Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 15 de abril de 1945, N. 662, pag. 5 |
|
Sobre os escombros da atual conflagração, procuram os estadistas lançar as bases do mundo de amanhã. As tentativas de recomposição política dos povos se multiplicam. Já tivemos a Carta do Atlântico, os princípios firmados em Dumbarton Oaks e na conferência da Criméia. Cogita-se agora da conferência de São Francisco. Os balões de ensaios já soltos parecem indicar, porém, que de nada valeu a lição do atual conflito armado, pois os mesmos erros do passado se esgueiram nas entrelinhas dessas conversações preliminares. Assistimos, nos últimos tempos, a uma completa derrogação do direito internacional, fruto da civilização católica do Ocidente. E será impossível uma recomposição das relações entre os povos, e serão baldados os esforços no sentido de agrupar uma nova sociedade das Nações, enquanto perdurar o divórcio entre os dirigentes da política internacional, movidos por interesses puramente terrenos, e o sentimento religioso dos povos, única base possível para uma união duradoura. É o que nos ensina Taparelli d’Azeglio em seu Curso de Direito Natural, livro velho de um século, mas cujos luminosos princípios, como autorizadamente o afirma Pio XI, ainda hoje são capazes de orientar os trabalhos de reestruturação da sociedade humana. Vejamos, portanto, em síntese quais são, segundo Taparelli, as bases em que se deve assentar uma sociedade das nações. * * *
Luigi Taparelli d’Azeglio (1790-1862) Para uma visão profunda do nexo essencial entre a teoria social e a religião, basta demonstrar dois pontos: - 1º. A sociedade humana, ao se tornar universal, precisa viver numa sociedade religiosa. 2º. Esta deve ser sobrenatural, para satisfazer plenamente esta tendência natural. Comecemos pelo primeiro ponto. Demonstraremos, assim, que a sociedade universal do gênero humano só pode existir moralmente numa sociedade religiosa. Com efeito, uma sociedade requer sempre mais perfeição, à medida do numérico, a tal ponto que, se persevera, se torna por isso realmente mais perfeita, pois que, sem os meios de que necessita, nenhuma coisa perdura. Ora, essa perfeição necessária não pode ser alcançada moralmente, senão em uma sociedade religiosa. Portanto, a sociedade universal deve ser antes de tudo uma sociedade religiosa. Como prova dos fatos, temos o seguinte: as sociedades agrestes não crescem. As sociedades pagãs que às vezes foram coligadas pela força em impérios vastíssimos e semicivilizados, mas tão somente complexos de sociedades, agregadas a uma principal. Como prova metafísica, podemos indicar os requisitos para uma vasta unidade social: a) um grande tesouro de verdades vinculadoras das inteligências, porque é essencial à inteligência humana apetecer para si e alcançar para os outros a verdade e repelir o erro. Disto resulta, que duas inteligências discordes são elementos de cisão, tanto mais funesta quanto mais grave for o objeto controvertido e quanto mais sólidas forem as razões em que cada um julga basear sua opinião. b) Requer-se, além disso, uma grande virtude, proveniente da educação para dobrar a vontade, pois vontades indômitas impossibilitam uma vasta extensão do império. c) Finalmente é preciso força de organismo para coarctar as energias individuais. Ora, esse tríplice incremento social constitui a perfeição social. Portanto, para a suprema unidade, qual é a universal, requer-se entre os homens uma perfeição social. Podemos demonstrar que essa perfeição não é moralmente possível, a não ser numa sociedade religiosa. De fato, não possuindo os que governam um infalível conhecimento da verdade, não podem satisfazer e aquietar a inteligência. Pelo contrário, a religião, em questões momentosas, é a grande tranquilizadora das inteligências, que a acatam. Com efeito, onde encontrarão os homens, fora da religião, uma solução para qualquer problema grave de ordem moral? Onde o conhecimento dos direitos e deveres e da sua sanção? E o seu destino e a esperança da vida futura? Não só, mas os próprios negócios temporais encontram na unidade religiosa um eficacíssimo subsídio, pois ela é a defesa mais robusta dos direitos civis, por ela garantidos até no recesso das consciências. Daqui resulta que se outras religiões penetram numa sociedade