Plinio Corrêa de Oliveira

 

União

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 24 de março de 1940, N. 393

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Na belíssima Carta Pastoral que dirigiu a seus diocesanos, S. Exa. Rev.ma. o Sr. Arcebispo Metropolitano [D. José Gaspar de Afonseca e Silva (1939-1943), cujo lema de seu brasão episcopal era "Ut unum sint - para que todos sejam um", n.d.c.] teve uma atitude muitíssimo expressiva que, por não ter sido talvez suficientemente notada, bem merece um comentário.

Não ignorava o novo Pastor que, infelizmente, em sua Arquidiocese como hoje em dia em todas as grandes cidades, fervilham heresias, pululam imoralidades, e se articulam, subtis e tenebrosas, as tramas dos inimigos declarados e ocultos da Igreja. Entretanto em sua primeira mensagem não quis S. Exa. Rev.ma lembrar-se de nada disto. Deixando para mais tarde o exercício dos rigores do juiz e da energia do generalíssimo, quis apresentar-se aos seus diocesanos exclusivamente como Pai, lembrando, por sua mansidão, as palavras com que o Profeta antevia a entrada de Nosso Senhor em Jerusalém, na festa de Ramos: “Ecce rex tuus pacificus... eis aí teu Rei pacífico.”

Não obstante, ao mesmo tempo que fechava os olhos a tantos fatos dignos de censura e estendia as manifestações de seu amor até aos próprios infiéis, ele teve em sua Pastoral duas ameaças fortes, enérgicas e carregadas de rigor. E uma delas foi para os fautores de discórdia dentro dos meios católicos.

Penso não ser necessário dizer mais do que isto para provar até que ponto um vivo espírito de união e de colaboração corresponde aos desígnios daquele que, para o “LEGIONÁRIO” como para todos os católicos de São Paulo, é a lei viva, e a encarnação da própria Igreja Católica. É com o intuito de cooperar neste sentido que registro aqui algumas reflexões.

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Parece-me que o problema da união dos católicos não é uma mera questão sentimental e precisa ser encarado com realismo e espírito prático.

O problema da união se reveste de aspectos diversos, conforme cada ambiente: entre os católicos militantes ele é um; entre os que são simplesmente praticantes, ele é outro; e, finalmente, no que se refere à união dos não católicos à Igreja, os termos da questão variam mais uma vez.

Estudemos hoje a união entre os católicos militantes.

Em meu último artigo, mostrei como se deve entender, em linguagem católica, a união.

Muita gente supõe que a união consiste no convívio indiferente e indolente de elementos que ideologicamente são heterogêneos e até antagônicos. Uma tal união não é senão a caricatura da união pregada pelo Santo Evangelho. A verdadeira união em Nosso Senhor Jesus Cristo é a convergência plena das almas que professam integralmente a mesma Fé, vivem a mesma vida da graça e praticam os mesmos mandamentos.

Não há verdadeira união entre os católicos se alguns deles se afastam da vida da graça, que se haure na frequência dos Sacramentos e na prática séria da vida interior.

Não há verdadeira união entre os católicos se seu modo de vida, de todos eles, não for idêntico em tudo, espelhando cada qual, segundo sua vocação, as mesmas normas contidas no Santo Evangelho.

A verdadeira união dos católicos só existe quando estão todos unidos à Igreja. Pensar como a Igreja pensa, viver da vida sobrenatural da Igreja e agir sempre e por toda a parte como a Igreja manda, é na realização deste tríplice programa que os católicos podem e devem encontrar a verdadeira união.

O dulcíssimo apostolado da união deve consistir em debelar nos círculos católicos, e não raro entre os próprios católicos militantes, certos erros que, frutos da ignorância religiosa e da má formação, diminuem a união das almas com a Igreja. É esta uma condição vital de fecundidade para a Ação Católica. A Santa Igreja é a vinha e nós somos os sarmentos. Quanto mais estivermos unidos a Ela pela inteligência, pela vontade e pela vida, tanto mais abundante serão os frutos que poderemos fazer brotar da vinha do Senhor.

Esta preocupação de unir mais e mais os católicos militantes à Igreja se impõe por um duplo motivo.

De um lado, o primeiro de nossos deveres é para com os que estão mais próximos de nós pela Fé. Se a caridade material deve começar em casa, e na própria família, assim também a caridade espiritual deve começar não só em nossa casa, junto aos que são nossos irmãos pelo sangue e pela natureza, mas ainda na nossa Casa espiritual que é a Igreja, junto ao que são nossos irmãos na Fé, por obra da graça.

Por outro lado, não vejo meio mais urgente, mais eficaz e mais seguro de desenvolver um amplo apostolado de conquista do que de orar e trabalhar para que se integre na plenitude do espírito da Igreja essa multidão de católicos militantes existentes na Arquidiocese. Já tenho tido ocasião de repetir mil vezes que, segundo uma estatística já antiga, e, portanto, hoje superada pelos constantes acréscimos dos sodalícios religiosos, há em São Paulo 150.000 pessoas filiadas a associações católicas. Imagine-se este imenso exército, abrasado de sede de apostolado em consequência de uma formação esmerada e autêntica: que benefícios não se poderia esperar dele em prol da salvação das milhares de almas que, nas trevas da heresia e da ignorância, jazem hoje longe da Igreja?

