou oito meses
engavetado.
Depois pareceu-me chegado o momento. E então
publiquei-o cerca de um mês antes da segunda sessão do Concílio*.
* Estampado
inicialmente em Catolicismo n° 152, de agosto de 1963, foi
depois reproduzido no jornal italiano Il Tempo (4/1/64) e teve
edições em português, espanhol, francês, inglês, alemão, italiano, húngaro
e polonês. Essas sucessivas edições atingiram mais de 163.500 exemplares.
Mais tarde foi ampliado e tomou o novo título de Acordo com o regime
comunista: para a Igreja, esperança ou autodemolição? Foi ainda
transcrito na íntegra em 40 jornais ou revistas da França, Alemanha,
Itália, Estados Unidos, Espanha, Portugal Argentina, Chile, México,
Colômbia, Bolívia e Angola, além do Brasil.
3. Os 2.500 Padres conciliares recebem a obra
Pedi ao nosso secretariado de Roma espalhar esse
estudo a todos os 2.500 Prelados presentes a essa segunda sessão do
Concílio.
Em resposta, recebi cartas elogiosas de alguns
Bispos, mas pouco numerosas*.
* Entre essas, as
dos Cardeais Eugenio Tisserant e Alfredo Ottaviani, então secretário da
Sagrada Congregação do Santo Ofício; Norman Thomas Gilroy, Arcebispo
resignatário de Sidney (Austrália); Sua Beatitude Paul II Cheicko,
Patriarca de Babilônia dos Caldeus e alguns outros Prelados.
Lembro-me, por exemplo, de um Bispo do rito caldeu,
de uma nação dominada pelos comunistas na Ásia Menor. Era uma carta
excelente, pedindo-me para mandar o ensaio a todo o seu Clero, para eles
aprenderem qual era o seu dever sob a ocupação comunista.
De Bispos brasileiros, não recebi praticamente
nenhuma carta.
Enviamos depois o estudo a um número enorme de
revistas. Um comentário excelente saiu na revista teológica de grande
porte Divus Thomas, de Piacenza (Itália), que se solidarizou com as
nossa teses*.
* Tal publicação se
deu na edição de abril-setembro de 1964 da revista.
O estudo foi também
reproduzido na íntegra em mais de trinta jornais e revistas de onze países
diferentes. Bastante sintomático foi o fato de a revista Informations
Catholiques Internationales, de orientação caracteristicamente
progressista, sentir a necessidade de publicar uma resenha do trabalho.
Fac-símile
da carta de aprovação da Santa Sé ao livro A Liberdade da Igreja
no Estado Comunista [Clique sobre a figura para ler a tradução
da carta]
Lembro-me até hoje que estávamos fazendo
uma reunião na sede da rua Pará, quando me disseram que Dom Mayer me
chamava ao telefone. Fui atender, ele conversou um pouco comigo, contou
vários casos e no fim me disse:
— Veja, tenho aqui comigo uma carta do
Cardeal Pizzardo que lhe diz respeito.
— Mas como uma carta do Cardeal Pizzardo,
Dom Mayer?
— Eu vou ler.
E leu então a carta do Cardeal Giuseppe
Pizzardo, Prefeito da referida Congregação, a qual também vinha assinada
pelo secretário, futuro Cardeal Dino Staffa, aprovando o meu livro [172].
Eu fiquei satisfeitíssimo! Porque eu
esperava tudo, menos aquela carta [173].
Pedi a Dom Mayer que ditasse o texto pelo
telefone e comuniquei ao plenário. Depois ele mandou um emissário de
Campos para São Paulo, especialmente para trazê-la [174].
Essa carta da Santa Sé furava de fato o paredão, e
pareceu-nos intencionalmente calculada para isto. Ela declarava, em nome
de um alto órgão da Santa Sé, que a nossa tese era inteiramente ortodoxa*.
* A carta, datada de
2 de dezembro de 1964, afirmava que o autor era “merecidamente célebre
pela sua ciência filosófica, histórica e sociológica”, e
cumprimentava-o pelo “denso opúsculo, que é um eco fidelíssimo dos
Documentos do supremo Magistério da Igreja, inclusive as luminosas
Encíclicas ‘Mater et Magistra’ de João XXIII e ‘Ecclesiam suam’ de Paulo
VI, felizmente reinante”.
Para um católico que
ama a Igreja, este é o maior elogio que pode receber de uma alta
autoridade eclesiástica.
Muito
significativamente, essa carta dizia ainda no seu final: “Queira o
Senhor conceder a todos os católicos que compreendam a necessidade de
estarem unidos ‘in uno sensu eademque sententia’ a fim de evitar as
ilusões, os enganos e os perigos que hoje ameaçam internamente a sua
Igreja!”
Assim
noticiou o "Catolicismo" nº 173 de maio de 1965 o lançamento em
público dos estandartes da TFP
Ou seja, quem
escreveu a carta conhecia muito bem “as ilusões, os enganos e os
perigos” da política de concessão ao comunismo que serpeavam
internamente na Igreja. E apoiava o autor por denunciá-los.
A importância dessa carta para as nossas consciências
e para angariar o apoio de pessoas a favor de nossas teses foi
simplesmente incalculável [175].
Era de fato uma carta de alto e irrestrito apoio e aprovação [176].
Era um impacto para nossos adversários ver que TFP, soi disant mal
vista pela autoridade eclesiástica, recebia uma segunda carta de elogio da
Santa Sé (a primeira tinha sido a relativa ao livro Em defesa da Ação
Católica)* [177].
* Ainda com relação
às campanhas de difusão do livro A Liberdade da Igreja no Estado
Comunista, cumpre registrar um fato altamente simbólico. Foi durante a
divulgação da 3ª edição desse livro, que pela primeira vez tremularam em
público os estandartes da TFP, rubros e marcados com o leão dourado, em
campanha em pleno Viaduto do Chá, no centro de São Paulo. Era o dia 30 de
março de 1965.
5. Kierunki: polêmica atrás da Cortina de Ferro
Nesse ínterim, emergiu a nossa polêmica com o
semanário católico-esquerdista Kierunki, deixando patente que o
estudo havia repercutido atrás da Cortina de Ferro.
Este semanário
Kierunki, bem como o mensário Zycie i Mysl, ambos poloneses,
atacaram violentamente A liberdade da Igreja no Estado comunista. A
polêmica começou quando o Sr. Zbigniew Czajkowski, colaborador destes dois
periódicos, publicou extensos artigos contra meu ensaio. Respondi através
das páginas de Catolicismo [178].
Daí se
seguiu uma polêmica, na qual interveio em apoio à minha obra o periódico
L’Homme Nouveau, de Paris, pela pena de seu colaborador Henri
Carton, enquanto Témoignage Chrétien — turbulento órgão
comuno-progressista francês — se colocava ao lado de Czajkowski [179].
Por sua vez, o Sr.
Tadeusz Mazowiecki [180],
redator-chefe do mensário Wiez e deputado do grupo católico Znak
à Dieta polonesa, publicou em sua revista (n° 11-12 de novembro/dezembro
de 1963), em colaboração com o Sr. A. Wielowieyski, um artigo que
procurava ser uma réplica ao estudo [181].
* * *
Até hoje não sabemos o que motivou essa polêmica [182].
Devido à Cortina de Ferro, nosso estudo não pode ter
penetrado torrencialmente na Polônia. E para que um jornal tivesse que
refutá-lo, pode-se presumir que ele entrou levado por alguém que fez dele
uma edição clandestina em polonês e que lá essa edição tenha causado
perturbação nos meios católicos colaboracionistas. Daí a necessidade de o
jornal Kierunki tratar da questão [183].
O fato concreto é que nosso ensaio difundiu-se
enormemente. Foram preparadas edições e traduções em diversas línguas. E a
TFP as espalhou por toda parte.
Cumprimos a nossa missão, dissemos a verdade que
tinha de ser dita e a disseminamos amplamente. Cabia agora a outros darem
conta perante Deus do que puderam ler e não tiraram proveito [184].
* * *
Vinte anos depois de publicado nosso ensaio, surgiram
minorias dentro do Episcopado de várias partes do mundo que, antevendo o
problema da coexistência com o comunismo, propuseram-se resolvê-lo do pior
modo. Houve eclesiásticos que pregaram o desarmamento nuclear unilateral
das nações do Ocidente utilizando como lema: “Melhor vermelho do que
morto”. O que significava: “É melhor ficar comunistado que
ser morto”. Melhor portanto nos entregarmos.
Nos Estados Unidos, representantes dessa minoria
episcopal sustentavam a seguinte tese: "A Rússia não se desarmará. Se
nós não nos desarmarmos, será a guerra atômica. Ora, guerra atômica é um
mal tão grande, que é melhor que a Rússia tome conta dos Estados Unidos.
De maneira que nós vamos trabalhar pelo desarmamento unilateral dos
Estados Unidos do ponto de vista atômico”* [185].
* Outro fato
clamoroso nessa linha: perante o Sínodo Mundial dos Bispos reunido em Roma
em 1977, o Arcebispo de Saigon, Monsenhor Nguyen Van Binh, explicou aos
Bispos presentes que, sendo “impossível esconder dessas crianças
vietnamitas as diferenças entre o marxismo e o cristianismo”, é
preciso “explicar essas diferenças ‘não com uma atitude de oposição’ ao
marxismo, mas num sentido de justiça”. E acrescentou que aos
dominadores comunistas do Vietnã, “devemos mostrar uma nova face, a
verdadeira face da Igreja” e “cooperar ativamente” com o
governo (cfr. artigo O Arcebispo de Ho Chi Min,Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 1977).
E o mais surpreendente é que essa atitude subserviente da tal Igreja
colaboracionista vietnamita não despertou nenhum protesto entre os 204
Prelados presentes ao Sínodo.
Pelo contrário, aqui
no Brasil, a Regional Sul II da CNBB fez um pronunciamento em que
procurava mostrar que o Episcopado e os fiéis brasileiros se devem
inspirar na conduta colaboracionista da Igreja vietnamita, caso o
comunismo tome conta do Brasil. Dizia: “A disposição da Igreja
vietnamita leva a crer que ela não está apenas fazendo uma ‘tentativa’ de
coexistência com o regime comunista. [...] Nesse momento, quem
sabe, essa Igreja dos confins da Ásia nos dará o primeiro exemplo de como
a Igreja pode existir e agir eficazmente na sua missão salvadora, sob um
regime de ‘ditadura do proletariado’“ (cfr. “Voz do Paraná”,
hebdomadário católico de Curitiba, semana de 25 de abril a 1° de maio de
1976. Dr. Plinio transcreveu essa declaração em seu livroA Igreja ante
a escalada da ameaça comunista — Apelo aos Bispos Silenciosos, Ed.
Vera Cruz, São Paulo, 4ª edição, 1977).
Capas de várias edições do
"Diálogo" [ para aceder ao texto do livro, em várias línguas, clique
sobre a foto]
1. O que me levou a escrever este ensaio: torção da palavra “diálogo”
Dois anos depois de sair a público A liberdade da
Igreja no Estado comunista, escrevi outro livro que de certo modo
tinha relação com o primeiro. A ele dei o título de Baldeação
ideológica inadvertida e Diálogo.
A idéia de escrever este ensaio nasceu de uma pequena
circunstância.
De há muito soavam falso a nossos ouvidos os
múltiplos empregos que em certos meios vinham sendo dados à palavra
diálogo.
Sentíamos a necessidade, veemente como se fora um
imperativo de consciência, de protestar contra essa transgressão das
regras da boa linguagem.
Aos poucos, impressões, observações, notas colhidas
aqui e acolá, iam criando em nossa mente a sensação de que essa multiforme
torção da palavra diálogo tinha uma lógica interna que deixava ver
algo de intencional, de planejado e de metódico.
E que esse algo abrangia não só essa, mas outras
palavras usuais nas elucubrações dos progressistas, socialistas e
comunistas, como sejam pacifismo, coexistência,
ecumenismo, democracia-cristã, terceira-força etc.
Essa torção, segundo se nos tornava claro pela
observação, se fazia sempre num mesmo sentido: o de debilitar nos não
comunistas a resistência ao comunismo, inspirando-lhes um ânimo propenso à
condescendência, à simpatia, à não-resistência e até ao entreguismo. Em
casos extremos, a torção chegava até o ponto de transformar não comunistas
em comunistas.
2. Denúncia da tática da baldeação ideológica inadvertida
Este meu ensaio procurava demonstrar que o deslizar da
sociedade ocidental e cristã, de uma posição esquerdista para outra com
rumo final para o marxismo, era um fenômeno antigo e profundo. Constituía
ele, por sua própria essência, uma baldeação ideológica mais ou menos
inadvertida, que essa sociedade cristã vinha lamentavelmente realizando,
ao longo de séculos, em direção do comunismo.
Nesta perspectiva, pois, o fenômeno não era novo.
Novo entretanto era o aspecto que ele assumia em
razão do empenho todo especial que aqui e acolá certos círculos
desenvolviam para imprimir a esse processo, por meio de artifícios
diversos, uma velocidade sem precedentes.
Por outro lado, tratava-se não mais de obter que esse
deslizar se operasse por etapas, do centro para a esquerda, ou de uma
esquerda moderada para outra um pouco mais ousada, mas do centro ou da
esquerda moderada para uma ordem de coisas que, em seu conteúdo, era
categoricamente comunista.
Não só, pois, pelos já referidos artifícios modernos
com que era provocado, mas também enquanto drástica, próxima e até
imediatamente tendente ao marxismo, e enquanto marcado por uma celeridade
e uma afoiteza sem precedentes, em proveito direto do comunismo, é que tal
processo apresentava uma nota nova, um tom de um rubro intenso que outrora
nele mal se entrevia.
Nova, sobretudo, era a baldeação ideológica
inadvertida enquanto, de colateral que era, se tornou preponderante na
tática usada pelo comunismo com vistas à conquista ideológica do mundo [186].
O livro mostrava também por que forma os comunistas
se valiam do diálogo para debilitar sub-repticiamente a resistência
ideológica de seus adversários, e especialmente a dos católicos.
O assunto aí versado é por demais sutil e extenso
para sequer ser resumido aqui.
Uma das observações mais importantes
- de ordem prática
- contidas nesse estudo era que,
por meio do falso diálogo, os comunistas não visavam tanto alcançar dos
católicos que renunciassem explicitamente à Fé, mas que aceitassem uma
interpretação relativista e evolucionista da doutrina católica.
Assim, corrompia-se a Fé, que por sua natureza exige
uma certeza incompatível com o estado de dúvida inerente ao relativismo e
ao evolucionismo. E, alcançado esse resultado, não era difícil à
propaganda comunista induzir os católicos a esperar do diálogo com o
comunismo o encontro de uma síntese... a qual bem poderia ser, em último
termo, o mesmo comunismo com outra roupagem [187].
3. Chile: apreensão do livro pela polícia democristã de Frei
Falo agora de uma repercussão sobre o livro,
acontecida quatro anos depois.
Em agosto de 1969, dois telegramas publicados na
imprensa diária relatavam uma estranha atitude do governo chileno de
Eduardo Frei face ao meu ensaio Baldeação ideológica inadvertida e
Diálogo.
Eu tinha publicado esse estudo primeiramente no
Brasil. E por toda a parte circulou ele, criticado por uns, aplaudido por
outros, sem qualquer impedimento de autoridades de qualquer natureza. Nada
mais normal na vida de um livro, especialmente quando da natureza deste*.
* O livro
teve uma expressiva divulgação: quatorze edições, sendo cinco em
português, seis em espanhol, uma em italiano, uma em alemão e uma em
inglês. Ao todo, 132,5 mil exemplares. O trabalho foi transcrito
integralmente em sete jornais ou revistas de cinco países (cfr. Um
homem, uma obra, uma gesta, cit.).
[Nota do Site: o texto completo
das edições em Português, Espanhol, Inglês, Alemão e Italiano pode
ser
consultado aqui].
Acontece que a editora argentina Cruzada tinha
enviado pouco antes, para serem colocados no Chile, cerca de duzentos
exemplares desse meu estudo. E ficou surpresa ao saber que a alfândega
chilena apreendera os volumes [188].
Passei então ao presidente Eduardo Frei um telegrama
de protesto contra a arbitrariedade dos prepostos aduaneiros de seu
governo. E ele, com uma grandeur à De Gaulle (só permissível aliás
aos pouquíssimos mortais que têm o passado do discutido ex-presidente
francês) não se dignou responder-me...
Publiquei então o meu telegrama na imprensa
brasileira.
Dias depois, um porta-voz do governo chileno declarou
à Associated Press quais as razões da medida. Ao lê-las na imprensa
brasileira, não pude deixar de sorrir, tais eram as suspicácias
demonstradas pela Gestapo alfandegária montada pelo regime pedecista
chileno.
Eu tinha — afirmava o porta-voz — "ostensivo e
estreito contato" com o Sr. Fábio Vidigal Xavier da Silveira, autor do
livro Frei, o Kerensky chileno. Ora, este livro fora considerado
"insultante" a Frei e à democracia cristã chilena pelo governo daquele
país. Logo, meu livro, creio que por osmose, poderia também ser
"insultante" contra o melindroso Chefe de Estado e sua grei.
Ver injúrias onde não existem, desconfiar de um livro
só porque seu autor é amigo do autor de outro livro do qual não se gosta:
não cheiravam a Gestapo esta susceptibilidade, esta desconfiança
superexcitada, esta prontidão em adotar medidas policialescas?
