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Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

 

 

© 2008 - Todos os direitos desta edição pertencem ao

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

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Parte II

 

Capítulo 11

 

Resolvendo objeções:

essa maneira de ver não está

fora da realidade?

 

( Para Textos Ilustrativos deste capítulo clicar aqui )

 

1. Objeção: parecem idéias produzidas por espíritos românticos

Um leitor poderá pensar: «A temática deste livro é bela, mas inteiramente irreal. Parece produzida por espíritos românticos. No mundo tudo é relativo. E essa relatividade é a única coisa verdadeiramente real».

Esse objetante acrescentaria: «Os românticos do século XIX costumavam falar de uma fonte que nasce prateada do seio de um chão virginal. É um exagero, pura mitologia... A água não é prateada, a terra não é virginal, as plantas não são bonitas como eles dizem... Aliás — prossegue a objeção — quem já foi à Europa Central sabe que o Danúbio não é azul, como diz a música romântica... A realidade é outra».

«Assim sendo — conclui o objetante — falar em procura do absoluto, transcendência, trans-esfera, etc., são manifestações de romantismo ou, pelo menos, uma evasão da realidade».

Esta a objeção.

 

2. O romantismo desloca para o sentimentalismo a «saudade de Deus»

— Que dizer do romantismo?

Para nós, ele contém um grave desvio: ‘Essa espécie de sede da emoção, inerente ao romantismo, é o deslocamento do que se poderia chamar saudade de Deus’.[1]

Ou seja, a saudade de Deus — que move a alma à procura do absoluto, à transcendência, à trans-esfera — o romantismo a desvia para o sentimentalismo.

‘O romantismo foi um dos artifícios mais terríveis concebidos pela Revolução. Antes dele, o Humanismo, no fim da Idade Média, constituiu o sonho romano. Depois houve o sonho cartesiano. O racionalismo e o iluminismo são formas de sonho. O sonho típico do século XIX foi a vida romântica’.

O romantismo é ‘tristonho, melodramático’, com suas ‘melopéias xaroposas, açucaradas e lacrimejantes’.

Em vez de ter saudade de Deus, o romântico ‘é eminentemente isolacionista. Românticos seriam dois solitários, em um local afastado, contemplando-se um ao outro, e ignorando tudo em torno’.[2]

 

3. Espírito de contemplação e capacidade de agir não se opõem

Por outro lado, é fácil perceber que toda a doutrina exposta neste livro visa formar homens de intensa ação, apreciadores da eficiência, da execução meticulosa e atenta, adversários declarados do romantismo. Não cabe dizer que pessoas assim não tenham o senso da realidade. E, portanto, que não vêem a realidade como ela é. Exatamente o contrário do que supõem os objetantes.

Ademais, o espírito contemplativo é uma fonte de energia e de tenacidade. Conseqüentemente, pode e deve alimentar o espírito de luta.

A objetividade, o senso do real, a capacidade de agir não são o contrário da contemplação sacral do universo. São res diversae sed non adversae — coisas diversas, não porém antagônicas — e podem perfeitamente coexistir na mesma alma.

Os exemplos são numerosos ao longo da História. São Bernardo foi um. O contemplativo que exclamava «O beata solitudo, o sola beatitudo» (Ó bem-aventurada solidão! Ó felicidade única!), pregou uma cruzada, foi codificador da ordem dos Templários, orientou Papas, polemizou com Abelardo...

Se o Danúbio não é azul, não deixa de ser verdade que, por tudo que ele exprime como concentração de História e de cultura, também não é apenas uma grande quantidade de água correndo rumo ao Mar Negro, como parecem crer os objetantes... Seria o mesmo que considerar as pirâmides do Egito como meros amontoados de pedra no deserto, ou ver no canto do Magnificat — que converteu uma figura ilustre* — mera seqüência de vibrações musicais.

* Paul Claudel. Ver Encontrando a verdade da fé em um canto gregoriano nos Textos ilustrativos deste capítulo.

É preciso usar o bom senso para compreender que, como diz Santo Tomás, «nada tem a natureza de bom e de desejável senão enquanto participa da semelhança de Deus».* Se existe um significado superior no Rio Danúbio, deixar de vê-lo é empobrecer a realidade, o que é o contrário de ter objetividade. Na verdade, é preciso ‘afiar nossa vista’, como já foi dito, para ver as coisas devidamente.

* Suma Teológica I, q. 44, a. 4, ad 4.

Mas se alguém aprecia ‘o amoralismo cínico e o ódio ao belo de tantas obras — cuja «modernidade» consiste em apresentar formas disparatadas e cores delirantes, em induzir o espírito a divagações loucas, ou em produzir nele impressões chocantes e desequilibradas’[3] — esse alguém pode olhar para o Danúbio e perceber apenas que ele não é azul. Nada mais!...

 

4. A contemplação sacral não é fuga da realidade

Alguém insistirá: esse conceito peculiar de inocência; esse recurso contínuo a imagens, comparações, alegorias; a sondagem do imaginário, do mítico, do imponderável, tudo isso não é uma fuga da realidade objetiva?