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Um homem vale pelo que valem suas convicções e pela firmeza de sua vontade. Se quisermos realizar um programa de união, deve ele consistir em coordenar fortemente os espíritos em torno das mesmas verdades e de educar vigorosamente as vontades na prática das mesmas virtudes.

Ora, não há outro modo de se conseguir isto, senão por meio da pregação insistente de uma verdade que, para os católicos, é chave que lhes franqueia todas as outras. Um amor esclarecido, fundamentado, lúcido, entusiástico, incondicional e intrépido dos católicos para com a Igreja, deve levar-nos a pensar em tudo e por tudo como Ela pensa, agir como Ela age, e sentir como Ela sente. Isto obtido, estará realizado em sua medula nosso programa de união.

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A este propósito, é preciso acentuar que uma verdadeira união dos católicos só pode ser obtida se tivermos em vista que na Igreja, tanto quanto na Casa do Pai Celeste, “há muitas moradas”.

É interessante notar como na Igreja, ao par de uma inflexível e inquebrantável unidade de doutrina, há grandes variedades nas coisas contingentes. Esta variedade começa por se fazer notar em assuntos dos mais centrais, como seja, por exemplo, a liturgia. Como ninguém ignora, é grande a variedade das liturgias existentes na Igreja. Ao par disto, muitas são as Ordens Religiosas ou as Dioceses do rito latino que conservam, com a aprovação da Santa Sé, pequenas variantes litúrgicas que lhe são peculiares. No teor de vida e na espiritualidade das Ordens Religiosas, quantas diferenças! São variedades harmônicas que, longe de se contradizerem, se completam. Mas nem por isto deixam de ser variedades que mostram como é rico em tonalidades e aspectos o espírito católico.

Se todas estas variedades existem licitamente dentro da Igreja, e constituem para Ela um ornamento, deve-se compreender que a Ação Católica não deve procurar reduzir e uniformizar entre seus membros estas múltiplas manifestações de vida espiritual. Pelo contrário, firmando fortemente a unidade em tudo que é necessário, deve ela deixar uma santa liberdade naquilo que constitui, não apenas uma variedade formosa de aspectos, mas muitas vezes obra direta do Espírito Santo nas almas.

Qualquer trabalho de coordenação dos católicos deve opor-se intransigentemente a todas as falsas espiritualidades, todos os exageros, todas as deformações de piedade. Mas seria uma exorbitância e um erro lamentável pretender impor uma espiritualidade única, um tipo único de vida de piedade ou de vida interior.

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Finalmente, ainda há um ponto a acentuar.

Seria uma ingenuidade supor que aos católicos militantes basta uma unidade de formação. Esta unidade é essencial. Mas não é tudo. É necessário que dela decorra uma séria unidade de ação.

A este propósito, convém lembrar que a identidade dos princípios doutrinários não é suficiente para assegurar aos homens uma efetiva unidade de movimentos. Tão complexa é a realidade contemporânea, que quando os espíritos passam da ordem doutrinária para o campo da ação, muitas vezes são levados a divergir entre si sobre o modo de ajustar os fatos aos princípios.

Evidentemente, jamais será possível, neste terreno, reduzir os espíritos a uma unidade completa. Entretanto, é certo que grandes divergências se poderiam evitar se, entre os elementos católicos, houvesse um sistema de articulação mais metódico e inteligente.

A realidade é que, sendo inúmeros os problemas a resolver, cada qual se consagra inteiramente à sua esfera de atividade, nela se especializa, e com isto perde frequentemente a visão de conjunto dos fatos.

Daí certos erros frequentes, auxiliados pelas fraquezas a que tão facilmente nos prestamos. Assim, é às vezes difícil exigir das obras particulares um certo sacrifício em benefício de uma iniciativa coletiva. Por que? Porque, perdida a visão de conjunto, cada qual supõe que sua obra é a mais importante de todas, e considera uma sonegação injusta o sacrifício que se lhe pede.

Outras vezes, trata-se de restabelecer uma grande obra de conjunto. As pessoas responsáveis pela direção da obra tomam uma certa orientação, e as críticas pululam por todos os lados. Por que? É que tendo cada qual começado a se preocupar com aquele problema geral apenas naquele momento, evidentemente as incompreensões são inúmeras.

Urge estruturar de tal modo o movimento católico que a compreensão recíproca entre os que trabalham nos diversos setores da Ação Católica, das obras e associações auxiliares, seja levada ao máximo.

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Finalmente, como já ficou dito, é obvio que nem sempre se conseguirá reunir todos os espíritos em torno dos mesmos pontos comuns. Mas, como bem disse um santo - Santo Inácio de Loyola se não me engano - a obediência consiste em obedecermos aos superiores quando suas ordens não concordam com as nossas idéias particulares. Porque não há mérito em obedecermos quando estamos de acordo com nossos superiores.

Assim estruturado o movimento católico, é ou não é verdade que dele se poderá dizer que pela integridade da doutrina, será “pulchra ut sol”, pela pureza de sua vida será “electa ut luna” e pela rijeza de sua ação será “terribilis ut castrorum acies ordinata”?


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