Acrescentava o referido funcionário do governo do
Chile: a TFP andina movia "violenta" oposição ao governo desse
país. E, em conseqüência, a alfândega chilena se julgava no direito de
apreender meu livro.
Pouco depois veio do Chile outro telegrama
anunciando, gravemente, que meu livro fora analisado pelos poderes
chilenos, e, comprovado seu caráter meramente ideológico, se lhe permitia
circular... [189].
* * *
Vinte anos depois de lançado, esse livro teve ainda
uma repercussão muito significativa.
A revista semanal chilena Hoy certo dia
publicou [190]
uma fotografia da mesa de reunião de Pinochet com os ministros dele. E
diante de cada ministro havia uma pasta. Em cima de cada pasta, accessível
a todas as fotografias, aparecia um exemplar de Baldeação ideológica
inadvertida e Diálogo. Não havia outros papéis. Era o único tema a
estudar. E via-se que era a Presidência da República que mandava
distribuir [191].
No mesmo semanário Kierunki que havia se
ocupado do livro A liberdade da Igreja no Estado comunista, o Sr.
Z. Czajkowski escreveu artigo com um título bastante singular: No
círculo de uma mistificação psicológica, ou seja, de uma polêmica com o
Professor Plinio Corrêa de Oliveira — continuação*.
* Esse artigo foi
publicado em Kierunki nos números 51-52 e 53 do ano de 1967.
Anteriormente, ao tomar posição contra A liberdade
da Igreja no Estado comunista, o Sr. Z. Czajkowski fizera questão de
enviar-me seus argumentos contra o livro que pretendia refutar.
Desta feita, entretanto, só tomei conhecimento de sua
nova investida através de uma notícia publicada em uma revista polonesa
editada em Varsóvia pela Associação Pax*.
*
Esta revista chanava-se La Vie Catholique en Pologne - Revue de la
Presse Polonaise, de janeiro de 1968.
Tal revista, destinada a informar (ou desinformar?…)
o público ocidental sobre a vida religiosa naquele país e,
particularmente, sobre as atividades do grupo Pax, só por acaso chegou às
minhas mãos, e assim mesmo com um atraso enorme. O Sr. Z. Czajkowski desta
vez não havia tomado providências para que sua argumentação chegasse à
parte contrária.
Ele tinha lá suas razões para isso: a fim de melhor
rebater este meu ensaio, adulterou pura e simplesmente, com a maior
desfaçatez, diversos trechos que quis refutar! [192]
1. A indissolubilidade do vínculo conjugal na Constituição de 1934
O preceito constitucional da indissolubilidade do
vínculo conjugal havia sido introduzido na Constituição de 1934. E tive a
alegria e a honra de ser, como deputado da Liga Eleitoral Católica, na
Chapa Única por São Paulo Unido, um dos batalhadores mais
entusiásticos em prol dessa grande vitória católica.
Por ela batalhou com sagacidade e empenho o Cardeal
Sebastião Leme. Dispunha este do apoio dos muito numerosos deputados
sufragados pela LEC no Brasil inteiro. Foi coordenando-os e estimulando-os
que ele nos conduziu todos ao êxito.
Foi isto em 1934. À testa do Episcopado nacional
havia um Dom Leme. E no Brasil havia uma LEC estuante de vitalidade [193].
2. O divórcio no projeto de Código Civil de 1966 gerava uma questão de
consciência
Em 1966, houve uma tentativa de abalo dessa
inviolabilidade do matrimônio. E a TFP iria entrar em uma batalha
vitoriosa em defesa da instituição da família, contra o divórcio.
O governo federal apresentou um projeto de novo
Código Civil, por achar que o antigo, de 1917, era velho. Não era nada
velho. Era uma lei de 1917 que estava inteiramente em vigor. O Código era
menos velho do que o Presidente da República que estava governando o
País*.
* O presidente
Castelo Branco havia nascido em 1897...
Constituí então, dentro da TFP, uma Comissão de
Estudos composta por advogados do nosso grupo para estudar esse projeto. E
eles chegaram à conclusão de que este era péssimo, inclusive na parte
referente à propriedade privada.
O projeto era, portanto, socialista. Mas o que nele
havia de pior era o divórcio, introduzido de maneira sorrateira em um dos
seus artigos.
Nós considerávamos que a liberação do divórcio traria
um mal imenso ao Brasil.
Em primeiro lugar, porque em si é uma violação da Lei
da Igreja [194].
Segundo a doutrina católica tradicional, o casamento
e a família se fundam em princípios inerentes à natureza humana. Dado que
Deus é o autor do universo e do homem, tais princípios são a expressão da
vontade divina. Por isto mesmo se consubstanciam eles em três Mandamentos
da súmula perfeita do direito natural, que é o Decálogo: IV — Honrar pai e
mãe; VI — Não pecar contra a castidade; IX — Não desejar a mulher do
próximo.
É nestes preceitos, imutáveis como tudo quanto
constitui ordenação fundamental da natureza humana, que se baseiam a
família, o casamento, a unidade e a indissolubilidade do vínculo conjugal,
o pátrio poder.
Da lei feita por Deus, só Deus pode dispensar.
Nenhuma lei humana — ainda que ela seja eclesiástica — pode mandar
validamente o contrário do que Deus preceituou.
Nosso Senhor Jesus Cristo elevou à dignidade de
Sacramento o contrato matrimonial, conferindo-lhe assim um título de
indissolubilidade ainda mais augusto e vigoroso. De onde, até a consumação
dos séculos, o casamento cristão será indissolúvel [195].
Em segundo lugar, seria um escândalo um país de
imensa maioria católica ter uma lei divorcista. Por causa do número
incalculável de pecados a que a aprovação do divórcio daria lugar, esses
pecados ofenderiam a glória de Deus, de um lado, e do outro teriam como
efeito nocivo um castigo sobre a nação brasileira, um castigo de ordem
religiosa e moral.
Era, portanto, para mim e para a TFP, uma questão de
honra e uma questão de consciência fazer todo o possível para evitar que o
divórcio entrasse.
3. Idéia da Pastoral coletiva contra o divórcio: frieza dos Bispos
Antes de sair à luta nas ruas, tentamos nos
bastidores impedir a campanha divorcista.
Em abril de 1966, a pedido meu, Dom Mayer e Dom
Sigaud fizeram sondagens junto aos Bispos para ver se eles estariam de
acordo em publicar uma Pastoral coletiva desaconselhando o divórcio.
Como a força eleitoral da Igreja no Brasil era
enorme, se o Episcopado todo tomasse uma atitude antidivorcista, seria
fácil os deputados se darem conta do risco da não-reeleição caso
aprovassem o Código Civil divorcista. Isto tornaria a aprovação do
divórcio muito difícil.
Infelizmente chegaram à conclusão de que o Episcopado
não estava disposto a lançar essa Pastoral, a qual entretanto poderia
salvar o Brasil do divórcio.
Diante dessa inação do Episcopado, só tínhamos uma
coisa a fazer: lançarmo-nos na campanha contra o divórcio.
A TFP era pequena naquele tempo. E tínhamos que
tentar evitar um mal enorme, em circunstâncias particularmente difíceis.
Pois, a favor do Código Civil divorcista, consciente ou inconscientemente
estavam engajados os elementos mais influentes da nação brasileira: o
presidente de república, Marechal Castelo Branco, que gozava naquele
momento de um enorme prestígio; grande parte da imprensa, dos meios
intelectuais e dos meios políticos; e até, a seu modo, a cúpula do
Episcopado nacional.
Todas essas forças estavam engajadas de um modo ou de
outro em fazer aprovar o Código Civil, no qual encontrava-se embutido o
divórcio.
A situação para nós era crítica, mas tínhamos de ser
fiéis ao nosso lema que é Tradição, Família e Propriedade. Não podíamos
cruzar os braços.
O primeiro marco da campanha foi uma entrevista que
eu dei ao Jornal do Brasil*
* Essa entrevista,
publicada naquele matutino carioca na data de 24 de abril de 1966, sob o
título O novo Código é dissolvente, foi posteriormente transcrita
por bom número de jornais brasileiros.
Como os promotores do divórcio estavam querendo um
debate rápido, sem dar tempo à opinião antidivorcista de se organizar,
enviei um telegrama ao presidente da Câmara dos Deputados solicitando o
adiamento da votação do projeto por um ano, para permitir debates sobre a
matéria*.
* O telegrama era
datado de 29 de maio de 1966.
E divulguei esse telegrama pelos jornais,
argumentando que o Código Civil anterior havia levado anos para ser
aprovado, e que era um absurdo querer aprovar de afogadilho um projeto tão
importante.
5.
O “Apelo aos altos poderes civis e
eclesiásticos em prol da família brasileira” — A TFP nas ruas
Simultaneamente começamos uma campanha de rua
consistente em colher assinaturas para um abaixo-assinado pedindo ao
governo não introduzir o divórcio no Brasil*.
* Esse
abaixo-assinado, que se iniciou no dia 2 de junho de 1966, constituiu um
“Apelo aos altos Poderes civis e eclesiásticos em prol da família
brasileira” e solicitava dos presidentes do Senado e da Câmara dos
Deputados a retirada do projeto da pauta de votação; e do Presidente da
República que designasse uma comissão para elaborar um texto de espírito
diametralmente oposto, colocando-o em debate público.
Apelava também ao
Venerando Episcopado Nacional “que faça ouvir sua grande e poderosa
voz” para barrar o divórcio no Brasil.
Pareceu-me conveniente começar a campanha no ponto
mais movimentado de São Paulo, que era naquela época o Viaduto do Chá, no
qual desembocava a rua Barão de Itapetininga, funil por onde passava São
Paulo inteiro na hora das compras.
Naquele tempo, era a parte mais trepidante da vida da
cidade e um centro de mundanismo intenso.
Assim, com pranchetas, mesinhas e cartazes nos quatro
cantos do Viaduto, levantando grandes estandartes com o leão rompante, e
usando flâmulas com este símbolo na lapela, 80 sócios e cooperadores da
TFP abordavam as pessoas nesse trajeto.
Mandei também colocar uma banca perto da Faculdade de
Direito, um centro universitário tido como divorcista, para começar a
campanha com audácia.
A campanha foi lançada ao mesmo tempo no Rio de
Janeiro e em Belo Horizonte.
O resultado excedeu largamente o que nós
imaginávamos. A meta era de 200 mil assinaturas para toda a campanha. No
primeiro dia, nessas três cidades, tínhamos alcançado 60 mil!
Desta forma, com pasmo para muitos, as pessoas das
ruas que poderiam numa primeira impressão parecer tão divorcistas,
acorriam em quantidade para assinar as listas. Os cooperadores não tinham
pranchetas suficientes para dar aos que queriam assinar.
Nesse dia, à noite, em reunião na nossa sede da rua
Pará fizemos um balanço da campanha. O clima era de euforia geral, e todo
mundo não cabia em si de surpresa e de alegria diante do trabalho que
estava sendo executado.
Preveni então os nossos participantes de que
certamente a imprensa iria fazer campanha de silêncio, e os jornais não
noticiariam a campanha.
No dia seguinte foi tal e qual. A única notícia sobre
o divórcio que saiu nos jornais falava de um grupo chamado Liga das
Senhoras Divorcistas, que saiu às ruas para coletar assinaturas a
favor do divórcio. Foi uma notícia tão chocha que, já no dia seguinte, não
apareceram mais referências a elas. E essa Liga sumiu da história,
volatilizou-se pelos ares. Da campanha da TFP, nenhuma notícia!
Campanha triunfal, com dezenas de bancas no centro da
cidade, estandartes. São Paulo inteiro viu. Mas os jornais não disseram
uma palavra!
Ainda em plena campanha, iniciamos uma série de
conferências contra o divórcio. Convidamos como conferencistas
desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo. O encerramento desse
ciclo foi feito pelo ministro Pedro Chaves, do Supremo Tribunal Federal.
Foi um acontecimento de grande repercussão nos meios forenses*.
* Foram seis dias de
conferências (de 16 de junho e 4 de julho de 1966), todas realizadas no
auditório da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.
A sessão inaugural
teve como presidente de honra o desembargador Raphael de Barros Monteiro,
presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Os conferencistas foram,
em dias alternados, os desembargadores Joaquim de Sylos Cintra, Alceu
Cordeiro Fernandes, Raul da Rocha Medeiros Junior, Italo Galli, todos de
São Paulo, e o ministro Pedro Chaves, do Supremo Tribunal Federal.
A Dr. Plinio coube a
conferência sobre a continuidade familiar e a tradição no Código Civil
brasileiro, ocasião em que dissertou brilhantemente sobre o sentido da
“asseitas” para o ser humano. Falou também de improviso o
desembargador Marcio Martins Ferreira, vice-presidente do TJ de São Paulo.
[clique sobre a foto ou no
link acima para aceder ao texto completo - com áudio - da
conferência]
A sala estava repleta. Quando o presidente do Supremo
Tribunal Federal entrou conosco para fazer a sua conferência, ele e muitos
magistrados manifestaram surpresa diante da quantidade e da qualidade das
pessoas presentes.
As conferências foram um verdadeiro êxito. Aí a
imprensa deu notícia.
O vice-presidente do Tribunal de Justiça de São
Paulo, desembargador Marcio Martins Ferreira, falando em nome do TJ,
solidarizou-se oficialmente com a campanha.
Oferecemos posteriormente um banquete aos
conferencistas. Então, discurso, saudação, imprensa de novo.
7. Adesão de personalidades eclesiásticas
Tudo isto fez chover assinaturas nas ruas e a
campanha foi aumentando de vulto. Ela se estendeu por todo o Brasil, e
começaram a chegar notícias de assinaturas de personagens eclesiásticas e
civis importantes.
Um cooperador da TFP, passando pelo fundo da
Catedral, viu sair o Cardeal Agnelo Rossi, que era o Arcebispo de São
Paulo e presidente da Comissão Central da CNBB. Esse nosso cooperador
chegou com toda a candura para o Cardeal e disse: “Vossa Eminência é
contra o divórcio? Quer assinar a nossa lista?”
No dia seguinte, nos jornais: “Cardeal Rossi
assina lista da TFP”* [196].
* Assinaram também
nossas listas alguns altos prelados: Dom Delfim Ribeiro Guedes, Bispo de
São João del Rei, Dom Epaminondas José de Araújo, Bispo de Rui Barbosa,
Dom Jerônimo Mazzarotto, Bispo Auxiliar de Curitiba e Dom Rodolpho das
Mercês de Oliveira Pena, Bispo titular de Apollonis. Além desses, deram
declarações de público apoio o Cardeal Arcebispo do Rio, Dom Jaime de
Barros Câmara, Dom Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina, Dom
Oscar de Oliveira, Arcebispo de Mariana, Dom José Angelo Neto, Arcebispo
de Pouso Alegre, Dom Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos e Dom José
Mauricio da Rocha, Bispo de Bragança Paulista.
A TFP divulgou depois os nomes de ilustres
personalidades do mundo político, do Clero e das Forças Armadas que
assinaram o apelo. Entre esses subscritores de nosso apelo havia dezenove
desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo [197].
Quem também assinou nossas listas foi Pelé. E o fato
serviu para mais propaganda. Então, notícia nos jornais: “Pelé: eu
chuto o divórcio”.
8. Diante da pressão, governo retira o projeto
No dia 14 de junho de 1966, quando a campanha já
caminhava para as 600 mil assinaturas, os jornais deram a inesperada
notícia de que o governo mandara retirar o projeto de Código Civil [198].
No mesmo dia, os deputados Nelson Carneiro e Jose
Maria Ribeiro apresentaram como projeto de sua própria iniciativa o texto
que o Presidente da República retirara. E, na fundamentação de seu
requerimento reapresentando o projeto, Nelson Carneiro declarou em
expressos termos ter influído a fundo, para a retirada da propositura
governamental, o abaixo-assinado da TFP [199].
Passei então telegrama a todos os grupos do Brasil
dizendo que não interrompessem a campanha. E que deveríamos agora ir até
um milhão de assinaturas, e antes do um milhão não deveríamos nos dar por
contentes* [200].
* No dia 26 de
junho, foi publicado na Folha de S. Paulo o manifesto A TFP e a
investida divorcista no Brasil, assinado por Dr. Plinio e todo o
Conselho Nacional em que eram brevemente historiados esses últimos
episódios e enfatizada a necessidade de continuar a campanha.
Nesse meio tempo, uma surpresa bastante inesperada.
A Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), reunida no Rio de Janeiro, publicou no dia 17 de junho
três comunicados simultâneos.
Um dos comunicados visava, de maneira severa e
taxativa, a TFP.
Em doloroso contraste, os outros dois se referiam de
modo ameno e benigno ao projeto de Código que sub-repticiamente introduzia
o divórcio em nossa legislação, e ao MEB (Movimento de Educação de Base),
por muitos havido como comunistizante.
Ora, era indubitável que a Comissão Central teve
grande empenho em que o documento contra a TFP saísse no momento em que
saiu, isto é, enquanto ia caminhando para o zênite a campanha
antidivorcista.
Com efeito, segundo os estatutos da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, as deliberações desta só podem ser tomadas
por dois terços dos votos presentes na assembléia geral. Só em casos muito
urgentes é que a Comissão Central pode manifestar-se em nome da assembléia
geral sem a consultar [201]
Era um fato paradoxal: sermos censurados pela
Comissão Central da CNBB durante uma campanha que desenvolvíamos contra o
divórcio! E esta dava em seu documento razões confusas que ninguém
entendia bem [202].
