Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Uma Sociedade das Nações vitalmente cristã

 

 

 

 

 

Legionário, 22 de abril de 1945, N. 663, pag. 5

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Presenciamos atualmente a uma das maiores conjurações urdidas contra a Cristandade no curso da História. O Estado leigo, liberal, nazista ou comunista, que às vezes pela boca de seus corifeus procura hipocritamente ostentar vestígios de princípios cristãos, cava um abismo cada vez maior entre a humanidade e seu verdadeiro destino sobrenatural e eterno.

Que fazer contra essas ondas encapeladas que procuram fazer soçobrar o que ainda resta da civilização católica no mundo ocidental? Remar contra a corrente, a qualquer custo, contrapondo a boa doutrina aos princípios perversos que as forças do mal procuram impor ao mundo. E neste sentido continuamos hoje a expor o que sobre a união dos povos escreveu o grande Taparelli (D’Azeglio).

* * *

Mostramos em nosso último número, o nexo necessário existente entre a sociedade religiosa e a universal. Portanto, ao tratar desta em concreto, devemos estudá-la na sociedade religiosa universal.

Ora, entre todas as religiões, uma somente no mundo se nos antolha revestida do caráter e do nome de universal: a Igreja Católica. Ela é a única que assim se pronuncia: “Eu sou una no meu ser, infalível na doutrina, santa na organização, indefectível na subsistência”. Ora, estes são, sem dúvida, os elementos de uma sociedade religiosa apta para realizar os desígnios de Deus acerca da sociedade natural. Portanto: ou a sociedade natural nenhuma perfeição pode alcançar na terra, ou deveremos confessar que não a pode alcançar fora da Igreja Católica.

A esta vamos, pois, examinar conforme os princípios da razão.

Não é nosso intento demonstrar sua verdade mas, suposta esta, analisar filosoficamente as múltiplas razões sociais, que ela contém. Por isso, dirigimo-nos primeiro aos católicos desejosos de entender, pelos princípios da razão, as causas da atividade social na sociedade cristã; em seguida, aos próprios infiéis, se eles quiserem compreender qual seja a filosofia do direito cristão, suposta a verdade de seus princípios.

Provaremos, de início, que a religião cristã é, quanto ao seu fim, uma sociedade espiritual; quanto à formação, uma sociedade voluntária e juntamente obrigatória; quanto ao organismo, hipostática mista; quanto à forma deste organismo, sociedade desigual.

Digo sociedade cristã e com isto entendo católica, pois: 1º.) é verdadeiramente cristã só a Igreja Católica, porque em tudo segue a Cristo. 2º.) As seitas heréticas pertencem também de certo modo à nossa sociedade, da mesma sorte que os rebeldes e inovadores pertencem a um Estado.

Portanto, desejando adquirir um conhecimento adequado do direito natural cristão, não devemos omitir suas relações com os rebeldes. Abrangemos, pois, tudo o que se costuma chamar Cristandade. De resto, sendo os hereges uma anomalia dentro da Igreja, de modo nenhum pertencem eles à natureza mesma do nosso assunto. Portanto, quando dizemos Igreja Cristã, é justo que entendamos a Católica.

Passemos agora à demonstração da primeira parte de nossa asserção, isto é, quanto a ser espiritual a sociedade cristã. Com efeito, tem ela por fim estabelecido tender à felicidade eterna, pela crença dos dogmas, pela observância dos preceitos morais, pelo emprego dos ritos religiosos instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ora, aquela felicidade, os dogmas, as virtudes e os ritos religiosos são objetos espirituais.

Logo, a sociedade cristã é espiritual, pois pelo fim se denomina toda a sociedade, que é um meio para conseguir esse mesmo fim.

Demonstraremos agora que essa sociedade é voluntária e ao mesmo tempo obrigatória.

O cristão torna-se parte da Igreja pela crença, e mais perfeitamente ainda pelo amor.

Ora, a Fé e o amor são atos internos que escapam à jurisdição direta da sociedade pública. Por conseguinte, perante a sociedade pública, o Cristão se liga à Igreja espontaneamente. Portanto, a Igreja é externamente sociedade voluntária.

Internamente, porém, o Cristão é compelido a entrar na Igreja, por uma firmíssima persuasão. Ora, ao preceito divino está inerente um direito preeminente a todos os mais, e ao qual não se pode resistir.