vinculada pela verdadeira religião, cedo ou tarde ela será dividida em muitas facções, como estão a demonstrar centenas de exemplos. E isto vale, muito mais ainda, quando a religião é considerada, como o deve ser, o mais excelso dos deveres. Disto consta como a religião provê integralmente à unidade, não só da inteligência, mas também da vontade, formando os afetos e os costumes, com uma educação e instrução tanto mais excelente quanto mais íntimo é o princípio com que move as multidões. Ela é, portanto, a melhor e a mais verdadeira educadora e formadora dos povos. Poderão os governantes, sem ela, oprimir os povos pela violência, nunca os poderão educar. E não obstante é desta educação que deve derivar a perfeição do organismo social com relação aos governantes e aos ministros, ou ao povo. O governante, se não tender para a ordem em uma vontade intencionada, terá mil expedientes e estímulos para a opressão. Os ministros, depois de o imitarem na tirania, esforçar-se-ão por lhe arrebatar o poder, servindo-se da mesma autoridade e meios que se lhes confiaram. Quanto ao povo sob o iniquo regime da opressão, destituído das virtudes da paciência, conformidade com a vontade divina e da esperança, que somente a religião incute, só se deixará ligar aos que governam, por meio de cadeias sempre por eles reforçadas, as quais ele tentará sempre quebrar. Eis o organismo social sem religião. Sendo assim, concluo: não ê possível perfeição da sociedade universal sem religião, porque sem esta faltará unidade do espírito, educação do coração e o vínculo do organismo. Direi mais, contudo. A religião não só ajuda a propensão natural do homem para a sociedade universal, governando e ordenando suas tendências; contém, além disso, o elemento da universalidade, que lhes comunica o caráter essencial de associação de todos os homens. De fato, como se demonstra na teologia natural, a unidade essencial da religião provem da unidade da verdade e da justiça. Portanto, se a parte essencial da religião consiste no conhecimento de nossa dependência de Deus Criador e no cumprimento de seus decretos, uma vez que Deus é um, uma é sua intenção, e um o impulso com que a natureza nos move a cumprí-las, deve ser também um só, em todos os homens, o movimento religioso. Ora, a unidade de religião constitui entre os homens uma sociedade. Com efeito, muitos homens, em convergência para um mesmo fim conhecido e procurado, são uma sociedade. Sendo assim, também a atividade de todos os homens, de acordo com as relações mútuas em ordem ao objetivo imediato da realização dos planos divinos, em que consista o bem comum de todo o gênero humano, será necessariamente uma sociedade do gênero humano. Mas esta sociedade é religiosa, pois se acomoda a um objetivo essencialmente idêntico ao da mesma religião. Ela é porem universal de direito, pois todo homem está obrigado ao desempenho dos deveres religiosos, dentro da verdadeira religião. Assim, parece-me ter demonstrado o que propusera, isto é, que se a sociedade tende naturalmente a tornar-se universal, ela tende simultaneamente a tornar-se religiosa. * * * Passemos agora ao segundo ponto, demonstrando que a sociedade universal não se pode realizar em toda a sua perfeição sem a ajuda de uma religião sobrenatural, e que, por conseguinte, se esta for revelada, a ela tenderá de fato, como que naturalmente, e por obrigação igualmente natural deverá abraçá-la. Tomamos a palavra naturalmente não no sentido que haja uma conexão natural absoluta entre a sociedade universal e a ordem sobrenatural, mas no sentido que, tendo a sociedade universal uma tendência natural ao seu bem “in genere”, tem pelo próprio fato uma capacidade de tendência para a ordem sobrenatural e a se vislumbrar como possível de realizar esse bem numa ordem superior à natureza, a essa ordem tenderá de fato. Segue-se daí que, se essa ordem lhe for revelada por Deus, terá que submeter-se a ela, por obrigação igualmente natural. É o que vamos provar, a seguir. A unidade natural, juntamente com a religiosa, para a qual tende a natureza, exige, como antes dizíamos, a unidade do juízo acerca da verdade, da vontade acerca do bem, do organismo acerca do que deve agir. Ora, sem o concurso sobrenatural, é moralmente impossível tal unidade na sociedade universal. Logo, o