Inexplicável, também, é que, no dia 17 de junho, em
seu conhecido e popular programa radiofônico A Voz do Pastor, tenha
o ilustre Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara,
declarado a respeito da mesma campanha: "Chegou-nos às mãos, um ‘Apelo’
formulado pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade. Perguntaram-nos: Podemos assinar esse apelo? — Pois não!
Damos-lhe inteira cobertura nesta Arquidiocese. É preciso que as
Autoridades Federais saibam que o povo da Guanabara, cariocas de
nascimento ou aqui residentes, repudiam o divórcio e o aviltamento da
família brasileira, desejando-a respeitadora da Lei de Deus" (Diário
de Notícias, Rio, 18/6/66).
* * *
Escrevi, em data de 24 de junho, ao Sr. Cardeal Dom
Agnelo Rossi, então presidente da Comissão Central da CNBB, uma carta,
entregue por portador no Palácio Pio XII, na qual externava toda a
surpresa e toda a dor que nos ia na alma em razão do ocorrido.
Esta mesma missiva acrescentava achar-se o Conselho
Nacional da TFP na ignorância dos fatos em que se teria baseado a Comissão
Central para publicar o comunicado contra a Sociedade. Mas adiantava que,
comprovados eventualmente tais fatos, o Conselho não teria dúvida em por
eles pedir desculpas à Comissão Central, bem como em tomar todas as
providências para que eles não se repetissem.
Ao mesmo tempo, o signatário da carta afirmava, em
nome do Conselho Nacional e no seu próprio, não estar resolvido a defender
através da imprensa a TFP, e considerava ainda a hipótese de que um
esclarecimento privado pudesse evitar tal extremo.
Essa missiva não obteve resposta da parte de seu
ilustre destinatário.
* * *
Diante de uma campanha contra esta Sociedade que se
foi agravando mais e mais do alto de certos púlpitos e nos tapaventos de
certas igrejas, órgãos católicos iam reproduzindo, com crescente
insistência, comentários injustos e rancorosos para com a TFP, a respeito
do comunicado da Comissão Central.
Notadamente, O São Paulo, órgão oficial da
Arquidiocese paulopolitana, publicado sob a direção do Sr. Bispo Auxiliar
Dom José Lafayette Ferreira Álvares [203],
estampou, na sua edição de 26 de junho, uma notícia insinuando
caluniosamente que a medida da Comissão Central contra a TFP se devia ao
fato de haver esta última lançado um comunicado contrário ao Sagrado
Concílio Ecumênico Vaticano II, tachando de esquerdistas suas últimas
decisões.
Tratava-se de uma calúnia, no sentido mais estrito da
palavra. O comunicado aludido não existia, nem a TFP jamais cogitou de
publicar qualquer documento neste sentido.
Fac símile
parcial da publicação da "Filial Mensagem" em O Estado de S. Paulo
[clique sobre o mesmo para aceder á reprodução completa]
Desde logo inteirado da informação caluniosa o Emmo.
Sr. Cardeal Arcebispo de São Paulo, não foi ela retificada.
Todos esses fatos, somando-se gradualmente uns aos
outros, e esgotados os recursos para evitar de publicar a sua defesa [204],
redigi um documento que ficou conhecido entre nós como a “Filial
Mensagem” [205].
Este documento,
que tomava uma página inteira de O Estado de S. Paulo (edição de
26/7/66), representou a primeira atitude oficial da TFP enquanto tal
mostrando que a autoridade eclesiástica estava caminhando resvaladeiro
abaixo. De maneira que teve um caráter simbólico em nossa história [206].
Punha os pingos nos “is”, pois mostrava todas as incongruências do
Episcopado [207]
na atitude que havia tomado.
Se todos os antidivorcistas do Brasil combatessem o
divórcio segundo o diapasão do comunicado da Comissão Central, era de se
temer que a indissolubilidade do vínculo conjugal estaria vivendo seus
últimos dias no Brasil.
No momento em que o comunicado saiu, a TFP já estava
escolhida, àquela altura, por meio milhão de brasileiros como
porta-bandeira da causa antidivorcista. Era impossível querer jogar por
terra o porta-bandeira sem que ao mesmo tempo por terra caísse a própria
bandeira [208].
A CNBB, diante desse comunicado, ficou quieta [209].
Lembro-me de que no dia da publicação desse
comunicado, mandamos colocar gente nossa nos quatro cantos do Viaduto do
Chá, fazendo um inquérito junto ao público. Quase todo mundo que passava
tinha lido e era favorável. Foi um resultado estrondoso [210].
* * *
Que eu me lembre, foi um dos documentos mais difíceis
que eu tive de redigir, pois era uma tomada de posição ante a autoridade
eclesiástica. E a coisa mais difícil do mundo é polemizar de joelhos!
A Igreja é nossa mãe, e nós não podemos, não devemos
e não queremos dizer aos representantes dela a não ser o estritamente
indispensável, e usando a linguagem respeitosa e digna com que um filho
fala à sua mãe, mesmo quando se está profundamente decepcionado, triste e
portanto arredio em relação a seus representantes, por se sentir não
querido e exilado do afeto deles [211].
A TFP comemora sua vitória contra o divórcio (agosto de 1966), com
desfile no Viaduto do Chá
Não obstante esse comunicado da Comissão Central da
CNBB, a campanha continuou triunfante. No dia 25 de julho atingimos um
milhão de assinaturas e a campanha chegara a um auge.
No dia 12 de agosto de 1966 a TFP realizou enfim a
passeata da vitória.
O trajeto foi pequeno: atravessou o Viaduto do Chá em
plena hora de trabalho. Saímos do Teatro Municipal e caminhamos em direção
à Praça do Patriarca, na outra extremidade do Viaduto, ocupando boa parte
da faixa central. Um carro com alto-falante tocava a marcha Pompa e
circunstância [212]
e toda a TFP em filas, num desfile solene. O ato encerrou-se na Praça do
Patriarca, onde cantamos o Hino Nacional.
No dia 14, fizemos nova manifestação diante do
Monumento do Ipiranga, lugar onde foi proclamada a independência do
Brasil.
Um longo cortejo de automóveis partindo de nossa sede
da rua Pará seguiu até o local. Ali assinamos uma prece a Nossa Senhora
Aparecida, pedindo a Ela que não permitisse que o divórcio entrasse no
Brasil*.
* Esta prece
terminava assim:
“Neste local em
que o Brasil, logo ao nascer como nação, recebeu de Vós, ó Mãe de Deus, o
primeiro sorriso e a primeira bênção, nós Vos apresentamos uma súplica
humilde e filial.
"Preservai e
incrementai, Senhora, a Tradição santa que recebemos de nossos maiores.
Mantende pujante o instituto da propriedade, no exercício largo e ufano de
sua função social. Livrai dos totalitarismos o Brasil. E sobretudo, ó
Rainha onipotente, o que hoje especialmente Vos pedimos é que jamais o
divórcio se implante — explícita ou sorrateiramente — na Pátria
brasileira”.
No dia 28 de agosto, dei uma entrevista enfatizando
que o milhão de assinaturas coletadas pela TFP representava um verdadeiro
plebiscito não escrito. Foi uma campanha de todo em todo vitoriosa*.
* Foram feitas
campanhas em 142 cidades, com a mobilização de 450 sócios e cooperadores
da TFP atuando como coletores. Foi atingido o total de 1.042.359
assinaturas, devidamente excluídas da contagem as assinaturas duvidosas.
Formava uma pilha de papéis que ia, na sede da rua Pará, do chão até o
teto!
O Prof.
Plinio Corrêa de Oliveira e o Conselho Nacional da TFP no Monumento
do Ipiranga, depois de terem firmado a súplica a Nossa Senhora
Aparecida
[N.Site.: "Catolicismo" de Setembro
de 1966 publicou uma substancial reportagem sobre o encerramento da
Campanha, com o integral da Prece a Nossa Senhora Aparecida.
Tal matéria pode ser vista aqui.
Vídeo
histórico do desfile no Viaduto do Chá (São Paulo) e da manifestação
no Monumento do Ipiranga, em comemoração
aos mais de 1.000.000 de assinaturas coletadas contra o divórcio
11. Castelo Branco recebe o Conselho Nacional da TFP
Compraz-me ressaltar a grandeza de alma de que mais
tarde deu provas o então Presidente Castelo Branco.
O projeto de Código Civil fora apresentado ao
Congresso por ele. Era compreensível que se sentisse magoado com a
vitoriosa atuação da TFP [213].
Depois dessa campanha, eu havia escrito a ele uma
carta muito amável, mas protestando contra uma medida dele que não tinha
nada a ver com o divórcio: o projeto de Lei de Imprensa.
O fato é que, estando ele em visita a São Paulo,
convocou para uma audiência o Conselho Nacional da TFP, a fim de exprimir
o agrado com que recebera essa nossa carta com reparos ao projeto*
* Esta visita do
Chefe de Estado deu-se no dia 25 de janeiro de 1967. A carta ao Presidente
fora enviada no dia 13 do mesmo mês. Nela Dr. Plinio e o Conselho Nacional
da TFP pediam ao Presidente que a Lei de Imprensa naquele momento em
debate na Câmara passasse “por substanciais modificações de sorte que,
reprimindo embora a licença, proporcione aos órgãos de difusão escrita e
falada a liberdade necessária para sua atuação”, acrescentando que
"cumpre pois não coarctar a legítima expressão dela, mas antes tutelá-la
zelosamente” (cfr. Catolicismo n° 196-197, abril/maio de 1967).
Castello Branco quis manifestar pessoalmente ao Prof. Plinio Corrêa
de Oliveira sua satisfação pela carta “fidalga e amável” que dele
recebera
Lembro-me até hoje do dia em que me chegou esse
convite de Castelo Branco.
Eu estava jantando em casa com Mamãe [214]
e veio minha empregada Olga, uma lituana, aliás muito dedicada — ela tinha
um tom de voz muito característico — dizendo: “Chefe da Casa Militar da
Presidência quer falar”.
De início pensei que fosse uma brincadeira.
Fui ao telefone e era realmente o Chefe da Casa
Militar dizendo que o Presidente Castelo Branco queria falar comigo e com
a diretoria da TFP.
Fomos então alguns do Conselho Nacional e eu. A
audiência deu-se no Palácio Campos Elíseos [215].
Chegamos à hora marcada, não tardamos em ser
introduzidos.
Ele foi muito amável e disse que [216]
ao vir a São Paulo se lembrara de ter recebido da TFP uma carta muito
“fidalga e amável” (expressão textual dele), que o levou a ter [217]
vontade de nos conhecer pessoalmente. Daí ter-nos convidado para aquele
encontro a fim de nos cumprimentar.
Fomos também muito amáveis, conversamos um pouco,
depois cumprimentos e pronto. Era um modo de indicar o respeito e a
consideração dele para com nossa campanha, como quem diz: “Não me
queiram mal, aquilo já está enterrado, vamos continuar bons amigos”.
Tiramos fotografia com ele, espalhada depois por
nosso serviço de imprensa por todos os jornais [218].
1. Governo democrata cristão expulsa Dr. Fábio do Chile
Voltemos para o fio de nossa narrativa.
Dr. Fábio
Xavier da Silveira
Depois de nossa campanha contra o divórcio de 1966,
estivemos às voltas com a divulgação do momentoso livro de nosso querido e
saudoso Dr. Fabio Xavier da Silveira, Frei, o Kerensky chileno.
Fábio, membro jovem e dinâmico do Conselho Nacional
da TFP, interessou-se a fundo pela luta contra a Reforma Agrária
socialista e confiscatória, e participou da comissão de peritos que Dom
Sigaud, Dom Mayer, Mendonça de Freitas e eu consultamos para a elaboração
da Declaração do Morro Alto, isto é, do programa positivo de
Reforma Agrária (e, pois, anti-socialista e anticonfiscatória) que a TFP
adotou por seu.
Levado pelo interesse da matéria, Fábio Xavier da
Silveira foi ao Chile estudar a Reforma Agrária.
Estava ele em meio a suas indagações quando o governo
de Frei, de modo arbitrário, deu a nosso patrício 48 horas para abandonar
o país. Nada dissera ou fizera o diretor da TFP, que merecesse a medida
brutal*.
* O que se passou
ali foi o seguinte: a convite de agricultores chilenos de Temuco, Dr.
Fábio pronunciou, no dia 29 de agosto de 1966, uma palestra sobre a
Reforma Agrária no Brasil do tempo de João Goulart, conferência esta
rigorosamente circunscrita à realidade brasileira.
Entretanto, o
governo demo-cristão chileno considerou que falar no Chile, em 1966, sobre
os tempos que antecederam a 1964 no Brasil, era uma intervenção indireta
nos problemas internos da nação andina.
Antes de se retirar
do Chile, Dr. Fábio pediu uma audiência ao Ministro Bernardo Leighton, do
Interior, a quem apresentou o mais enérgico protesto contra a medida
violenta e arbitrária de que estava sendo vítima (cfr. Catolicismo
n° 190, outubro de 1966).
2. Observações acumuladas por Dr. Fábio
Mas dir-se-ia que a polícia de Frei usava a
telepatia. Pois é bem certo que no íntimo da alma o visitante acumulava
observações e reflexões contrárias à política social e econômica de Frei.
Chegado ao Brasil, confiou ele ao papel suas
impressões. E daí se originou um livro. Frei, o Kerensky chileno
foi o título da obra.
O autor sustentava que Frei estava realizando uma
obra análoga à de Kerensky na Rússia [219].
Não é o caso de provar aqui o inteiro acerto da tese
sustentada por Fábio em seu best-seller. Aliás, a prova foi feita
pelos fatos, a tal ponto que quando Allende substituiu a Frei na suprema
magistratura, não faltou quem chamasse -
e merecidamente - de profética a
clarividência do jovem autor brasileiro [220].
Frei passou por isto para a História como o Kerensky
chileno. Serviu de ferrete para assim lhe marcar merecidamente a fronte o
livro de Fábio* [221].
* Atestou-o de modo
insuspeito Carlos Altamirano, secretário geral do Partido Socialista
chileno e um dos maiores suportes de Allende no governo. Em entrevista à
jornalista P. Politzer, referindo-se às relações entre Frei e Allende,
declarou ele:
“Penso que a Frei
o impactou muito brutalmente o livro que lançaram no Brasil: ‘Frei, o
Kerensky chileno’. Foi a gota que fez transbordar o copo. Nesta época
quebrou-se de forma definitiva uma larga e boa relação entre ambos
[entre Frei e Allende]” (Patricia Politzer, Altamirano, p. 59-60,
apud Juan Gonzalo Larrain Campbell, Catolicismo, agosto de
1997).
No mesmo sentido
comentava, com fino senso psicológico e espírito francês, a revista
Paris Match (edição de 22/9/73):
“Puseram-lhe uma
etiqueta terrível: Kerensky. Ela lhe causa uma cólera sombria, pois se
pergunta no fundo de si mesmo se não é verdadeira”.
3. Elaboração do livro e idéia do título
Assisti de perto à elaboração do brilhante trabalho.
Profundo admirador e conhecedor de todos os povos
ibero-americanos, o jovem diretor da TFP tinha, no mais alto grau, a
consciência de que todos os povos latinos deste continente formam uma só
família, unida pela Fé, pela tradição, pela raça e pela comunidade de uma
mesma missão histórica.
As divergências entre as nações nascidas da gloriosa
Ibéria, ele as via como secundárias em face desta majestosa unidade
fundamental. E a sobrevivência de tais divergências no século XX lhe
parecia um verdadeiro anacronismo.
Isto o levava a considerar, com verdadeiro amor, as
perspectivas de ascensão e os problemas de cada país irmão.
E o persuadia de que nenhum problema grave poderia
ameaçar a qualquer deles sem afetar todos os demais [222].
Eu não fui o autor do livro, e sim Fábio, que morreu
tragicamente, alguns anos depois, de um doloroso câncer. E lhe dei uma
certa colaboração e orientação. Mas a colheita dos dados no Chile, fê-la
ele, e muito inteligentemente [223].
Eu evidentemente o ajudei, propus o esquema. O Fábio
o encheu com aquela verve só dele e fez um livro de atualidade muito bom [224].
Foi, isto sim, mediante uma sugestão minha que o
livro ficou se chamando Frei, o Kerensky chileno [225].
Antes de fazer essa sugestão de título, hesitei
muito. Eu queria deixar a escolha do título a critério dele, é claro. E em
determinado momento ele quase optou pela rejeição do título sugerido.
Eu tive um aperto de alma com isto e pensei: “Se
for rejeitado, é uma pena, mas eu não posso impor ao livro dele um título
que ele não sinta adequado”.
Mas depois eu o vi lentamente refazer o caminho e
optar pelo título Kerensky. E tive uma alegria por causa disso [226].
O fato é que Frei ficou com esse carimbo na fronte [227].
Até morrer era apontado como sendo o Kerensky chileno, em todas as
rodas políticas e na opinião pública do Chile, em geral* [228].
* Neste sentido, é
expressivo o comentário do escritor mexicano esquerdista José Rodriguez
Elizondo:
“Por conhecer em
profundidade a personalidade de Frei, a direita chilena ia obter melhores
dividendos de seus ataques. Um só toque lhe bastaria para afetá-lo a fundo
[...][a direita] fazia publicar e distribuía por todo o
continente um livro-denúncia intitulado ‘Frei, o Kerensky chileno’.