Se considerarmos — muito equivocadamente — que real é apenas o patente, teremos dificuldades quanto ao gênero de contemplações aqui propostas. Entretanto, o latente também pode ser real.

Não há quem ignore que existem enfermidades latentes: o doente não percebe que está afetado. Em determinada altura, o mal se torna patente; só então ele vê que está doente.

Por exemplo, o princípio familiar: pode-se perguntar se, embora latente, ele ainda não conserva considerável influência na sociedade de hoje. Irreal seria julgar que ele não existe somente por não ser patente.

O patente e o latente, o explícito e o implícito manifestam-se inclusive nas correntes ideológicas e políticas que percorrem a História. No ensaio Revolução e Contra-Revolução, observo que, ‘se, do ponto de vista da formulação explícita, Lutero não era senão Lutero, todas as tendências, todo o estado de alma, todos os imponderáveis da explosão luterana já traziam consigo, de modo autêntico e pleno, embora implícito, o espírito de Voltaire e de Robespierre, de Marx e de Lenine (cfr. Leão XIII, encíclica Quod apostolici muneris, de 28-12-1878)’.[4]

Portanto, o implícito, o latente podem existir de modo autêntico e pleno. Não levar isto em consideração é que é fugir da realidade.

A contemplação sacral de que tratamos, sem nunca sair do real, leva em conta tanto o explícito como o implícito, tanto o patente como o latente. De onde sua excelência.

Devemos ser muito infensos a puras fantasias. Sejamos homens de ação calmos, meticulosos, sumamente aderentes à realidade; neste sentido, inimigos declarados do wishfull thinking (pensamento influído por desejos).

As novas gerações são algum tanto propensas aos dois excessos, ao otimismo e ao pessimismo. Nossa regra de conduta deve ser atuar com ‘uma inteira objetividade, uma inteira exatidão, com seriedade, sem otimismo, sem ilusões, analisando a realidade de frente, mesmo quando desagradável’.[5]

A mais inteira objetividade é um elemento necessário da seriedade. O que implica em ‘ver a realidade inteiramente como ela é, sem véus nem preconceitos, nem «torcidas», nem falta de adaptação’.[6]

De uma pessoa assim se pode dizer que não é nem pessimista nem otimista, mas pessimólogo... O que significa não fugir da realidade objetiva, mas saber analisar com objetividade os aspectos positivos e negativos, deitando especial atenção nestes últimos, que podem comprometer o resultado dos melhores empreendimentos.

 

5. Duas esferas conexas: a da contemplação e a da execução

Aqui nasce uma pergunta: como harmonizar esta exigência de objetividade, com a tendência para o imaginário, que parece ser o substrato de quanto exposto neste livro? Haverá contradição entre o homem de ação, meticuloso, que não recua diante do negrume de certas realidades, e o pensador ousado, continuamente embalado pelo ideal, pelo maravilhoso, pelo sublime?

Interiormente imersos em um mundo maravilhoso, ao mesmo tempo devemos ter, em relação à realidade circundante, ‘atenção rápida’ e ‘iniciativa para resolver os problemas’. Bem o contrário das características do burocrata socialista: ‘cabeça nas nuvens — lerdeza no serviço — curteza de vistas — automatismo — egoísmo — moleza — horários intocáveis’.[7]

— Como conciliar isso com a recomendação de viver continuamente numa trans-esfera, fazendo transcendências, buscando os absolutos?

Não há contradição, pois esse mundo da contemplação sacral é real sob vários aspectos e, enquanto real, é que deve ser vivido. Não se trata de um sonho, de um pensamento sem consistência. São duas realidades aparentadas entre si: a da contemplação e a da execução.

Essa forma de encarar o universo é, pois, coerente e pode ser vivida de maneira coesa, concatenada e lógica.

As mais altas noções de teologia e de moral, Nosso Senhor Jesus Cristo as revestia em imagens simples, mas apropriadas para que os ouvintes compreendessem muito além da imagem. Por exemplo, a parábola do Bom Pastor que vai buscar a ovelha perdida — algo trivial da vida cotidiana daqueles tempos — faz entender as verdades mais altas do comportamento da Providência Divina em relação ao pecador.

Por sua atitude de alma aberta ao jogo das analogias, essas populações evangelizadas por Nosso Senhor vislumbravam, num terreno muito mais alto, verdades que não conseguiriam atingir explicitamente. Mas com o auxílio da parábola, elas as entendiam e as viviam, no chão sadio da sabedoria.

 

6. De certa forma, a legenda é mais importante que a História

De certa forma, ‘a legenda é o mais importante da História: a história das legendas é mais importante do que a história dos homens’.[8]

Dom Sebastião de Portugal, rei de legenda, virgem e guerreiro: o mais magnífico dele é seu mito. O mito de que não morreu, e que há de voltar e recompor todas as coisas.

‘Coisas que estavam abaixo de sua legenda, pode ser que as fizesse. Mas isto não é o mais importante. O mais importante é que nasceu na História uma legenda como essa. Dar origem a uma legenda é, propriamente, o mais alto, dentro da micro-imortalidade que nesta Terra possa haver’.[9]

Trata-se de certa concepção fundada na razão, servida e revestida de símbolos, que o homem, ser inteligente, forma das várias ordens de ser que lhe são superiores.