concurso sobrenatural é moralmente necessário, Pelo que, se o auxílio supremo nos é benignamente oferecido, obriga-nos a tendência natural a recebê-lo e a usar dele. A unidade na verdade, não pode ser obtida senão pela evidência racional ou por autoridade infalível. Ora, à sociedade natural falta uma e outra. Logo, é moralmente impossível essa unidade, sem auxílio do Alto. Ademais, a unidade no bem não pode obter-se senão pela autoridade, que conserve inviolável esse bem. Ora, na sociedade humana, a autoridade de si mesma tende a exceder-se. De fato, a sociedade civil, confiando ao superior uma autoridade inelutável, que não exclui as ambições dele, tende a produzir uma tirania. É verdade que, numa sociedade hipotética, sempre se poderá moderar esta tendência, com o freio da autoridade superior; mas, na sociedade universal de que nos ocupamos, faltará um superior mais que universal, para quem se possa apelar. E se alguém quiser apelar para a sociedade religiosa natural, esta, como não tem a evidência e a certeza dos princípios, o poder para defendê-los e o apoio contra a violência, ou errará nos dogmas ou os calará, ou será trucidada e destruída pela força ou mesmo acabará por todos estes três modos. Pelo contrário, a religião sobrenatural, não somente proporciona infalibilidade no conhecimento do bem, mas também incute energia e valor para professá-lo ante as tirânicas ameaças de espadas e suplícios. Além disso, com promessas infalíveis, ela afiança a existência de uma sociedade em que sempre será sagrada a imposição dos preceitos morais. Segue-se que ela somente poderá proteger a unidade social orgânica, que consiste numa justa relação das pessoas sociais. Ora, essa justa relação não será possível sem a retidão moral dos legisladores de quem depende. Logo, humanamente falando, nunca se poderá realizar uma sociedade universal, sem o auxílio supremo. Existe na natureza humana uma tendência conatural para todo bem próprio e possível de se realizar. Ora, a ordem sobrenatural revelada ao homem, é um bem próprio dele e possível de realizar ainda que com o auxílio de Deus. Logo, se a ordem sobrenatural for revelada por Deus, a ela o homem tenderá de fato, como que naturalmente. O homem tem o dever natural de abraçar tudo que diz respeito à sua perfeição temporal e eterna. Ora, a religião sobrenatural, por ser moralmente necessária à sociedade universal, é também moralmente necessária à sua completa perfeição temporal e eterna. Logo, o homem tem um dever natural de abraçar a religião sobrenatural, quando lhe for revelada. Devemos, portanto, concluir que a sociedade religiosa sobrenatural foi parte integrante nos planos de Deus, quando Aquele Deus Eterno criou o homem, e lhe semeou no coração os germes da sociedade e a perfeição da mesma. A perfeição, de fato, é um complemento e um fim, sem os quais não se pode entender nem princípio nem movimento. É, portanto, manifesto que será incompleta a síntese das doutrinas morais, se não se atender com diligência à sociedade religiosa. Pois que vêm a ser as doutrinas morais senão o desenvolvimento ulterior do primeiro princípio moral, numa série teórica, ou aplicada de suas consequências? Seria imperfeita a teoria de direito que só tratasse do individual e doméstico, postergando o direito político e internacional. Assim, seria também imperfeita a que, tendo exposto estes dois últimos, fechasse o seu curso e não avançasse para uma exposição do direito universal ou católico. * * * Patenteado, assim, o nexo necessário entre a sociedade religiosa e a sociedade universal, é evidente que, querendo tratar desta em concreto, deve-se estudá-la na sociedade religiosa universal. É o que faremos em nosso próximo número, mostrando, com Taparelli, que de todas as religiões, uma somente no mundo se acha revestida do caráter e do nome de universal: a Igreja Católica. Ela é a única que assim se pronuncia “Eu sou una no meu ser, infalível na doutrina, santa na organização, indefectível na subsistência.” Ora, estes são, sem dúvida, os elementos de uma sociedade religiosa apta para realizar os desígnios de Deus acerca da sociedade natural. Provaremos que ou a sociedade natural nenhuma perfeição pode alcançar na terra, ou deveremos confessar que se não pode alcançar fora da Igreja Católica. |