“No livro se lhe
acusava, desde o título, de se ter convertido no aprendiz de feiticeiro
que havia desatado as forças da revolução bolchevista numa posição chave
da América Latina.
“Tocava, com
isso, o ponto mais sensível de quem se havia apresentado — juntamente com
seu partido — como a verdadeira alternativa frente à revolução socialista,
que deveria servir de exemplo para o conjunto das nações do chamado
terceiro mundo” (José Rodriguez Elizondo, Introducción al facismo
Chileno, Editorial Ayuso S.A., México, 1976, 1ª ed., p. 62, apud
Juan Gonzalo Larrain Campbell, Catolicismo, agosto de 1997).
* * *
O modo de ser de Fábio contribuiu largamente para o
êxito de sua atuação. Para isto, era admiravelmente apta a sua
personalidade.
Quem não o conheceu pessoalmente, dificilmente terá
uma idéia do que era seu dom de atrair. Inteligente, culto, dinâmico,
sagaz e cheio de tato, Fábio acrescentava a essas qualidades um certo
charme pessoal indefinível, a que era difícil resistir.
Sua vivacidade extraordinária, a amenidade de seu
trato, seu espírito incessantemente jovial, sua verve originalíssima
faziam de sua conversa uma verdadeira caixa de surpresas, da qual saíam,
quando menos se esperava, observações penetrantes, chistes brilhantes,
lances de alma generosos e golpes polêmicos dos mais rijos [229].
É impossível não sentir saudades dele, quando a gente
trata disto.
Eu quis dele que o Dr. Castilho revisse “Frei, o
Kerensky chileno”.
Ele disse que teve a impressão de que Dr. Castilho
cortou a pele dele. Foram para a Fazenda do Morro Alto, em Amparo, para um
simpósio lixando o Frei, o Kerensky chileno. Depois Dr. Fabio
reconheceu que foi de uma enorme vantagem essa revisão [230].
4. Governo Frei sente-se “ameaçado”: livro é proibido no Chile
O livro repercutiu intensamente no Chile, onde foi
lido e comentado em todos os ambientes culturais e políticos [231].
O jornal oficioso democristão La Nación, o jornal comunista El
Siglo, os jornais socialistas Clarín, Ultima Hora e
La Tarde, todos se uniram para defender o regime “ameaçado”.
O próprio governo Frei sentiu em tal grau o alcance
do livro, que lhe proibiu a circulação.
Foi inútil. Pelo correio, os exemplares chegavam de
Buenos Aires aos milhares. O governo confiscou então os exemplares que
entravam*.
* A notícia dessa
proibição foi bombasticamente divulgada pela imprensa de São Paulo e do
Rio no dia 27 de outubro de 1967. No dia seguinte, 28 de outubro, o
Serviço de Imprensa da TFP distribui despacho em que noticia o protesto da
TFP contra essa medida ditatorial (cfr. Catolicismo n° 203,
novembro de 1967).
A curiosidade dos chilenos a respeito de Frei, o
Kerensky chileno era tal, que o livro circulava largamente de mão em
mão, solicitado com sofreguidão e lido com delícias por um extenso público [232].
Esta
sugestiva fotografia, com que a revista de Santiago "7 Dias" (da
editora Zig-Zag, controlada pelo governo) ilustra um artigo
intitulado "O livro proibido", exprime bem o risco que há em ler no
Chile o livro "Frei, o Kerensky chileno", proibido pela ditadura
demo-cristã, ao mesmo tempo que o pouco êxito dos esforços desta
para impedir-lhe a circulação [ "Catolicismo" nº 205, janeiro de
1968].
Organizou-se então, naquele país, um verdadeiro
"câmbio negro" para a compra da obra aos numerosos turistas chilenos que,
vindos de Buenos Aires, traziam em suas bagagens a edição castelhana
promovida pela TFP argentina* [233].
* A revista chilena
7 Dias, por exemplo, publicou um clichê em três quartos de página,
em que figura uma pessoa lendo uma edição argentina da obra, cobrindo o
rosto como quem não quer ser identificado. E seu colunista, Andrés Cruz
Arjona, cita o comentário de um amigo que lhe havia conseguido o livro:
"Não entendo a
razão pela qual o governo pôs esta edição no 'Index', proibindo sua
leitura aos chilenos. Tal medida, como não podia deixar de acontecer,
transformou-se na mais eficaz propaganda para a referida publicação, que
hoje circula clandestina mas profusamente. Os possuidores de cada um dos
exemplares que lograram escapar ao confisco tiveram que fazer lista de
precedência entre seus parentes e amigos para propiciar-lhes a leitura do
livro em rigorosa ordem de inscrição" (cfr. Catolicismo n° 204,
de dezembro de 1967; e n° 205, de janeiro de 1968).
* * *
No aeroporto de Buenos Aires, o sr. Krauss,
subsecretário do Ministério do Interior do Chile, perdeu a cabeça e exigiu
da polícia a prisão de jovens da TFP local, que vendiam o livro. É claro
que não foi atendido! A imprensa situacionista chegou a falar em incidente
diplomático.
Em suma, a polêmica ferveu, envolvendo grandes órgãos
e altos personagens [234].
Ao pé da letra, o livro abalara o Chile.
Não foi só. Posto à venda em campanha de rua por
sócios e militantes das TFPs ou entidades congêneres em quase todos os
outros países sul-americanos, alcançou Frei, o Kerensky chileno
rápido e fulgurante sucesso*.
* A obra foi
publicada no Brasil (quatro edições), na Argentina (seis edições), na
Venezuela (três edições, das quais uma no jornal La Verdad), na
Colômbia, no Equador e por fim na Itália, num total de dezesseis edições,
128,8 mil exemplares.
O livro de Dr. Fábio, desfazendo o mito pedecista,
concorreu notavelmente para que o rumo histórico do continente passasse a
demandar outros horizontes [235].
5. Itamaraty sofre pressões: governo proíbe campanha também no Brasil
Um fato muito significativo se deu quando lançamos e
começamos a difundir Frei, o Kerensky chileno no Brasil.
A certa altura da campanha, recebi um telefonema do
Itamaraty dizendo que, da parte do Ministro do Exterior e com o aval do
Presidente da República, havia ordem de nós cessarmos a nossa campanha.
Eu disse que queria saber qual era a razão dessa
proibição.
Ele disse: “É uma deliberação do senhor Presidente
da República”.
Eu disse: “Mas eu posso saber qual é o fundamento
da opinião do senhor Presidente da República?”
Disse ele: “Nós estamos em regime de ditadura
militar e portanto o senhor Presidente da República não tem que dar ao Sr.
satisfações”.
Eu disse: “Mas faço notar ao senhor Presidente da
República, por seu intermédio, que essa ditadura foi implantada no Brasil
para combater o comunismo; nós saímos às ruas para combater o comunismo;
nós recebemos uma repreensão, uma limitação de nossa atitude porque somos
anticomunistas. Haverá uma contradição mais forte do que um regime
ditatorial anticomunista que proíbe a propaganda anticomunista? Eu não
compreendo isto”.
Ele respondeu: “Se o Sr. não compreende, eu
lamento, mas isto é assim. O Sr. deve cessar a propaganda sob as penas da
lei”.
Eu desliguei o telefone mas não pude fazer nada [236].
A TFP acatou, não sem protesto, a insólita decisão de nossas autoridades,
que assim aceitavam uma injunção descabida do governo chileno
demo-cristão*.
* Essa pressão
diplomática do governo chileno “democrata-cristão” havia sido exercida
através de seu embaixador no Brasil, Héctor Correa Letelier. Em
Catolicismo n° 201, de setembro de 1967, é publicada na íntegra — e
cabalmente refutada — uma carta sua à Redação do jornal, datada de 7/8/67.
Tais pressões
deixavam a nu o mal-estar causado pelas denúncias contidas no livro
Frei, o Kerensky chileno sobre o papel de Eduardo Frei na preparação
do Chile para a ascensão do comunismo, o que se deu três anos depois, com
a ascensão do marxista Allende.
Essa proibição veio quando já se haviam escoado vinte
e cinco mil exemplares da obra aqui no Brasil.
6. Tentativas de proibição por toda a América do Sul
Em outras nações latino-americanas, a diplomacia
chilena tentou igualmente, sem êxito, criar obstáculos à campanha*.
* Na Argentina, o
embaixador chileno Hernán Videla Lira compareceu à chancelaria para
manifestar a “inquietude do governo” chileno pela venda do livro em
Buenos Aires (cfr. La Prensa, Buenos Aires, 7/3/68 e La Tarde,
Santiago, 8/3/68).
No Peru, o
embaixador Horacio Walker Larrain polemizou com um colunista de La
Prensa, de Lima (23/11/67), que havia elogiado a obra.
Em Caracas, o
encarregado de Negócios do Chile enviou cartas a La Verdad (10 e
17/11/67) para protestar contra o artigo O Índex da Revolução em
Liberdade, assinado por seu diretor.
Sobre a repercussão do livro quando da subida do
marxista Allende ao Poder, tratarei adiante [237].
Durante mais de 20 anos, fui colaborador da
Folha
de S. Paulo, que é o cotidiano de maior circulação em São Paulo.
Os textos dos numerosíssimos artigos que escrevi para
esse jornal são os mais arrojadamente católicos, mais arrojadamente
contra-revolucionários que se possa imaginar* [238].
Com este
artigo o Prof. Plinio iniciou a colaboração com a Folha de S.Paulo,
que se estenderia até 1990
Esses artigos na
Folha nasceram de um modo
totalmente inesperado.
Em certo dia de 1967, antes de eu adoecer com a crise
de diabetes que me acometeu no final desse ano, Dr. Plinio Xavier foi
falar com Otávio Frias [239],
que era o diretor da Folha.
No meio da conversa, Frias disse:
“Vocês têm uma
voz que merece ser ouvida, e portanto vou abrir o meu jornal para vocês.
Você pode pedir ao Dr. Plinio para ele publicar um artigo semanal aqui?”
Para nós foi um espanto enorme, porque até aquela
ocasião era dificílimo conseguir qualquer publicação em qualquer meio de
comunicação social. Todas as publicações eram a peso de ouro. E de
repente, o diretor de um jornal da importância da
Folha
oferecia-nos uma coluna [240].
E notem que foi oferecida, não foi pedida [241].
Pouco depois, em dezembro de 1967, fui acometido de
violenta crise de diabetes [242].
Adoeci gravemente e passei mais ou menos seis meses fora de combate.
Quando me curei, achei que era tão improvável aquele oferecimento, que nem
pensei mais no caso.
Alguns meses depois, Dr. Plinio Xavier teve de ir de
novo à Folha. E o Frias disse:
“Eu ofereci uma coluna ao Dr.
Plinio Corrêa de Oliveira. Ele displicentemente deixou essa coluna rolar.
Ele que escreva, que eu a todo momento estou com a coluna aberta”.
Como eu ainda estava com a saúde mais ou menos fraca,
tive receio de assumir o compromisso. Então, tentei colocar outro membro
da TFP escrevendo em meu lugar.
O Frias, estando com Dr. Plinio Xavier, foi taxativo:
“Eu quero a colaboração do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira e não de
outro. Portanto, ou sai o artigo dele ou não sai nada”.
Eu nunca tinha visto uma coisa dessas na vida. E
então comecei a escrever eu mesmo.
Eu tinha dois caminhos a seguir em matéria de artigos
na Folha.
Um caminho seria fazer colaborações muito prudentes,
que não desagradassem a ninguém, para evitar reclamações. Não seria melhor
publicar artigos “laranja”? Do ponto de vista puramente humano, terreno,
prudencial, teria sido melhor.
Mas o homem não é feito apenas de raciocínios
práticos. Há uma porção de coisas que se movem na alma dele, às quais se
deve dar atenção.
Se eu optasse por escrever artigo que não fosse
categórico, lutador e peremptório em nossa doutrina, eu teria uma sensação
indefinível de estar me traindo a mim mesmo.
Coisa muito pior, eu teria a sensação de estar
traindo a nossa causa e a nossa doutrina, de estar praticando uma ação
grave e categoricamente ilícita. Eu teria uma impressão, difícil de
definir, de que eu estaria agindo contra os desígnios da Providência, que,
de forma indefinida — como às vezes é a voz da Providência — age no
interior de uma pessoa e que me recomendava coragem e o estilo
espadachim, custasse o que custasse.
De maneira que eu me joguei em artigos polêmicos. E
escrevi de tudo e fiz de tudo.
Nossa Senhora abençoou essa estratégia
antiestratégica e nos proporcionou anos de batalhas contínuas em que, a
bem dizer, não houve um artigo que não fosse feito direta e rotundamente
contra o adversário ideológico, e pisando-lhe gravemente os pontos mais
doloridos.
O que eu pretendia que o leitor de um artigo da
Folha pensasse?
Queria que ele visse a TFP antes de tudo muito clara
no que dizia. E que, tendo um mínimo de cultura proporcionada ao artigo, o
entendesse.
Quer dizer, o primeiro objetivo foi a clareza.
Clareza em dois sentidos da palavra: não só facilidade de entender, mas em
expressar claramente o que eu penso. Eu queria que nos artigos ficasse
patente tudo quanto eu penso.
Em segundo lugar, lógica, de maneira que os leitores
compreendessem que naquilo que eu escrevia havia um nexo, um fio lógico
que era coerente. Não era um pensamento divagando a esmo, mas concatenado.
Em terceiro lugar, profundidade: o tema abordado,
embora nos limites de um artigo de jornal, ia até o fundo da questão e não
era tratado superficialmente.
E em quarto lugar, probidade: nunca afirmar algo que
não fosse inteiramente real; nunca dar um argumento que forçasse qualquer
coisa; nunca lançar uma acusação que fosse além do estritamente
demonstrável. Dessa forma, procurar comunicar a ideia de uma honestidade
rutilante, de alguém que defende uma causa bastante santa para não
necessitar de nenhum truque, de nenhum ardil para persuadir e para
arrastar.
4. Vivacidade unida à elevação de linguagem
Quais as coisas que eu procurava evitar nos artigos?
Como os artigos representavam a Tradição, eu tinha o
cuidado de não parecerem velheiras, e tratava continuamente de temas
atuais.
Além disso, por fidelidade a nossos princípios, o
artigo tinha que ter uma linguagem elevada, mas ao mesmo tempo não
pernóstica.
Pernosticismo seria, por exemplo, o caso de um
pregador que, ao falar de um pão produzido debaixo das cinzas, citado no
Antigo Testamento, tivesse empregado a expressão pão subcinerício.
Cinere é cinza. Pão subcinerício seria o que está por debaixo das
cinzas. Subcinerício é uma palavra correta, mas não faz parte da linguagem
comum. Isto eu chamo de pernosticismo. E isto eu devia evitar.
O jeito de dar atualidade era expor os temas como
quem conversa. Quer dizer, era preciso evitar aquele ar glacial que tem um
artigo que convida o sujeito a sair da vida para entrar no museu gélido
das idéias. Eu procurava portanto apresentar um modo de pensar lógico, o
mais tradicional possível, e um modo de expor correspondente à vitalidade
e ao desejo de vivacidade modernas.
5. Com os olhos postos na “intelligentsia”
Os artigos tomavam em consideração aquilo que se
chama a “intelligentsia”, quer dizer, a classe de pessoas que se
dedicam mais especialmente ao estudo, à vida intelectual, e cuja principal
ocupação não é a de exercer uma profissão para ganhar dinheiro, mas de
estudar e adquirir um alto grau de cultura, pelo menos em relação à
sociedade na qual eles vivem.
A que categorias profissionais correspondia isso na
sociedade brasileira em que vivíamos?
A um bom número de professores universitários, a
certo número de colaboradores de jornal, a certo número de pessoas muito
cultas das profissões liberais: advogados, médicos, engenheiros,
economistas e outros. Também a elementos do Clero, das Forças Armadas e
certos artistas.
A intelligentsia era portanto a classe
especialmente letrada de um país, mas que diretamente não tinha muita
repercussão junto ao público, mas sim junto aos homens influentes.
Quais eram esses homens influentes? Eram os homens
que alcançavam grande êxito na respectiva carreira. Estes ouviam os
letrados. E através deles os letrados influenciavam a marcha do País [243].
6. “Vocês remexem a opinião”
Quando, mais tarde, Dr. Plinio Xavier foi à Folha
levar o manifesto da Resistência à Ostpolitik do Vaticano para ser
publicado, o diretor da Folha que o atendeu disse: “A TFP morde
muito o público. Os artigos de Dr. Plinio na Folha têm uma repercussão de
uma média de 20 cartas por semana. Dessas 20, habitualmente 17 são contra
e 3 a favor”.
Depois acrescentou: “Vocês são uma minoria, mas
uma minoria que tem muitos simpatizantes. Vocês remexem a opinião. De
maneira que eu tenho contentamento em publicar as coisas de vocês” [244].
Por uma feliz coincidência, os artigos na
Folha
começaram quando estávamos fazendo, em 1968, uma campanha de grande
repercussão: o abaixo-assinado a Paulo VI pedindo medidas contra a
infiltração comunista na Igreja.
Do ponto de vista puramente estratégico da luta
contra a Revolução, a campanha contra essa infiltração comunista na Igreja
e contra o documento subversivo do padre belga Joseph Comblin era a mais
importante que nós tínhamos feito até então*.
* Este documento
ficou conhecido como o Documento Comblin. Seu título era: Notas
sobre o documento básico para a II Conferência Geral da CELAM.
