Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Sir William Beveridge em um chinelo

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 30 de março de 1947, N. 764, pag. 5

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Durante a blitz aérea de 1940 (dos nazistas contra a Inglaterra), um cidadão entrou em um ônibus e, depois de sentar-se, colocou cautelosamente sobre os joelhos um grande embrulho. – “Que traz aí com tanto cuidado?” – perguntou-lhe o condutor. – “Uma bomba relógio que caiu em meu quintal e que levo para exame da polícia”. – “Good gracious!” exclamou o condutor. Não vê que é uma grande imprudência trazer esta máquina infernal sobre os joelhos? Ponha o embrulho debaixo do banco imediatamente!”

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Também aqui no Brasil temos um grande número de bombas de retardamento (bombas relógio, n.d.c.) colocadas displicentemente sobre os joelhos do público, ou então empurradas para debaixo dos bancos, como meio prático de se descartar de um perigo pelo processo simplista de fazer abstração dele.

Neste caso se acha o decreto-lei número 7.526, de 7 de maio de 1945, que unificou as nossas instituições de previdência e estendeu a obrigatoriedade do seguro social a todos os habitantes do território nacional.

Trata-se de um verdadeiro plano Beveridge brasileiro, com a diferença seguinte: enquanto o plano Beveridge, ao surgir, não passava de um simples relatório apresentado ao estudo dos órgãos técnicos competentes e aos debates no Parlamento britânico, sendo ademais divulgado pelos modernos processos publicitários não somente na Inglaterra, mas no mundo inteiro, a nossa lei orgânica de serviços sociais, preparada sigilosamente nos gabinetes governamentais, surgiu de repente, sem nem sequer serem ouvidos os órgãos e institutos interessados, cabendo à opinião pública apenas o direito de saber que estavam revogadas as disposições em contrário e que caberia uma multa de cem a dez mil cruzeiros a quem ousasse infringir as disposições do aludido decreto-lei “ou dos decretos executivos expedidos em consequência dele”.

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O curioso é que, cerca de sete meses antes da promulgação de tão importante medida legislativa, se reunia em São Paulo a primeira semana brasileira de Previdência e Assistência Social. E uma das mais importantes conclusões desse certame de técnicos brasileiros no setor da Previdência e da Assistência Social foi no sentido de que “em face da atual experiência brasileira, assim como de razões técnicas, históricas e jurídicas, não se proceda no nosso país à unificação administrativa das instituições de seguro social, sob os aspectos pessoal e territorial”. Por aí se vê a que frangalhos ficaram reduzidos os movimentos de opinião no Brasil.

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Poderíamos acrescentar que embora o Estado não deva ser relegado à função de simples gendarme, como prega a escola liberal, pois tem a obrigação de promover o bem comum, por outro lado, não deve tornar-se totalitário, o que acontece quando tenta preencher todas as funções sociais, com o que recairá no erro do individualismo, pois eliminando o conjunto das associações em que se escalona a sociedade, fará com que se defrontem a sós os indivíduos e o Estado.

“Compreendam bem, os que governam - dizia Pio XI na Quadragesimo Anno - quanto mais vigorosamente reine a ordem hierárquica entre as diversas associações, ficando de pé este princípio da função supletiva do Estado, tanto mais firme será a autoridade e o poder social e tanto mais próspera e feliz a condição do Estado”.

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Administrador do bem comum, o Estado deve proteger, velar e garantir os direitos individuais e coletivos. Não se conclui daí que o Estado deva prover a tudo em todos os domínios da atividade humana.

E assim como o Estado procede ilícita e injustamente quando estabelece, como na Alemanha nazista ou na Rússia soviética, o monopólio da educação da mocidade, usurpando os direitos da Igreja e da família, do mesmo modo age totalitariamente quando pretende substituir por uma pãcorporação estatal os vários órgãos associativos de iniciativa privada, ou as verdadeiras autarquias e outras entidades destinadas à previdência e assistência social das várias classes e profissões.

Dir-se-á que um órgão como o ISSB, destinado a assegurar os serviços de previdência e assistência social em todo o Brasil e a todos os seus habitantes, dir-se-á que tal órgão não tem caráter de monopólio nem tende a destruir a iniciativa privada nesse setor. Mas sua própria existência acarretará inexoravelmente uma concorrência com a qual ninguém poderá competir.

E o decreto-lei, como está redigido, é uma arca de proporções tamanhas, que tudo pode abarcar, desde as diferentes modalidades de seguros sociais, até a assistência médico-hospitalar, compreendendo a assistência social também a alimentação, vestuário e habitação dos segurados.

Que aspecto assumirão as formas dessa assistência destinada a melhoria das condições de alimentação, de vestuário, de habitação, de serviço médico-hospitalar? O texto é tão vago e tão elástico que dependerá em desmesurada medida do arbítrio de quem estiver à frente desse superministério e dessa tremenda potência que vai ser o ISSB. Tenham seus diretores mentalidade totalitária e poderão com toda a aparência de legalidade fazer o Brasil começar por onde Rússia soviética tende a terminar: começaremos pelo socialismo do consumo, quando no leste europeu não passaram inicialmente do socialismo da produção...

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Esse providencialismo do Estado na vida social e econômica é o retrato fiel daquele totalitarismo socializante que dominou o Império Romano no período de decadência, quando as reduções do preço do trigo e de outras utilidades, e mesmo sua distribuição grátis à plebe começaram a constituir um direito do cidadão romano. Não faltaram naquela época, como não faltam agora os Celio e Dolabela para propor a própria extinção dos alugueis de casa... ou a transformação de todos os proprietários em inquilinos do Estado.

Nesse artificialismo jurídico, em que o Estado é que cria o direito, em vez de ser o seu protetor, de nada valem as reais necessidades do povo e a voz do bom senso e da justiça social. O importante é que sejam obedecidos cegamente os planos de subversão social, conforme “sugestões” que se espalham misteriosamente pelo mundo inteiro, num sincronismo impressionante.

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E aqui é que se impõe a imagem da bomba de retardamento sob o banco. Por enquanto se trata apenas de um decreto inócuo e inoperante como existem centenas por aí. Mas apesar de ter sido lavrado no período ditatorial, ainda não foi derrogado, dando, pelo contrário, sinais evidentes de vida, pois está o ISSB realizando os inquéritos preliminares e os estudos técnicos a que fazem menção as disposições transitórias, como base para sua implantação.

É imperioso, portanto, que saiamos da inércia com que costumamos encarar nossos mais sérios problemas e que abramos em torno dessa tão pouco conhecida lei orgânica dos Serviços Sociais do Brasil os debates que no mundo inteiro o plano Beveridge suscitou com tanta celeuma.

A importância das repercussões econômicas, sociais e políticas desse plano brasileiro, que potencialmente nos ameaça, está a exigir esse trabalho por parte daqueles que realmente apresam a terra de Santa Cruz e a liberdade dos filhos de Deus, e que não se conformam com a substituição das instituições livres por um burocratismo estatal que tudo açambarcará.


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