Logo, é o dever que leva o Cristão à Igreja. Esse dever ele professa publicamente quando se agrega, e por isso torna-se para ele um dever estrito, e para a Igreja um estrito direito pela evidência do título.

Logo, a Igreja se forma também por um dever. É, portanto, uma sociedade complexa, originada simultaneamente da vontade e da obrigação.

Quanto a ser uma sociedade hipotática mista. Ainda que admita, para falarmos propriamente, indivíduos aderentes por consenso, a Igreja não dissolve por isso, mas até confirma, seus vínculos domésticos, civis, nacionais e outros quaisquer, suposta a justiça deles.

Portanto, se todos os indivíduos, por exemplo, de uma família, consentirem em crer e viver segundo as normas da doutrina cristã, sem dúvida a Igreja os alistará entre os seus e confirmará e sancionará todas as suas relações. Ela, portanto, admite e reconhece, não só os indivíduos, mas também a família, e o mesmo se diga de qualquer sociedade honesta, tendente embora para fins temporais.

Pelo que ela é uma federação de sociedades diversas e por este lado é hipotaticamente heterogenea.

Ora, ela própria, em virtude de seu regime, dispõe seus membros conforme as várias subdivisões das sociedades menores espirituais: patriarcados, províncias, dioceses, paróquias, etc., cada uma das quais é dirigida ao seu fim espiritual, pelo poder emanado de um centro. Ela reúne, pois, uma divisão heterogênea com outra homogênea, sendo assim uma associação hipotática mista.

A Paróquia onde um superior único provê as necessidades cotidianas dos fiéis, corresponde à família. A Diocese à cidade. A Província eclesiástica (no estilo antigo) a uma nação. O Patriarcado a uma Sociedade de Nações.

Quanto a ser a sociedade cristã uma sociedade desigual, assim poderemos demonstrar: o católico adere à Igreja persuadido de que seus pastores têm autoridade e peculiar auxílio para um ensino infalível e preceitos legítimos.

Portanto, ligando-se a ela, reconhece e professa o dever em virtude do qual depende deles, no seu modo de pensar e de agir. Portanto, é uma sociedade desigual.

Temos os seguintes corolários destas verdades:

I – Todas as consequências resultantes essencialmente das propriedades especiais referidas, poderão aplicar-se à Igreja, não menos que as propriedades universais, relacionadas com qualquer sociedade.

II – Será, portanto, absurdo chamá-la uma sociedade invisível, e pretender, em vista disso, que tudo nela se processa por meios espirituais. É próprio de qualquer sociedade humana ordenar os negócios externos, servindo-se para isso dos recursos orgânicos dos sócios e de seus bens materiais.

III – Se antes de sua formação ela depende do consentimento, não será lícito o emprego da força para o recrutamento de prosélitos. Mas se o indivíduo, pelo seu consentimento, torna evidente seu dever para com a Igreja, ela adquire, depois da admissão, um direito estrito de exigir dele tudo o que prometeu. De fato, de um título evidente nasce um direito estrito e, por conseguinte, absolutamente falando, ela poderá usar de coação, para obter a satisfação dos seus direitos.

IV – O seu vínculo social, propriamente falando, não terá força por um contrato, assim como não há lugar para contrato algum à entrada. Muito menos se podem propor condições, ainda que se forme por via de consentimento, a uma sociedade destinada a durar eternamente. O homem, com efeito, não pode impor condições a Deus, ou com Ele estabelecer e rescindir contratos.

V – Tendo-se essa sociedade desigual originado da necessidade ou indigência da verdade, a autoridade suprema tenderá, naturalmente aqui, a colocar-se naquele que é infalível e, portanto, mais apto a alcançar esse bem a que a sociedade aspira.

Isto posto, provaremos que as sociedades doméstica e pública, embora na ordem espiritual, estejam subordinadas à Igreja, conservam e aperfeiçoam entre os cristãos sua liberdade na ordem temporal.

Demonstremos que essas sociedades conservam sua liberdade.

1º.) A liberdade de cada sociedade doméstica ou pública e a independência na orientação para o bem temporal, segundo as leis da honestidade.

Ora, suposto não se afastarem da honestidade, a Igreja por si não tem direito de proibir ou mandar coisa alguma com relação com as funções domésticas ou públicas. Logo, elas conservam sua liberdade.