A convite de Dom
Helder Câmara, assumiu o cargo de professor do Instituto Teológico do
Recife, onde escreveu seu tristemente famoso documento, o qual vazou na
imprensa e causou estupor no Brasil, por preconizar, como meios válidos
para fazer cair as estruturas sociais vigentes, a revolução na Igreja, a
subversão no País, a derrubada do governo, a dissolução das Forças
Armadas, a instituição de uma ditadura socialista férrea esteada em
tribunais de exceção e aparelhada para reduzir ao silêncio — pelo terror —
os descontentes.
Dom Helder Câmara,
questionado pela imprensa, declarou que "o documento enviado pelo Padre
Comblin, do Instituto de Teologia do Recife, é perfeitamente válido dentro
de um contexto dum estudo pessoal sobre o documento-base do CELAM",
fazendo a ressalva de não concordar "com todas as declarações nele
contidas" (cfr. O Estado de S. Paulo, 13/6/68, p. 4). Ora, quem
não concordava "com todas", concordava com algumas. E o documento
em seu todo era inteiramente inaceitável.
A título de exemplo,
eis alguns pontos desse programa subversivo:
- “Não basta
fazer leis. É preciso impô-las pela força. Para a arrancada, o poder será
autoritário e ditatorial. Não se pode fazer reformas radicais consultando
a maioria: que a maioria prefere ‘sombra e água fresca’, prefere evitar os
problemas”.
- “O poder deve
contar com a força. Qual será essa força? Às vezes poderá contar com as
forças armadas, outras vezes é necessário dissolvê-las. Às vezes será
necessário distribuir armas ao povo. Outras vezes bastará apelar ao
plebiscito em circunstâncias bem preparadas. Outras vezes o centro dos
meios de propaganda será suficiente. Em todo caso será necessário montar
um sistema repressivo: tribunais novos de exceção contra quem se opõe às
reformas. Os procedimentos ordinários da justiça são lentos demais. O
poder legislativo também não pode depender de assembléias deliberativas.”
- “O poder deve
neutralizar as forças de resistência: neutralização das forças armadas se
forem conservadoras; controle da imprensa, TV, rádio e outros meios de
difusão, censura das críticas destrutivas e reacionárias.”
- “... será
necessário fazer alianças, entrar em compromissos, ‘sujar as mãos pelas
alianças sujas‘, para os progressistas derrubarem o governo e conquistarem
o poder” (cfr. artigo O incólume, Folha de S. Paulo, 7
de dezembro de 1969).
Este sacerdote, cujo
pensamento merecia as mais enérgicas censuras de seus superiores
eclesiásticos, recebeu, pelo contrário, calorosos elogios do Arcebispo da
Arquidiocese em que trabalhava, Dom Helder Câmara, bem como de seu Bispo
Auxiliar, Dom José Lamartine Soares (cfr. REB — Revista Eclesiástica
Brasileira, setembro de 1972, p. 697).
2. Um pouco de história: de início, a esquerda católica camuflou sua
posição pró-comunista
É preciso relembrar que os precedentes históricos
dessa campanha vinham dos tempos de nossa batalha em torno do liturgicismo
e da Ação Católica.
Desde 1940, anos antes, portanto, da saída do meu
livro Em Defesa da Ação Católica, aquela corrente esquerdista, da
qual faziam parte padres, freiras, leigos e leigas, mas que era bafejada
ou pela simpatia ou pela ingenuidade de grande número de Bispos e padres
que não se diziam claramente da corrente, começaram a receber destes as
posições de mando no Movimento Católico. Enquanto isto, esses Bispos e
padres perseguiam asperamente o grupo do Legionário.
Nós sabíamos que essa corrente era esquerdista, e
analisando as tendências dela percebíamos que iam acabar dando numa
espécie de comunismo.
Sabíamos disso por conversas com eles e tirando
conclusões de coisas que estavam nas entrelinhas dos jornais e revistas
que eles publicavam. Eles diziam o que pensavam nas entrelinhas, porque
percebiam que o Brasil era muito anticomunista e perderiam muitas bases se
tomassem uma atitude claramente simpática ao comunismo.
A posição que então assumiam de público era apenas
vagamente esquerdista. Eles insistiam muito na idéia de apoio aos pobres,
o que de si é uma coisa excelente. Mas ao tratar do tema, usavam termos
demagógicos, atacando de forma destemperada e de uma maneira ambígua os
maus ricos.
* * *
A figura que mais se destacou nesse período, fundando
obras de caridade e fazendo discursos demagógicos foi um padre cearense
que havia sido muito integralista: Dom Helder Pessoa Câmara. Dizem mesmo
que ele foi ordenado trazendo por debaixo da batina a camisa verde.
Homem muito labioso, muito amável no contato com as
pessoas, tornou-se rapidamente o símbolo da esquerda católica no Brasil.
Era idolatrado por muitos da classe alta do Rio de Janeiro, mas também, em
alguma medida, por muitos da classe alta de São Paulo e de outros lugares
do Brasil.
Nós sabíamos que essas pessoas eram comunistizantes,
mas não tínhamos prova.
E assim as coisas foram se arrastando: eles falando,
e nós de boca mais ou menos calada, fazendo apenas umas insinuações
contra, tão veladas quanto era a propaganda deles; só poucos percebiam.
3. Na década de 1960, o arrancar de máscara
Em 1960, essa gente começou a fazer abertamente
propaganda comunista. Aí os burgueses conservadores (que nesse tempo eram
muito mais anticomunistas) começaram a tomar atitudes contra o Clero
esquerdista, mas em pequenas rodas.
De cá, de lá e de acolá se conversava a respeito, mas
com certa reserva, com certa consideração. O Clero tinha até então uma
vida moral ilibada, observava as regras do Direito Canônico, pregava a
doutrina ortodoxa, de maneira que se fazia respeitar. Era talvez a maior
potência do Brasil.
Todos os políticos tremiam diante de um dito do
Episcopado e a opinião pública acatava esse dito como indiscutível. Uma
palavra do Episcopado fechava a questão. Mais ainda, nos meios católicos,
a palavra de um simples vigário resolvia a questão.
Essa, de fato, devia ser a ordem normal das coisas.
As organizações têm suas autoridades, as autoridades têm um profundo
prestígio, e quando falam elas devem dirimir as questões.
Acontece que a ordem normal já não existia na Igreja.
Mas as autoridades tinham uma aparência de prestígio que lhes vinha do
tempo da ordem normal.
4. Momento ótimo para a denúncia do Clero esquerdista
Como quebrar esse tabu e mostrar a toda a opinião
pública brasileira que a situação havia mudado, e que havia autoridades
eclesiásticas pactuando com a propaganda criptocomunista ou comunista, de
um lado; e que, de outro lado, os outros de modo geral ficavam vegetando
na cadeira de balanço, de olhos fechados, sem tomar nenhuma posição? Num
Episcopado, naquele tempo de duzentos Bispos, vinte Bispos, quando muito,
tomavam atitude contra o perigo que se vinha delineando.
Ou a TFP escolheria o caminho de jamais denunciar
esse perigo, ou deveria aproveitar alguma ocasião em que o perigo pusesse
a cabeça fora da toca para dar-lhe um golpe.
Nós não poderíamos fazer nada de sério, em nenhum
sentido da palavra, sem lutar contra o Clero esquerdista. E precisávamos
surpreender esse Clero esquerdista na hora em que ele estivesse com a mão
no bolso do vizinho, quer dizer, em flagrante delito.
Essa ocasião boa veio quando O Estado de S. Paulo
publicou o famoso Documento Comblin já referido. E então resolvemos lançar
a campanha.
5. A Paulo VI: coíba a infiltração comunista dentro da Igreja
A campanha consistiu em um abaixo-assinado pedindo ao
Papa Paulo VI que interviesse coibindo a infiltração comunista dentro da
Igreja, dando como exemplo dessa infiltração o Documento Comblin [245].
Nossa idéia inicial era conseguir duzentas a
trezentas mil assinaturas, de maneira que ficasse provado que esse número
de brasileiros tinha percebido que havia comunismo no Clero, e por esta
forma arrancar a máscara do cripto-comunismo católico, esse enorme poderio
diante do qual todos os políticos tremiam.
Então, a campanha foi gizada com a idéia de expandir
esse abaixo-assinado pelo Brasil inteiro, já sabendo que viria um
contravapor tremendo. E, portanto, nós teríamos que agüentar firmemente
esse contravapor.
Se Dom Helder afastasse o padre, ele reconheceria que
havia nomeado um sacerdote subversivo para professor do Seminário.
Como ele não tinha por onde sair, três dias depois da
minha carta ser publicada, ele deu uma entrevista dizendo que ele não ia
responder à TFP. E ficou quieto.
Portanto, ele sabia da carta e sentiu-se apertado. E
quando lançamos a campanha, Dom Helder já estava meio comprometido.
No dia 25 de junho de 1968, o deputado Cunha Bueno,
de São Paulo, sem nos dizer, toma o nosso documento e o lê em discurso na
Câmara dos Deputados, fazendo ao mesmo tempo um elogio de nosso
pronunciamento. Isto fez o documento repercutir em todo o ambiente
político brasileiro.
Pouco antes, dia 23 de junho, Dom Mayer e Dom Sigaud
haviam escrito uma carta ao Cardeal Rossi, com cópia para todos os Bispos,
pedindo que as idéias do Padre Comblin fossem expurgadas dos meios
católicos. Essa carta foi publicada no dia 30 de junho. Era uma pressão
feita pelos dois Bispos, um modo de apoiar a nossa atitude.
O Cardeal Rossi, no dia 9 de julho, replicou pela
imprensa, declarando que o Documento Comblin não era documento oficial da
Igreja e portanto não havia razão para a Hierarquia se pronunciar sobre
tais idéias.
Ainda no dia 23 de junho inicia-se a distribuição da
minha carta a Dom Helder nas saídas de igrejas de São Paulo, bem como de
outras capitais e cidades onde havia núcleos da TFP. As repercussões
colhidas foram todas muito boas*.
* Um dos slogans
dessa distribuição era: “Veneramos o Clero, mas não queremos padres
subversivos”. Tal slogan virou refrão na imprensa brasileira da época,
e foi repetido, por exemplo, por Ibraim Sued, conhecido colunista social
do jornal O Globo, do Rio.
No dia 7 de julho, o Padre Comblin fez afinal um
pronunciamento. A saída que encontrou foi dizer que o documento não era
escrito para o público, mas só para especialistas.
Enquanto íamos respondendo pelos jornais aos ataques
dos esquerdistas, organizávamo-nos internamente para sair às ruas,
estudando a distribuição de bancas em grupos, dando instruções.
No dia 17 de julho de 1968, fomos todos para a Praça
do Patriarca, onde foi deflagrada a campanha de abaixo-assinado na qual
ninguém pensava.
Já no primeiro dia, foram coletadas 80 mil
assinaturas, a tal ponto era grande a solidariedade popular com a nossa
posição. No dia seguinte, 18 de julho, os jornais publicaram o texto da
nossa mensagem a Paulo VI.
* * *
Cooperadores
da TFP brasileira em campanha. A Esquerda não assistiu impassível à
maré montante do abaixo-assinado. Registraram-se nada menos que 829
ocorrências, entre agressões, insultos e ameaças. Desses atos de
hostilidade, 396 foram praticados ou açulados por Eclesiásticos ou
Religiosas
o dia 20 de julho, Dom Helder lança, numa reunião da
CNBB, um movimento chamado Pressão Moral Libertadora, tentando
fazer-se reeleger secretário geral daquele organismo episcopal *. Mas ele
estava tão desprestigiado que conseguiu apenas 7 votos. Foi assim
derrotado na própria reunião do Episcopado, devido ao susto que o
Episcopado tivera com as atitudes pró-comunistas dele, agravadas pelo
escândalo dessa campanha pública. E resolveram não reelegê-lo.
* Dom Helder
havia sido secretário geral da CNBB desde sua fundação, em 1952, até 1964.
Foi substituído nesta data por Dom José Gonçalves Costa, então Bispo
Auxiliar do Cardeal Dom Jaime Câmara, que exerceu o cargo até a eleição de
1968, na qual foi eleito Dom Aloisio Lorscheider, então Bispo de Santo
Ângelo (RS).
Dom Helder perdeu, portanto, uma posição chave: ele,
que era o verdadeiro chefe da CNBB, nessa ocasião ficou confinado a ser
apenas Arcebispo de Olinda e Recife e não mais o mentor de todo o
Episcopado brasileiro.
* * *
Nesse mesmo dia, Dª Yolanda Costa e Silva, primeira
dama do País, assinou o nosso documento. Nós publicamos naturalmente a
notícia nos jornais. Todos os dias apareciam notícias de personagens
importantes que em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza
e outras cidades tinham também assinado.
* * *
No dia 21 de julho, a campanha se estende para o
Chile. No dia 22, era a vez da Argentina.
* * *
Aspectos da
propaganda no Rio de Janeiro
No dia 23 de julho, por moção de Dom Mayer e Dom
Sigaud, 19 Arcebispos e Bispos escrevem uma carta ao presidente Costa e
Silva dizendo que estavam em desacordo com a atitude dos católicos
esquerdistas existentes no Brasil, o que era um apoio enorme para nós*.
* Três dias depois
(26 de julho de 1968), Dom Sigaud participou de um debate de televisão no
Rio, no qual revelou a interpelação que fizera a Dom Helder Câmara sobre o
tipo de estrutura social que este preconizava para o Brasil. A revista
O Cruzeiro, em sua edição de 24 de agosto, publicou entrevista de Dom
Sigaud sobre o episódio.
Perguntado nessa
entrevista sobre o que achava do Movimento de Pressão Moral Libertadora
de Dom Helder, Dom Sigaud respondeu:
"Considero este
Movimento uma organização metódica de agitação nacional esquerdista. No
dia 18 de julho o Sr. Dom Helder realizou uma reunião informal [...]
onde se realizava uma reunião da CNBB. [...] Terminada a
exposição, houve várias interpelações. Por fim, fiz a Dom Helder as
seguintes perguntas: 1 — V. Excia. admite a iniciativa privada? 2 — V.
Excia. considera lícita a posse de meios de produção por particulares? 3 —
V. Excia. admite a propriedade particular? 4 — Em questões sociais e
econômicas, qual é o papel do Estado: é supletivo ou ele é dono do campo?
5 — V. Excia. em sua sociedade 'evangélica', permite o mercado livre?
“Dom Helder não
pôde, não soube ou não quis me responder. Então pedi que respondesse só a
uma pergunta: na sociedade com que ele sonha, será permitido a um
particular possuir meios de produção? Por exemplo, um particular poderá
ser dono de uma fábrica, de uma oficina, ou o Estado será dono de tudo?
“Dom Helder
respondeu que esta questão ele confiaria às Universidades para estudo.
Repliquei então que os Papas já tinham falado sobre esta questão, desde
Leão XIII, e dado a resposta da sociologia verdadeira. A isto Dom Helder
retrucou que era melhor que eu nomeasse uma comissão de peritos e ele
outra, e um dia nós discutíssemos o assunto. Então lhe respondi que há
quinze anos ele agita o Brasil falando de reformas de estruturas, mas
nunca disse quais as estruturas que devem ser mudadas, onde e por que. Que
ele por fim nos dissesse como é a sociedade que ele quer criar.
“Dom Helder não
soube, não pôde ou não quis responder. A um amigo que me perguntou se eu
não entraria para o Movimento de Pressão Moral Libertadora, eu disse: —
Meu amigo, não tomo um bonde se não sei para onde vai. Peço a Dom Helder,
Dom Padim, Dom Jorge Marcos, Dom Fragoso: Ponhamos as cartas na mesa!
Digam afinal: — aonde querem levar o Brasil? Eu e meus amigos não temos
segredos. Por que S. Excias. os têm e querem levar a Nação aonde nós não
sabemos? Ou a receita está no trabalho do Padre Comblin?" (cfr.
Catolicismo n° 212-214, agosto-outubro de 1968).
Pouco depois, por ocasião da IX Assembléia Geral da
CNBB, houve a publicação de outro documento, em que 40 Arcebispos e Bispos
dirigiam-se a Dom Agnelo Rossi, então Arcebispo de São Paulo e presidente
da CNBB, e denunciavam os graves erros que estavam circulando entre os
católicos. Era também um documento que Dom Mayer e Dom Sigaud haviam
conseguido. Quer dizer, estava claro que uma parte dos Arcebispos e Bispos
brasileiros nos apoiava [247].
* * *
Dia 1° de agosto de 1968, a TFP elogia e apóia a
encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, proibindo as pílulas
anticoncepcionais.
* * *
No dia 28 de agosto, a Checoslováquia é invadida
pelos russos. A TFP protesta contra essa invasão e no dia seguinte manda
celebrar uma Missa no Rio de Janeiro pelos tchecos mortos. Eu telegrafo ao
Ministro do Exterior exprimindo indignação.
* * *
Envio também um telegrama a Paulo VI, que nessa
ocasião estava presente no Congresso Eucarístico em Medellin, Colômbia.
Apresentava ao Pontífice as minhas homenagens, as minhas reverências
filiais, e lhe comunicava que estava em curso a nossa campanha de
abaixo-assinado, desculpando-me de não lhe entregar logo tal
abaixo-assinado, pois a nossa campanha ainda continuava. Ele não
respondeu.
* * *
Em setembro de 1968, começam a sair calúnias contra a
TFP.
Dia 6: “A polícia de segurança vê técnica nazista
na organização TFP”.
Dia 7: “Governo ordena investigação na TFP”.