Quem assim faz ‘não é um sonhador, mas um pensador’.[10]

O espírito humano é feito para apreciar o impalpável, o imponderável. Portanto, conhecido algo de forma fotográfica — ou seja, de forma absolutamente precisa — o homem parte imediatamente para o mais alto. Ou para o mais baixo: para si mesmo, quando mitifica a si próprio...

O homem nunca se contenta com a reprodução da realidade pura e simples. É uma lei sem exceção. Neste sentido, ‘a lógica e o mito se escoram’.[11]

Um objeto à sombra não muda se passa a ser batido pelo sol. Um objeto em total escuridão ou na luz é idêntico a si mesmo. Mas a luz, que não é ele, acrescenta algo ao que ele é.

Por isso, Edmond Rostand (1868–1918) saudava o Sol dizendo: «Ô soleil! Toi sans qui les choses ne seraient que ce qu’elles sont!».*

* Do Hymne au soleil, em Chantecler: «Ó sol! sem ti, as coisas não seriam senão o que elas são!».

Sem o imaginário, o mítico, o imponderável, as coisas não seriam senão aquilo que elas são... ou parecem ser.

 

7. Viver em função do maravilhoso: verdadeiro entretenimento

— Mas a necessidade de repousar da luta e do trabalho não explicaria essa evasão rumo ao maravilhoso?

A objeção tem algo de verdadeiro. Não que a busca do maravilhoso fosse uma espécie de evasão da luta, do trabalho, da realidade; nesse ponto a objeção não procede. O que ela tem de verdadeiro é que esta maneira de ver a vida é realmente repousante, e até o é sabiamente. Mais. É a ‘única coisa que torna a vida verdadeiramente entretida’.[12]

Quem vive em função do maravilhoso ‘encontra uma luz que dá às coisas uma dimensão, uma perspectiva, um colorido em virtude do qual a vida se torna interessante’.[13]

Porém, quando a pessoa não tem isto, ‘é mais ou menos como a fotografia antiga, sem cores, comparada com a fotografia colorida de hoje. Esta tem outra vida que não tem, ao menos por alguns lados, a fotografia sem cor’.[14] Quem não vive em função do maravilhoso, só dispõe de joguetes, como que ‘cacoetes que só podem entreter uma pessoa que não tem uma vida entretida. Não são a verdadeira distração’.[15]

 

8. O problema seria descer, não subir!

Para quem vive no patamar da contemplação sacral, o problema seria descer, e não subir!

Em artigo para o livro Plinio Corrêa de Oliveira dez anos depois… (Associação dos Fundadores da TFP, 2005, pp.185-186), Fernando Antunez, que foi seu secretário durante 18 anos, narra o seguinte fato:

Em meados da década de 70, Dr. Plinio dirigia uma reunião em que tratava de assunto muitíssimo concreto, a partir do qual subiu a altíssimas considerações. Perguntaram-lhe então como ele conseguia fazer isso. Ele respondeu que a pergunta deveria ser outra: como é que, contemplando, ele conseguia ver coisas tão práticas. Não como conseguia subir, mas descer. E acrescentou que, sem deixar os altos patamares da contemplação, era de lá que analisava os pequenos episódios, fazendo como certos pássaros que, para pegarem sua presa, voam mais alto para depois, em vôo fulminante, pegar o que estava na mira. Como uma gaivota, por exemplo, “pescando” seu peixe que estava se deslocando tranqüilamente nas águas.

A nossa dificuldade, está claro, era compreender algo que na realidade era o oposto do que pensávamos que se dava em sua mente. Poder-se-ia dizer que a mentalidade dele estava constantemente em um inter-relacionamento entre o temporal, o metafísico e o espiritual. E isto lhe permitia passar de um a outro campo, com uma agilidade e uma facilidade toda natural.

Fernando Antúnez

— A passagem das considerações materiais para as espirituais não exige grande esforço?

Talvez, para um principiante. Mas para quem se exercitou na contemplação sacral, não! Porque, ‘nas coisas materiais, o alicerce está em baixo’. Porém, ‘nas espirituais, o fundamento está em cima’.[16]

Assim, para quem vive no patamar da contemplação sacral, o problema seria descer, e não subir!*

Não obstante, se se admite que a trans-esfera é uma visão transcendente da realidade, é possível viver mergulhado nela, sem prejuízo de ir ao concreto quando necessário. O mesmo se pode dizer das demais vias de acesso à contemplação sacral.

Esta deveria ser, portanto, a forma de contemplação de um homem de ação.

 

 

Fontes de referência:

[1] 20-3-1977. [2] 20-3-1977. [3] Catolicismo, nº 130, outubro de 1961. [4] Revolução e Contra-Revolução, Parte I, cap. VI, 1 B. [5] 18-11-1973. [6] 22-4-1967. [7] Sem data. [8] 28-11-1976. [9] 27-7-1976. [10] 27-7-1976. [11] 21-6-1977. [12] 14-8-1977. [13] 1º-7-1979. [14] 14-8-1977. [15] 14-8-1977. [16] Sem data.