2º.) Se algum dia abusassem da força, ou por falsa compreensão ou por má vontade, não será esta uma independência honesta.

Ora, somente em tal caso a Igreja impediria a autoridade.

Logo, ela nunca cerceia a legítima independência e por isso elas a conservam.

3º.) As sociedades católicas abraçam a Fé por livre vontade e pelo impulso do dever interno.

Ora, quem cumpre um dever, ao qual já estava obrigado anteriormente, nada perde de sua liberdade.

Logo, nisto conservam-na intacta.

Quanto ao aperfeiçoamento da liberdade:

1º.) A maior perfeição da liberdade humana em sua atividade é a observância da ordem.

Logo, à Igreja nisto somente influi, ao impedir as transgressões.

Logo, aperfeiçoa a liberdade.

2º.) A docilidade dos súditos, principalmente quando firmada pela íntima persuasão deles, é uma grande perfeição para a sociedade e um imenso auxílio para a sua independência dos que governam.

Ora, nenhuma sociedade pode incutir nos espíritos tanta convicção e docilidade, como a Igreja que, pela sua infalibilidade, em toda parte persuade as inteligências, sujeita facilmente as vontades com o ensino das virtudes, principalmente da paciência, com a esperança do prêmio, com as sanções decretadas contra os grandes da terra etc. Portanto, a Igreja aperfeiçoa a independência social.

3º.) Aperfeiçoa-se muito a liberdade dos súditos, diz Montesquieu, quando estes estão certos de que não sofrerão outra coação, a não ser a do direito.

Ora, a Igreja tem em vista somente o direito. Portanto, ela aperfeiçoa a liberdade social.

Podemos, assim, acrescentar que os que acusam a Igreja como coarctora da liberdade dos governos e sociedades parecem ter ignorado que os governos e os povos, livre e espontaneamente, pediram a ela leis, para conseguirem o aperfeiçoamento da ordem e da mútua segurança.

Estes confundem a independência do governante com a independência da força, e preparam, assim, pela reação dos povos, o excídio dos governantes.

Outro corolário é que a lei eclesiástica pode derrogar a civil, sempre que esta se opõe ao bem da sociedade universal, ou viola os direitos dos membros nas sociedades particulares.

Finalmente, poderemos demonstrar que entre os povos católicos se origina naturalmente uma certa etnarquia de forma poliárquica, que tende a colocar no Sumo Pontífice grande parte da autoridade internacional.

Chamamos etnarquia uma sociedade de nações, congregadas para o bem comum, por um impulso natural.

Ora, de uma religião comum entre os povos resulta naturalmente a conjunção dos bens temporais.

E quando uma religião congrega em sociedade visível indivíduos compostos de alma e corpo, estabelece entre eles uma ordem também quanto aos bens externos.

Logo, a Igreja produz naturalmente uma certa etnarquia.

Ademais, os direitos temporais dos povos permanecem completamente independentes dos direitos da Igreja; e, por conseguinte, também as nações conservam entre si uma igualdade nativa.

Logo, a etnarquia cristã é naturalmente poliárquica.

Quanto a dever residir no Sumo Pontífice grande parte da autoridade internacional, isto se prova do modo seguinte: a autoridade tende naturalmente a depositar-se onde há maior aptidão para promover o bem social. Ora, essa aptidão na etnarquia cristã se encontra no Sumo Pontífice. Logo, é nele que a etnarquia cristã tende a colocar grande parte da autoridade internacional.

No Papa, como centro da unidade cristã (católica) encontra-se a autoridade conservadora da Fé, da Lei, da Hierarquia etc. Numa palavra, somente nele se encontra o princípio conservador do Cristianismo.

Ora, o Cristianismo é para a etnarquia cristã causa da existência.

Portanto, o Sumo Pontífice concorre muito para o seu ser, bem este que se deve principalmente conservar.

* * *

Em nosso próximo número veremos quais os corolários da tese que acabamos de demonstrar e quais as principais objeções que podem ser formuladas contra os princípios em que se baseia essa sociedade vitalmente cristã a que alude o grande Taparelli. Veremos entre outras, como se desfaz a objeção corrente no sentido de que se quer com esses princípios restabelecer em nossos dias a teocracia medieval.