Nunca nos constou nada nesse sentido.
Dia 9: “Talvez seja a TFP que colocou o bomba no
Colégio Brasil”. Nem me lembro que Colégio Brasil era este.
Mas essas notícias, de tão inverossímeis, caíram no
vazio.
* * *
No dia 11 de setembro de 1968, anunciamos um milhão e
quinhentas mil assinaturas. As revistas Veja e Realidade,
que tinham grande tiragem, publicaram reportagens a respeito* [248].
* O abaixo-assinado
havia se espraiado largamente pela América do Sul, tendo alcançado na
Argentina, 266.512 assinaturas, no Chile, 121.210 mil e no Uruguai,
37.111.
Na contagem final,
somando-se as 1.600.368 assinaturas do Brasil, foram 2.025.201 assinaturas
no total (cfr. Um homem, uma obra, uma gesta, cit.).
No dia 12 de setembro houve o encerramento oficial da
campanha, ainda com a cifra de pouco mais de 1.500.000.
7. Brilhante sessão de encerramento em São Paulo
Em setembro
de 1968, a TFP comemora, na Casa de Portugal em São Paulo, o término
de sua campanha, em que 1.600.000 brasileiros pediam providências a
Paulo VI contra a infiltração comunista na Igreja. Foi o maior
abaixo-assinado da História do Brasil
A sessão de encerramento foi brilhantíssima.
Realizou-se na Casa de Portugal, em São Paulo. Com um auditório
superlotado, no qual cabiam duas mil pessoas, o ato contou com a presença
de muitas figuras da alta sociedade [249].
Na sessão falamos Dom Mayer, Dom Sigaud e eu.
Em certo momento da sessão, interrompi minha
exposição para dizer que recebera uma comunicação de que os jovens
caravanistas que tinham levado o abaixo-assinado a todo o Brasil, acabavam
de chegar de viagem e estavam entrando para participar da sessão. E que
era tal o heroísmo deles, que eu propunha que todos os recebessem de pé.
Foi uma explosão de aplausos: todo mundo se levantou
e entraram as caravanas com os estandartes e se posicionaram nas laterais
do auditório.
Mais adiante, outro ato muito bonito foi quando dois
soldados da Polícia Militar tocaram em clarim o dobre de silêncio por
todas as vítimas do comunismo. Então, todo mundo ficou de pé. Uma coisa
muito bonita!
Quando terminou a sessão, o auditório todo estava
aplaudindo longamente, longamente de pé.
Foi a sessão mais brilhante da TFP até aquela data.
Foi também a mais brilhante que até então eu tenha visto em recinto
fechado, na minha vida inteira.
A campanha de fato empolgou o Brasil.
No fim, declaramos encerrada a campanha, com mais de
um milhão e quinhentos mil brasileiros aderindo.
Não adiantava à esquerda católica ou não católica
protestar, porque a campanha estava ganha. Um milhão e quinhentos mil
quiseram. E a campanha atingiu todo o seu êxito*.
* O significado
profundo desse êxito foi captado pela revista norte-americana Time,
que em sua edição de 23/8/68 comentava: “A facilidade com que a TFP
coletou as assinaturas reflete o fato de que a maioria dos
latino-americanos aprova ou pelo menos tolera [sic] o
conservadorismo católico”.
Quando terminou a campanha, ficou patente aos olhos
do Brasil inteiro que um milhão e quinhentos mil brasileiros de todo o
País, das mais diversas camadas sociais e até pessoas da maior importância
como Bispos, ministros de Estado, almirantes, generais, brigadeiros,
professores universitários, jornalistas, deputados, senadores, homens
ricos, homens médios, homens pobres, todos tinham tido notícia de que
havia comunismo infiltrado na Igreja.
Quer dizer, a máscara da esquerda católica estava
arrancada.
Foi este um trabalho de dois meses de campanha que
uma organização pequena, à força de aproveitar as ocasiões, moveu-se com
agilidade e foi favorecida por Nossa Senhora, conseguindo levá-la a cabo [250].
8. Entrega do abaixo-assinado: silêncio de Paulo VI
Um problema que se nos apresentou foi como fazer
chegar ao Vaticano as incontáveis folhas do abaixo-assinado. Formavam elas
— colocadas umas sobre as outras — uma pilha com cerca de 10 metros de
altura*.
* Eram, repetimos,
um total de 2.025.201.
Não convinha confiá-las aos meios comuns de
transporte postal. Restava pedir que a remessa se efetuasse em mala
diplomática do Vaticano.
Não seriam as listas por demais volumosas para
transporte na mala diplomática da Nunciatura? Pareceu, assim, necessário
microfilmar todas as listas.
Começou então a microfilmagem. Esta resultou na
elaboração de 85 rolos*.
* Esses rolos foram
acondicionados em uma caixa medindo 80 x 50, x 20 centímetros.
Em 20 de junho de 1969, escrevi uma carta a Dom
Umberto Mozzoni, Núncio Apostólico no Brasil, rogando a S. Excia. a
gentileza de incluir na mala diplomática o envio de histórica importância.
Imaginava eu que abaixo-assinados — importantíssimos
pelo número de signatários, pela alta qualidade de muitos deles
(Arcebispos, Bispos, ministros de Estado, governadores e secretários de
Estado, altas patentes das Forças Armadas, parlamentares, professores
universitários etc.), pelo tema que versavam — houvessem de encontrar a
maior facilidade em ser transportados na mala diplomática.
O ilustre representante da Santa Sé respondeu-me, em
carta de 2 de julho, que “por disposição dos superiores”, o correio
diplomático da Nunciatura estava estritamente reservado às comunicações
oficiais.
Os subseqüentes meses se passaram na espera de um
portador de confiança. Obtivemo-lo em outubro* [251].
*A entrega, feita
pessoalmente por um amigo da TFP, realizou-se no dia 7 de novembro de
1969. A importante documentação foi confiada a um minutante, na Secretaria
de Estado da Santa Sé.
Esta mensagem, imponente pela gravidade do assunto,
pela categoria de muitos signatários, e pelo número dos que a subscreveram
ficou sem resposta [252].
O silêncio mais frio e completo seguiu-se à súplica, entretanto filial,
respeitosa, submissa, angustiada, ardente.
Nada se fez que pusesse cobro à onda.
A História registrará que essa omissão teve trágica
importância no drama que estava prestes a começar [253].
1. Dom Helder no CICOP: política de entrega ao comunismo
Ainda estava quente na memória de todos nosso
abaixo-assinado a Paulo VI, quando no fim de 1969 Dom Helder Câmara
resolveu fazer uma tournée pelo Velho e Novo Mundo.
Como de hábito, não perdeu ocasião alguma para
promover sua costumeira política [254].
Sobretudo nas afirmações extremamente graves,
pronunciadas em Nova York, em discurso de encerramento da sexta
Conferência Anual do Programa Católico de Cooperação Interamericana
(CICOP)*.
* Este
pronunciamento foi feito no dia 25 de janeiro de 1969.
De princípio ao fim, essas declarações delineavam
toda uma política de entrega do mundo, e mais particularmente da América,
ao comunismo.
Dom Helder pedia que a China comunista fosse admitida
nas Nações Unidas. Como a China ocupava um dos cinco lugares permanentes e
com direito de veto no órgão supremo da ONU, isto é, no Conselho de
Segurança, a admissão do governo de Pequim importaria forçosamente em que
ao representante de Chiang Kai-Shek nesse órgão se substituísse o de Mao
Tsé-Tung.
Dom Helder pedia também "a reintegração de Cuba na
comunidade latino-americana [...], com o devido respeito às suas
opiniões políticas".
Entre outras coisas, asseverou Dom Helder que "o
primeiro problema da humanidade não é o choque entre o Oriente e o
Ocidente, mas sim entre o Norte e o Sul — ou seja, entre o mundo
desenvolvido e o mundo subdesenvolvido".
Esta afirmação sibilina era de molde a adormecer a
vigilância dos anticomunistas, ao mesmo tempo que relegava para um nível
secundário a grande controvérsia religiosa, filosófica e cultural entre o
mundo cristão e o mundo ateu, para pôr em primeira plana o problema
econômico do subdesenvolvimento. Inversão de valores inteiramente conforme
à doutrina de Marx.
A TFP esperou que Dom Helder Câmara desmentisse as
afirmações que a imprensa nacional lhe atribuiu.
Tal desmentido não veio. E, à vista dos antecedentes,
era muito de duvidar que ele viesse, pelo menos com a precisão e a
franqueza indispensáveis.
Dada a extrema gravidade das declarações do referido
Prelado, a TFP julgou cumprir um dever para com a Pátria, exprimindo seu
inteiro desacordo com as sugestões desconcertantes a ele atribuídas* [255].
Nele demonstrou que
a política internacional preconizada por Dom Helder era inteiramente afim
com a política nacional proposta pelo agitador belga Padre Comblin, a seu
tempo denunciado pela TFP em vitoriosa campanha contra a infiltração
comunista em meios católicos.
Dr. Plinio fazia
também um apelo à Hierarquia Eclesiástica, ao Poder Público e à própria
opinião nacional para que, de concerto, pusessem paradeiro a um perigo
cujo alcance seria pueril ignorar.
- Este comunicado pode ser
encontrado em Catolicismo n° 218, de fevereiro de 1969.
2. Dom Helder Câmara reconfortado por Paulo VI
Era triste, muito triste, isto sim [256],
ver um Bispo da Santa Igreja Católica Apostólica Romana empenhando o seu
prestígio, que lhe vinha da excelsa dignidade de sucessor dos Apóstolos,
para tentar a demolição de bastiões dos mais preciosos da defesa militar e
política do mundo livre contra o comunismo [257].
Tudo isto não seria tão importante, pois não ia além
da importância de dom Helder.
Importante, realmente importante foi o que se passou
com Dom Helder em Roma.
D. Helder
recebido por Paulo VI [data desconhecida]
A importância, no caso, não vinha de Dom Helder mas
do Papa. Pois Dom Helder — bem no meio de sua tournée lança-chamas
— esteve com Sua Santidade, e depois deu uma versão própria do que ocorreu
entre ambos.
O fato de essa versão ter sido espalhada aos quatro
ventos, no Brasil e no Exterior, isto sim, era importante, na medida em
que insinuava uma atitude do chefe da Cristandade diante das proezas de
Dom Helder.
Lembremos antes de tudo que — segundo uma "fonte
oficial" do Vaticano — o encontro teria sido
"muito cordial".
Dom Helder falou com o Santo Padre sobre suas
"experiências passadas" e seus
"projetos". A julgar pelo que
deixou entrever o Arcebispo, não recebeu ele a menor censura. Pelo
contrário, saiu da audiência confiante e com
"sua alma de Bispo
reconfortada".
Mais adiante disse que, a seu ver, o Brasil
"deve
pensar em modelos socialistas proporcionais às nossas necessidades
particulares".
E depois de dizer que — segundo pensava — esse
socialismo brasileiro não coincidia com o que se praticava nos países
socialistas, acrescentou:
"Sonho com uma socialização que seja
realmente capaz de criar condições de desenvolvimento integral do homem,
como define a encíclica ‘Populorum Progressio’".
Essas declarações de Dom Helder, embora cheias das
habituais sinuosidades, reticências e escapatórias, em sua linha geral não
só induziam os leitores a formar a impressão de que recebeu um
placet
de Paulo VI, bem como a aceitar a idéia de que havia possibilidade de se
construir, para o Brasil, um socialismo católico.
Acerca deste último ponto, o que sustentávamos era
exatamente o contrário. Se católicos transviados, e até um Arcebispo
"sonhador", quiserem construir um regime autenticamente socialista, este
regime seria intrinsecamente atentatório aos dois Mandamentos da lei de
Deus: "Não roubarás" e "Não cobiçarás os bens do próximo". O
fato de uma violação da Lei de Deus ser praticada, não por materialistas
mas por católicos ou até por clérigos, absolutamente não a batizava nem a
tornava lícita.
Ora, fazendo esta apologia do socialismo, logo à
saída de uma audiência papal tão "cordial" e que tanto o
"reconfortou", Dom Helder fazia crer que nada do que declarou era
contrário às diretrizes que — presumivelmente — acabara de receber de Sua
Santidade [258].
Daí eu ter sentido a necessidade absoluta de a TFP
publicar o seu comunicado, que teve enorme repercussão.
1. Uma campanha ousada: grupos ocultos tramam a subversão na Igreja
[Clique
sobre a imagem para vê-la em tamanho grande]
Em 1969, Catolicismo publicou um número duplo
correspondente aos meses de abril e maio, no qual dava conhecimento de
dois autênticos documentos-bomba sobre a presente crise na Santa Igreja.
O primeiro deles, estampado no boletim católico
Approaches, de Londres (no 10-11, de janeiro de 1968), era
intitulado Dossier a respeito do IDO-C.
O segundo veio a lume sob o título Os pequenos
grupos e a corrente profética, no no 1423, de 11 de janeiro
de 1969, da revista Ecclesia, de Madri.
Para melhor compreensão dos leitores, cada um desses
documentos vinha precedido de um estudo de apresentação contendo um
substancioso resumo do texto, elaborado pela redação da folha* [259].
* Esse número duplo
trazia em sua primeira página a figura de um belo crucifixo barroco
venerado na sede do Conselho Nacional da TFP e seu título já constituía
uma categórica denúncia: Grupos ocultos tramam a subversão na Igreja.
Este título era
seguido de um texto em destaque que resumia o conteúdo da edição: "No
alto da Cruz, Nosso Senhor Jesus Cristo não sofreu apenas em razão dos
ultrajes morais e físicos que Lhe foram infligidos por seus algozes.
Padeceu também na previsão de todos os pecados que se cometeriam até a
consumação dos tempos. Entre eles a trama secreta feita em poderosos meios
católicos para 'reformar' a Igreja — transformando-A em uma Igreja-Nova
panteísta, desmitificada, dessacralizada, desalienada, igualitária e posta
a serviço do comunismo — constituiu por certo um dos mais atrozes
tormentos de nosso Divino Redentor. Sim, dEle que ensinou por sua Vida,
Paixão e Morte o contrário de todos esses erros clamorosos".
E com base nesse número de Catolicismo fizemos
nossa campanha contra o IDO-C e os “grupos proféticos”, isto no ano
de 1969 [260],
a qual foi de enorme alcance* [261].
* Esse número de
Catolicismo denunciava a conjuração de organismos semi-secretos cujas
infiltrações, de origens remotas, já podiam ser encontradas no Brasil
desde os tempos do Em Defesa da Ação Católica, em que Dr. Plinio as
descrevia em termos que impressionam pela frisante analogia com as
informações publicadas por Ecclesia sobre os grupos proféticos.
Campanha de
difusão do número duplo de Catolicismo sobre o IDO-C e os grupos
proféticos no Viaduto do Chá na capital paulista
Tais organismos eram servidos por uma superpotência
publicitária, que trabalhava de acordo com áreas progressistas, e mesmo
com pessoas alheias e inimigas da Igreja, para estabelecer [262]
uma Igreja Nova panteísta, desmitificada, dessacralizada, desalienada,
igualitária, e posta a serviço do comunismo [263].
Nunca havíamos feito uma acusação tão grave, nunca
havíamos dado um passo tão ousado, nunca de um modo tão completo havíamos
desmascarado tanto a audácia do adversário [264].
Não faltou quem dissesse a nossos jovens, aqui e
acolá ao longo de sua imensa e vitoriosa jornada, que Catolicismo,
denunciando a trama sinistra, deixava em má postura muitos sacerdotes e
leigos progressistas, e produzia ipso facto um trauma perigoso nas
fileiras católicas.
A objeção era fácil de responder. O ateísmo é, pela
natureza das coisas, o inimigo máximo da Igreja. Se esse inimigo encontrou
meios eficazes de se esgueirar nela, era preciso alertar para o fato os
católicos. Omitir o alerta por medo de traumatizar a opinião católica
seria como não bradar contra o ladrão que se vê entrar em uma casa, por
medo de assustar a família...
Não partilharam dessa frívola objeção vários Bispos
brasileiros, que por escrito se solidarizaram com nossos ataques aos dois
já citados organismos de infiltração atéia: Dom Orlando Chaves, Arcebispo
de Cuiabá, Dom Antonio de Almeida Moraes Júnior, Arcebispo de Niterói, e
Dom Antonio Mazzaroto, Bispo de Ponta Grossa.
A essas vozes autorizadas veio juntar-se depois a do
Cardeal-Arcebispo de Caracas, Dom José Humberto Quintero
Parra, que em sua Carta Pastoral de 30 de julho de 1969 (quando
nossa campanha já ia a meio), não temeu traumatizar toda a Venezuela, mas,
pelo contrário, julgou fazer-lhe um grande bem, alertando os católicos
contra os "grupos proféticos" [265].
2. IDO-C: uma máquina de propaganda progressista
O IDO-C apresentava-se a si mesmo como “um grupo
internacional, com quartel-general em Roma e com uma crescente rede de
ramificações que abarcam o mundo inteiro”.
Sua função específica, segundo ele mesmo a definia,
“consiste em coligir e distribuir” aos especialistas interessados
“documentação acerca dos efeitos estruturais e teológicos da continuada
aplicação dos decretos e do espírito do Concílio Vaticano II”.
O IDO-C informava ter nascido em dezembro de 1965, da
fusão do DO-C, centro de informações que servia o Episcopado
Holandês durante o Concílio, com o Centro de Coordenação de Comunicações
Conciliares (CCCC), que na mesma oportunidade promovia o
intercâmbio de notícias entre jornalistas progressistas.
Cumpre destacar que o IDO-C controlava as seções
religiosas de jornais de repercussão mundial como Le Monde e Le
Figaro, em Paris, e o New York Times, nos Estados Unidos.
Era muito significativo que o funcionamento do IDO-C
fosse aceito sem a menor preocupação em países dominados por governos
comunistas, tais como a Hungria, a Polônia, a Checoslováquia e a
Iugoslávia.
Essa máquina era destinada a inocular nos meios
católicos mais ou menos veladamente, através da imprensa, do rádio, da
televisão, e de conferências em auditórios públicos, uma doutrina que é o
oposto da Religião Católica [266].
Tudo se unia: propaganda das mais ousadas, novidades
religiosas e esquerdismo escancarado, tudo propagado em nome do
“espírito conciliar” por uma central discreta [267].
3. Grupos proféticos, rede semiclandestina para operar a revolução na
Igreja
Já o artigo publicado em Ecclesia nos punha ao
corrente do esforço sistemático de um movimento que se generalizara cada
vez mais nos meios católicos de numerosos países, o dos “grupos
proféticos”.
Formado de miríades de pequenos grupos esparsos, a
unidade desses organismos ressaltava, logo à primeira vista, da ideologia,
das metas e dos métodos de ação que todos tinham em comum, bem como da
notável colaboração que mutuamente se prestavam estes corpúsculos sem
direção central aparente.
Constituíam eles células vivas de ativistas que se
incrustavam nos mais variados organismos católicos — seminários,
universidades, colégios, obras sociais etc. — e ali faziam a propaganda,
mais ou menos velada, de um sistema ideológico que, como no caso do IDO-C,
representava o contrário da Religião Católica.
Não só por seu grande número, mas pelas sutilíssimas
técnicas de iniciação de membros, pressão sobre a opinião pública e
agitação que usavam, os “grupos proféticos” eram uma verdadeira
potência.
Eles formavam dentro da Igreja uma imensa rede
semi-secreta de propaganda anticatólica, feita sobretudo verbalmente de
pessoa a pessoa.
Tanto nos “grupos proféticos” quanto no IDO-C
se tinha, perante o comunismo, a mesma atitude simpática.
Quanto aos instrumentos de ação, o IDO-C e os
“grupos proféticos” eram profundamente diversos. E nisto se
completavam.
Pois o IDO-C visava as massas católicas, sobre as
quais agia pelos meios mais adequados, isto é, como dissemos, livros,
revistas, jornais, televisão, rádio, conferências etc.
Os “grupos proféticos”, pelo contrário,
visavam os mil ambientes-chave que dirigiam o movimento católico. E para
tanto esses grupos usavam principalmente a propaganda oral discreta, a
cargo, como é óbvio, de agitadores perfeitamente destros e bem colocados [268].
* * *
E podemos mais ou menos dizer que tudo o que se
passou na Igreja de lá para cá foi a aplicação do programa do IDO-C e dos
“grupos proféticos” [269].
4. Novidade marcou a fisionomia das TFPs
nas ruas: a capa
No Chile, a
difusão do mesmo documento em "Fiducia", órgão da TFP local. O
cooperador já porta a capa recém lançada
Nessa ocasião, dezenove caravanas de jovens
propagandistas percorreram, em 70 dias, 514 cidades (em vinte Estados) de
nosso território. Foram então vendidos 165 mil exemplares de
Catolicismo.
Foi nessa campanha que, pela primeira vez, por
iniciativa minha, a TFP lançou, para uso dos seus cooperadores, a capa
rubra ostentando o leão áureo [270].
A idéia nasceu de uma preocupação de propaganda de
rua. Dada a importância dessa denúncia, pareceu-me que deveríamos
inaugurar um processo de campanha que chamasse vivamente a atenção e
marcasse a TFP aos olhos do público.
Vieram-me então à memória bustos do tempo dos
romanos, com capas vagamente parecidas com a nossa.*
* Por exemplo, o
busto do imperador romano Caracalla, no Museu do Louvre; ou o do imperador
Marco Aurélio, nos jardins de Versalhes.
Mas eu não tinha nenhuma vontade de imitar os antigos
romanos. E imaginava essa capa marcada por uma nota de heroísmo medieval.
Como comunicar essa nota?
Então me lembrei de que havia visto, em certa figura
medieval, uma vestimenta em forma de farpa.
Dr. Eduardo Brotero, com aquele zelo que lhe é
característico, fez os modelos de farpa, baseados em um traje do
Arquiduque Maximiliano, da Áustria (1459-1519), depois Imperador do Sacro
Império (de 1508 até sua morte), revestido com o hábito da Ordem do Tosão
de Ouro. E fomos a uma costureira, que executou a idéia. E assim surgiu a
nossa capa.
Catedral de Notre Dame de Paris -
Nossa Senhora defendendo o monge
Teófilo contra o demônio
[Tímpano do portal do Claustro].
Comentando esta foto, Dr. Plinio alertou para a semelhança das
dobras do manto de Nossa Senhora com a capa de campanha que ele
imaginara para a TFP.
Quando fomos medir os resultados da campanha, a capa
tinha sido um sucesso [271].
Mais tarde, comentando depois num auditório da TFP a
imagem de Nossa Senhora defendendo o monge Teófilo contra o demônio,
representada no detalhe de um tímpano da Catedral de Notre Dame, em Paris,
eu disse que me comprazia num determinado pormenor.
Pedi então aos presentes que observassem as dobras do
manto de Nossa Senhora, e perguntei: os senhores conhecem essas dobras? É
a capa da TFP! Oxalá aqueles que a usam saibam enfrentar a
Revolução gnóstica e igualitária como Nossa Senhora fez com o demônio [272].
5. Estranhos contratempos com duas autoridades civis
Desejo tratar aqui de dois contratempos que tivemos.
Um sobre a oposição apaixonada do Sr. Secretário da
Segurança Pública de Minas à realização de nossas atividades em praça
pública.
Pensava eu que ele fosse o único, pois, com exceção
de Minas, vendemos os jornais em todo o território nacional, recebendo, da
parte das autoridades, as garantias necessárias para o exercício das
liberdades que a Constituição nos assegura.
Minha ilusão de que só em Minas o Poder Público nos
coarctara a ação, se desfez à última hora, pois na Bahia, na querida,
gloriosa e tradicional cidade do Salvador, o Secretário da Segurança
Pública nos opôs os mesmos óbices que seu fogoso colega mineiro. E isto
apesar da magnífica acolhida popular que vínhamos obtendo na linda capital
dos Vice-Reis.
À guisa de argumento, aquela autoridade só declarou o
seguinte: a) a TFP representava, no panorama brasileiro, o extremo oposto
do comunismo; logo a TFP era tão autenticamente extremista como este; b)
em conseqüência, não devia ter inteira liberdade de ação, pois que não a
tinham os comunistas.
Assim, em Salvador como em Minas, fomos proibidos de
usar estandartes e capas, bem como de atuar em praça pública. Só o que se
nos "concedeu" foi irmos de porta em porta vender os jornais, com evidente
diminuição de nossa capacidade de ação*.
* Na época correu à
boca pequena, em contatos de pessoas da TFP com altos funcionários do
governo de Minas e da Bahia, que a proibição dos respectivos secretários
se devera às pressões, em Belo Horizonte, do Arcebispo Dom João Resende
Costa e, em Salvador, do Cardeal-Arcebispo Dom Eugenio de Araújo Sales. A
controvérsia com os dois secretários está noticiada nas edições de
Catolicismo n° 223, de julho de 1969 e n° 225-226, de setembro-outubro
do mesmo ano.
6. Oposição violenta de padres progressistas
Oposição violenta, só a tivemos fora da esfera do
Poder Civil. Procedeu ela, quase sempre, de curas progressistas, a
capitanear magotes de arruaceiros fanatizados [273].
Toca-me dizer uma palavra sobre declarações feitas à
imprensa, a propósito de nossa campanha contra o IDO-C e os "grupos
proféticos", pelo Emmo. Cardeal Rossi: “Tradição, Família e
Propriedade fala por ela própria e não tem correspondência com a palavra e
a ação da Igreja".
Outro tópico contido na entrevista de S. Emcia. era
este: "Rememorou-nos (o Cardeal) o nobre lema da Igreja de
Cristo: ‘Unidade nas coisas essenciais; liberdade nas acidentais e
caridade em todas as coisas’. Possivelmente haja comunistas no grande e
espalhado mundo do Clero brasileiro. Mas à Igreja não cabe o papel (frisou
o Cardeal Rossi) de apontar com o dedo a ovelha negra, numa denúncia. Ela
é a primeira a condenar e a censurar, mas condena e censura como a Mãe e
como a Mestra".
Queríamos crer que o repórter tivesse ouvido mal. Não
nos pareceu crível que S. Emcia. considerasse descaridoso "apontar com
o dedo" clérigos comunistas -
e ipso facto apóstatas -
no mesmo momento em que "aponta com o dedo" a TFP, por motivos que,
a serem fundados na realidade, seriam bem menos graves [274].
* * *
Somando e subtraindo, tenho certeza de que a onda que
nós levantamos contra o IDO-C e os “grupos proféticos” serviu muito
para obrigá-los a uma linha de prudência, que retardou a ação deles no
Brasil. Quer dizer, foi uma ação preventiva [275].
1. O caso dos dominicanos terroristas: “affaire” Marighela
Poucos meses depois dessa nossa campanha, ou seja, em
novembro de 1969, explodiu o tumor da infiltração terrorista no Clero.
Isto é, da infiltração do comunismo de pior tipo, o que não se limitava a
defender o ateísmo, o materialismo, o desprezo à família e a negação da
propriedade, mas ia além, e apoiava a matança, o seqüestro e o saque
organizados*.
Da turma de
noviços dominicanos de 1965, em Belo Horizonte, cinco se
tornariam militantes da ALN: da dir. para a esq., Oswaldo
(segundo), Betto (quarto), Ratton (sexto), Magno (oitavo) e Ivo
(12º) [Ref.
aqui]
* O caso veio a furo
quando, no dia 4 de novembro de 1969, em São Paulo, o chefe terrorista
Carlos Marighela, que se achava foragido, foi morto pela polícia ao reagir
à prisão. O fato se deu na Alameda Casa Branca, Jardim Paulista, quando
Marighela se aproximava de dois religiosos do Convento de São Domingos das
Perdizes, com os quais marcara entrevista através de um telefonema para a
Livraria Duas Cidades, dirigida pelos Dominicanos. Os dois religiosos eram
cúmplices da rede terrorista montada por Marighela e serviram de isca para
atraí-lo.
De norte a sul, os jornais, as rádios e as televisões
se pronunciaram sobre o escândalo. Em todas as rodas foi este o tema
obrigatório das conversas.
O Brasil inteiro estava persuadido de que o grosso
dos fatos narrados era verídico. E este grosso era tão grosso
- tão grossíssimo, se assim se
pudesse dizer - que horrorizou a
opinião pública.
*
* *
É claro que a Nação esperava encontrar na atitude das
mais altas organizações e das mais categorizadas personalidades
eclesiásticas um eco do que ela sentia diante das linhas gerais
irrecusavelmente verídicas e protuberantemente terríveis do que fora
apurado.
Entretanto, o que a Nação viu nas mais altas esferas
religiosas nacionais foi o contrário: fechamento, reserva, protelação,
espera circunspecta de novas informações.
Tudo na atitude dos ilustres prelados era como se
eles não se tivessem refeito da surpresa enorme que presumivelmente os
aturdiu. A surpreendente surpresa tinha sido tão grande, que parecia ter
imobilizado a alta direção da CNBB.
Algum tempo antes meu Arcebispo, o Emmo. Cardeal
Rossi, havia declarado à imprensa que desconhecia a existência de
sacerdotes comunistas no Brasil.
Pouco depois, ao chegar de Roma, o Sr. Arcebispo do
Rio, Cardeal Câmara, declarara haver informado ao Santo Padre Paulo VI que
era inteiramente normal a situação do Clero brasileiro.
Vinha agora o caso policial. Reação das mesmas
esferas: surpresa*.
* No dia 5 de
novembro de 1969, deu-se o estouro do caso na imprensa.
Logo no dia
seguinte, Dr. Plinio fez publicar um comunicado da TFP sobre o assunto.
Esse comunicado foi estampado na Folha de S. Paulo e no Estado
de S. Paulo de 6 de novembro de 1969, e em mais outros 11 jornais
brasileiros, sob o título A TFP e os terroristas dominicanos. Foram
distribuídas 80 mil cópias dele nas ruas centrais da cidade.
Nele Dr. Plinio
manifestava “a consternação da entidade ante a notícia de que
sacerdotes dominicanos participaram ativamente da conspiração terrorista”.
Afirmava ser difícil imaginar “uma mais completa conspurcação da
excelsa dignidade do Sacerdócio e da glória ilibada do hábito dominicano”.
E lembrava a necessidade “imperiosa e inadiável de negociações oficiais
do Itamarati com a Santa Sé para que, pelos meios adequados, as
autoridades eclesiásticas, e na falta destas as autoridades civis, possam
pôr cobro à fermentação comunista que lavra escandalosamente em meios
católicos”.
A segurança interna da Igreja clamava por que a CNBB
abrisse uma vasta investigação, de natureza inteiramente eclesiástica,
para averiguar toda a extensão do tumor que explodira.
Mas não vi que algo disso tivesse sido feito. E,
contudo, isto era, para a CNBB, o único caminho que parecia coerente com a
situação catastrófica a que se havia chegado.
A Igreja, assim, estaria em condições ideais para —
em colaboração com o Estado — acautelar-se a si própria e ao Brasil contra
o perigo imenso. Mas, ao que parece, a surpresa, a surpresa surpreendente,
criou tropeços para as providências mais necessárias... [276]
2. Chegou a hora de fazer “o jogo da verdade”
Pouco antes, fora publicada no Diário de Justiça
de Belo Horizonte larga documentação sobre a famigerada Ação Popular, que
tanta agitação levantou em nosso País*.
* A AP havia se
embrenhado na via da tomada do poder pelo emprego da luta armada. E toda a
geração de militantes havia se formado nas fileiras da Ação Católica.
Assim, vinha uma vez mais à tona a infiltração
comunista nos meios católicos brasileiros.
Já que "chegou a hora de fazermos o jogo da
verdade", devíamos ser claros: dos vários setores da subversão, aquele
no qual menos se interveio foi precisamente o da esquerda católica*.
* Dr. Plinio havia
escrito na época um artigo para a Folha de S. Paulo,
aproveitando-se de um dito do Presidente Garrastazu Médici de que havia
chegado a hora de fazer o “jogo da verdade”.
Esta rarefação da verdade se foi acentuando em nossa
vida pública com a cooperação de quase todo o mundo. O desejo generalizado
de contemporizar, de ladear questões, de evitar desentendimentos, levou a
isto.
Mas, enfim, há limite para tudo.
Bastava ver o caso do Padre Comblin. Apesar de
denunciado por uma petição com mais de 1.500.000 assinaturas, andava livre
pelo Brasil o comunista belga. Os jovens que, persuadidos por ele, se
punham a conspirar, poderiam ser punidos. Ele, o grande responsável,
continuava incólume.
O que tornava o Padre Comblin quase inatingível pela
lei era um anteparo muito e muito difícil de remover. Era a batina que,
aliás, ele já não usava...
A complexidade do assunto estava no seguinte: pelas
leis multisseculares da Igreja, o sacerdote
- em princípio
- só pela Igreja pode ser
julgado. É este um privilégio deduzido do cunho sacral do sacerdócio.
Não posso afirmar se este privilégio ainda existe na
mais recente legislação canônica. Mas o certo é que, vigente durante
séculos, ele modelou a fundo a sensibilidade religiosa do povo cristão.
A esquerda católica, muito sabidamente, sempre que as
autoridades civis tomavam ou ameaçavam tomar medidas contra eclesiásticos,
começava a apontar o Poder civil como violador dos direitos da Igreja. Daí
resultava, concretamente, a impunidade de Comblins de toda a casta*...
* O recurso ao poder
civil para processar eclesiásticos que afrontam a ordem pública já vai
entrando nos costumes. Assim, a respeito de um sacerdote que teria
desviado dinheiro de uma paróquia na cidade de Cascavel (PR), o Arcebispo
local, Dom Mauro Aparecido dos Santos, declarou: “Se um membro que está
ali [na paróquia] se sentir prejudicado e quiser ir na Justiça
Civil é direito deles” (cfr. Rede SBC Brasil, 14 de outubro de 2014).
Também a conhecida Agência de Notícias
progressista ADITAL (Agência de Informação Frei Tito para a América
Latina) informa, em despacho de 14 de outubro de 2014, que “Coletivos
mexicanos, redes cristãs e entidades como o Observatório Eclesial estão
divulgando uma carta aberta ao Papa Francisco”, na qual fazem “um
apelo para que o Papa colabore para que a justiça civil seja aplicada aos
padres que cometem crimes sexuais contra crianças e adolescentes”.
3. O remédio que o Poder Público não aplicou
Dita assim, com coragem, qual era a situação, cumpria
sugerir para ela um remédio.
Ora, tal remédio só podia ser um. O Poder civil
expusesse ao País, em toda a extensão, qual era a magnitude da infiltração
comunista em meios católicos, de forma que mesmo nos últimos rincões não
pairasse dúvida a este respeito.
Pari passu, pedisse à Autoridade Eclesiástica
que remediasse a situação. Pedisse-o à CNBB, sempre tão disposta a
recomendar soluções para problemas da esfera temporal. Pedisse-o ao Santo
Padre, a quem já haviam se dirigido neste sentido, por iniciativa da TFP,
1.600.368 brasileiros.
Feitos estes pedidos com publicidade, com decisão,
com respeito, motivos não haveria para que a Hierarquia deixasse de
atender, com providências imediatas e inteiramente eficazes, os anseios do
Brasil.
Não havia outro caminho adequado. A contemporização
de nada adiantou. As tratativas de bastidor
- era absurdo supor que não as
tenha havido
- deram no que se
via. O bolsão esquerdista na Igreja continuava bojudo e pronto a derramar
sua peçonha sobre o País na primeira ocasião. Na
"hora da verdade",
só atuações públicas e diretas eram oportunas [277].
E, como só se elimina um perigo quando se fazem cessar as suas causas, eu
queria eliminar a influência da esquerda católica. A esquerda católica não
exprimia o pensamento da Igreja. E como tal não merecia o apoio nem da
Hierarquia, nem do povo católico.
Notem que não falo em privar da liberdade os
elementos que constituem essa esquerda. Nem em expulsar do País os seus
componentes estrangeiros. Essas medidas poderiam ser ou não ser justas e
úteis, conforme cada caso concreto. Elas poderiam atenuar o perigo. Não
porém eliminá-lo. Acrescento que, em alguns casos, elas poderiam ser
contraproducentes.
A esquerda católica vive da influência que lhe vem do
rótulo católico. Essa influência não se lhe tira só com medidas legais e
judiciárias. Mais do que tudo, era preciso tirar-lhe o rótulo [278].
Nisto estava a solução.
O que nos grandes centros de todo o Brasil se sabia,
isto é, que havia um ativo bolsão comunista ou comunistizante em meios
católicos brasileiros, era apenas vislumbrado em muitos centros médios e
pequenos.
Que se organizasse
- com base nos documentos apreendidos pela polícia
- um documentário farto que
provasse esta triste realidade; e que providenciasse uma larga
distribuição dele por todos os recantos do Brasil.
O ministro do Exterior, apoiado pelo clamor da imensa
maioria do País, pedisse à Santa Sé medidas aptas a desautorar, em nome da
Igreja, os Comblins de toda a casta que da Igreja se serviam para demolir
o Brasil [279].
Diria algum cético que as providências da Hierarquia
não viriam... Este pessimismo sombrio não nos eximiria de recorrer a elas.
Imaginemos que pouco ou nada se conseguisse. Creio
que, então, o direito do Brasil à legítima defesa
- direito inalienável e
decorrente do mais fundo da ordem natural
- inspiraria aos detentores do
Poder Público outros meios de ação: prudentes e respeitosos sempre, mas
também inteiramente decisivos.
E então essas medidas não feririam mais a opinião
católica. Pois a doutrina católica não justifica que, à míngua de medidas,
se deixasse arder indefeso um país inteiro.
O direito à legítima defesa — falo em tese — tem
bastante amplitude para isto, segundo a moral cristã. É o que qualquer
moralista sério sabe [280].
[16] — A chamada Ordem Imediata — expressão
que foi utilizada até o falecimento de Dr. Plinio — era constituída,
como o nome indica, de pessoas imediatamente abaixo dos sócios
fundadores e diretores, mas que tinham a vários títulos um papel de
especial destaque, e mesmo de direção de setores, dentro do grupo de
Catolicismo. Algumas dessas pessoas eram sócias, outras não.
[37] — Apesar do esforço de pesquisa, não
conseguimos localizar essa notícia lida por Dr. Plinio. Constatamos
apenas que, durante a Semana da Pátria de 1959, saíram diversas
notícias batendo na tecla da Reforma Agrária.
[39] — Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto
(1910-1987) foi professor universitário, advogado, político e técnico
em assuntos administrativos e econômicos. Sobrinho-neto do antigo
Presidente da República Rodrigues Alves, tornou-se governador de São
Paulo a 31 de janeiro de 1959. Em julho desse ano, certamente por
encomenda do governo paulista, a revista Manchete publicou
bombástica matéria de capa cujo título era: “Carvalho Pinto já faz
em São Paulo Reforma Agrária”. Nesse mesmo mês, pelo decreto
35.090, ele criou uma comissão incumbida do “estudo de medidas
visando a melhor utilização das terras inaproveitadas públicas ou
particulares do Estado” (cfr. Célia Aparecida Ferreira Tolentino,
in O Farmer contra o Jeca, Cultura Acadêmica Editora, São
Paulo, 2011). Comissão esta que seria propulsionada pelo seu
secretário da Agricultura, José Bonifácio Coutinho Nogueira, tendo
como assessor José Gomes da Silva, futuro presidente do INCRA no
governo do Presidente José Sarney.
[41] — O projeto de lei 154/60, apresentado em 1° de
abril de 1960 e aprovado a 28 de dezembro do mesmo ano, foi sancionado
por Carvalho Pinto no dia 30, passando a constituir a Lei n° 5.994
(cfr. site da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo -
https://www.al.sp.gov.br e também Célia Aparecida Ferreira Tolentino,
in O Farmer contra o Jeca, op. cit.). Mas não conseguiu sair do
papel.
[56] SD 1/12/73 — Reforma Agrária—Questão de
Consciênciateve doze edições: no Brasil, cinco edições, a mais
recente delas no primeiro trimestre de 2011, comemorativa dos 50 anos
de lançamento; na Argentina (1963), Espanha (1969) e Colômbia (5
edições), num total de mais de 43 mil exemplares.
[58] SD 14/7/73 — Ver reportagem em Catolicismo
n° 121, de janeiro de 1961.
[59] Simpósio 26/2/66 (I) — Um registro escrito por um
membro do grupo de Catolicismo, não assinado, fornece alguns
dados interessantes: “Os debates havidos produziram um grande
efeito, a ponto de que deputados agro-revisionistas tentaram organizar
um trabalho junto à imprensa especializada visando evitar a publicação
de qualquer notícia a respeito. Mas isto foi inútil. Em pouco tempo a
notícia se espalhou, vários jornais a comentaram, a visita foi filmada
e apresentada na televisão e mais tarde exibida em noticiário
cinematográfico nos principais cinemas de São Paulo, devendo a seguir
ser passada em todo o Brasil”.
[74] — Pascoal Ranieri Mazzilli (1910-1975),
político brasileiro, chegou a exercer interinamente a Presidência da
República em duas ocasiões. Primeiramente, de 25/8 a 8/9/61, após a
renúncia de Jânio Quadros, estando ausente o vice-presidente João
Goulart, em visita à China comunista. A segunda vez foi de 2 a
15/4/64, logo depois do golpe militar, até a posse do Marechal Castelo
Branco, eleito pelo Congresso Nacional.
[104] Reunião com os mais antigos do movimento
4/12/77.
[105]A I.O. no “water shoot”, Folha de S.
Paulo, 3/10/71 — Numa série de artigos que escreveu para a
Folha de S. Paulo a partir de 25 de julho de 1971, Dr. Plinio
denominou pela abreviatura "I.O." a igreja greco-"ortodoxa" russa. E
explicou porque usava a palavra "ortodoxa" entre aspas e porque lhe
aplicava o adjetivo cremliniana:
“Algum leitor estranhará que eu escreva sempre
‘ortodoxo’ entre aspas. Não o faço nem de longe com o intuito de
espicaçar ou agredir. É que, como católico, não posso, em rigor de
lógica, reconhecer como ortodoxa (já que ortodoxo quer dizer, em
grego, opinião reta) senão a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
“É bem verdade que o uso tem levado
incontáveis católicos a dispensar as aspas como inúteis, por se
entender como óbvio que um católico não pode aceitar como
verdadeiramente ortodoxa uma igreja separada de Roma. Mas nestes
tempos de ecumenismo delirante, parece-me perfeitamente legítimo que
tanto os católicos leais à fé como os ‘ortodoxos’ coerentes queiram
evitar qualquer confusão. E que para isto usem medidas excepcionais.
“— E ‘cremliniana’? Por que uso este
neologismo? — Muito simplesmente porque a realidade dos fatos manda
que se diga e com quanta alegria o digo — que uma boa fração dos
‘ortodoxos’ russos e não russos recusa qualquer comunhão com os
lacaios mitrados que o Kremlin pôs à testa do arremedo de Igreja e de
Hierarquia, que em Moscou funciona sob os auspícios do Estado ateu.
“Esses ‘ortodoxos’ anticremlinianos —
hierarcas e leigos sofrendo perseguições e pressões de toda ordem — se
conservam irredutíveis em considerar os ‘cremlinianos’ como sinistros
farsantes. A nobre firmeza desses ‘ortodoxos’ merece um aplauso
caloroso, que todo católico verdadeiro lhes dá com gosto” (v.
artigo Lições no jardim do vizinho,
Folha de S. Paulo,
25/7/71).
[112] Reunião com os mais antigos do movimento
2/3/87 — Em entrevista concedida a Catolicismo (março de 2011),
o professor Roberto De Mattei, vice-presidente do Centro Nacional de
Pesquisas da Itália, catedrático da Universidade Européia de Roma e
autor do momentoso livro O Vaticano II: uma história jamais escrita,
discorrendo sobre “a rede de relações desse setor progressista, que
preexistia ao Concílio”, afirmou que ela era “forte,
ramificada, e incluía, além das cúpulas das conferências episcopais,
algumas ordens religiosas de ‘vanguarda’ e grupos lingüísticos.
Incluía sobretudo laboratórios ideológicos, como os de Cuernavaca, no
México, de Bolonha, na Itália, e de Louvain, na Bélgica”.
Perguntado pelo repórter se do lado conservador não havia algo
parecido, foi taxativo: “Nem um pouco! Os Bispos e teólogos
fiéis a Roma reagiram muito tardiamente e sem a habilidade estratégica
de seus adversários. Segundo uma pesquisadora americana, Melissa
Wilde, a minoria progressista prevaleceu graças à sua melhor
estratégia e organização” (destaques nossos).
[113] — Dr. Plínio chegou a Roma no dia 10 de
outubro de 1962, abertura do Concílio. Vinha em companhia de Dom
Sigaud, Dom Mayer, Frei Jerônimo Van Hinten, Dom Bertrand de Orleans e
Bragança, Dr. Fernando Furquim de Almeida, Dr. Paulo Corrêa de Brito,
Dr. Luís Nazareno Teixeira de Assumpção Filho, Dr. Sérgio Brotero
Lefevbre, Dr. Fábio Vidigal Xavier da Silveira, Dr. Murilo Maranhão
Galliez, Dr. João Sampaio Neto, Dr. Otto de Alencar de Sá Pereira e
dos srs. Domimique Pierre Faga, Umberto Braccesi, Emílio Scherer,
Carlos Alberto Soares Correia e Pedro Paulo Figueiredo.
[120] — O Coetus a que
Dr. Plinio se refere, também chamado “Petit Comité” — “Pequeno Comitê”, foi um grupo de
estudos/trabalho que reunia participantes do Concílio Vaticano II em
desacordo com os rumos progressistas que se delineavam no mesmo. Mais
tarde aumentou o número de participantes dando origem, em outubro de
1963, ao Coetus Internationalis Patrum.
[121] — Padre Ralph Wiltgen (1921-2007), sacerdote
norte-americano da Sociedade do Verbo Divino. Presente ao Concílio
Vaticano II, e notando as lacunas das informações distribuídas pelo
Vaticano, montou seu próprio escritório Divine Word News Service,
com 3.100 assinantes em 108 países. Ele colocou em realce as
conferências de imprensa de vários Bispos que eram boicotados pela
mídia. Recebeu por isso pressões para cessar os seus trabalhos, mas
outros Bispos o encorajaram a continuar.
[137] — Monsenhor Achille Marie Joseph Glorieux
(1910-1999) foi, de fato, posteriormente galardoado com cargos de
importância, sendo escolhido em 1966 como secretário do Pontifício
Conselho para os Leigos. Em 1969, tornou-se Bispo Titular de
Beverlacum e Pró-Núncio Apostólico junto à Síria e em 1973, foi
escolhido como Pró-Núncio junto ao Egito.
[148] — Luigi Taparelli d'Azeglio (1793-1862) foi um
sacerdote jesuíta que aprofundou o papel do princípio de
subsidiariedade na organização social. Sua vocação religiosa foi
despertada pelos exercícios espirituais de que participou, pregados
pelo Venerável Pio de Bruno Lanteri, fundador da Congregação dos
Oblatos de Maria Virgem. Co-fundador em 1850 da Civiltà Cattolica,
seus ensinamentos sobre matéria social inspiraram o Papa Leão XIII na
redação da encíclica Rerum Novarum. Escreveu o famoso Saggio
teoretico di dritto naturale appoggiato sul fatto, em 5 volumes
publicados pela primeira vez em Palermo, na Stamperia d'Antonio
Muratori, 1840-1843. Dr. Plinio o leu em sua tradução francesa.
[155] SD 5/5/73 — Monsenhor Ivan Bucko
(1891-1974) sacerdote ucraniano, foi Bispo Auxiliar de Lviv, Ucrânia,
depois Bispo Auxiliar da colônia ucraniana nos Estados Unidos, e por
fim Bispo Titular de Leucas, quando foi incorporado ao serviço da
Cúria Romana, aí permanecendo até sua morte.
[188] — Cfr. El Diario Ilustrado, Santiago,
7/8/69.
[189]A clareza, essa polidez, Folha de S.
Paulo, 13/8/69 — Publicado também em El Diario Ilustrado,
El Mercurio e La Tercera, todos de Santiago, 8/8/69.
[203] — Dom José Lafayette Ferreira Álvares
(1903-1997) foi Bispo Auxiliar de São Paulo de 1965 a 1971, e Bispo
Diocesano de Bragança Paulista de 1971 até 1976, quando resignou.
Antes de sagrado Bispo, foi secretário particular de Dom José Gaspar e
depois do Cardeal Dom Carlos Carmelo, e em várias ocasiões mostrou-se
hostil às Congregações Marianas e ao grupo do Legionário.
[205] — “Filial Mensagem" era a forma
simplificada de referir-se, dentro da TFP, ao manifesto cujo título
era mais longo: “Respeitosa defesa em face de um comunicado da
Veneranda Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil — Filial convite ao Diálogo”. Esse comunicado foi publicado
no dia 26 de julho de 1966, página 7, como matéria paga, em O
Estado de S. Paulo e em vários outros jornais do País.
Catolicismo n° 188, de agosto de 1966, também o publicou na
íntegra.
[212] — Pompa e Circunstância designa um
conjunto de cinco marchas para orquestra, cujo nome é inspirado no
terceiro ato de Otelo de Shakespeare. O
autor é o compositor inglês Edward Elgar (1857-1934). Na passeata da
TFP foi tocada a de nº 1. Nessa ocasião, Dr. Plinio, os membros do
Conselho Nacional e os cooperadores da TFP, todos usavam na lapela uma
flâmula vermelha na qual estava estampado em dourado o leão rompante,
símbolo da entidade.
[219]Sucesso internacional de um brasileiro,
Folha de S. Paulo, 8/1/69 — Alexander
Fyódorovich Kérensky (1881-1970), líder revolucionário russo,
desempenhou papel primordial na queda do regime czarista e, no governo
provisório que então se estabeleceu, foi primeiro ministro durante
menos de quatro meses, período em que preparou a ascensão do comunismo
ao poder por meio dos bolcheviques de Lenine.
[239] — Otávio Frias de Oliveira (1912-2007),
carioca de nascimento, foi um jornalista, editor e empresário
brasileiro. Pertencia a uma família tradicional do Rio de Janeiro: seu
bisavô fora o barão de Itambi, político influente no Segundo Reinado.
Tendo a família se mudado para São Paulo, Frias estudou no Colégio São
Luís, da Companhia de Jesus. Notabilizou-se por transformar a Folha
de S. Paulo em um dos mais influentes veículos de comunicação do
País. A Folha, sob sua direção, endossou a idéia da abertura
política do regime militar, abriu suas páginas para todas as
tendências de opinião e aumentou o teor crítico de suas edições. A
partir de 1986, tornou-se o matutino de maior circulação nacional.
[245] SD 26/1/74 — Esse abaixo-assinado tinha como
título Reverente e Filial Mensagem ao Papa Paulo VI. Seu texto
integral, bem como ampla cobertura dos lances dessa campanha, podem
ser encontrados em Catolicismo, nos números 211, de julho de
1968; 212/214, de agosto-outubro de 1968; 216, de dezembro de 1968; e
218, de fevereiro de 1969.
[246] — Esta carta, datada de 21 de junho de 1968,
foi dada a público em jornais de São Paulo e Recife no dia 23 de junho
de 1968.
[247] — Esses documentos podem ser encontrados no n°
212-214 de Catolicismo.
[249] — Catolicismo n° 212-214, de
agosto-outubro de 1968, publicou em número triplo uma reportagem de 25
páginas sobre esta campanha contra a infiltração comunista na Igreja,
sendo um dos tópicos o Solene encerramento da campanha, à p.
18.
[278] — Grupos que promovem causas perniciosas e
mesmo antinaturais sabem perfeitamente que, se usarem o rótulo de
“católicos”, conseguirão maior penetração na opinião pública e se
sentirão mais resguardados. Caso característico é a ONG pró-aborto que
se autodenomina “Católicas pelo direito de decidir”.