Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Mensagem de Natal - II

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 7 de janeiro de 1945

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Em nosso último artigo, comentamos a "Mensagem de Natal" do Santo Padre Pio XII, mostrando a gênese do grave problema que, naquela alocução, o Sumo Pontífice procurou resolver.

Desde a Revolução Francesa, ou antes disto talvez, se delinearam entre os católicos duas correntes opostas. Uma, em nome dos princípios da caridade, pleiteava a reforma política e social do mundo, para chegar a uma distribuição mais ampla dos proventos e honrarias que tocavam então à classe aristocrática. Outra, em nome do princípio da autoridade, se opunha a esse movimento nivelador, no qual via a destruição de toda a contextura social, a imersão lenta e catastrófica do Ocidente no caos da mediocrização e da anarquia.

A cada uma dessas tendências, correspondia uma posição política exclusivista: uns eram monarquistas, e não admitiam que houvesse católicos nas fileiras republicanas. Outros eram republicanos e não admitiam que houvesse católicos nas fileiras monarquistas. Como sempre faz, a Igreja deixou que as discussões corressem. Como tantas e tantas outras questões teológicas, este problema maturou na polêmica, e por fim Leão XIII, julgando que a controvérsia elucidara inteiramente os múltiplos aspectos da questão, deu a decisão da Santa Sé. Os católicos podiam ser igualmente monarquistas ou republicanos. Apenas deviam exigir que a forma de governo porque pugnassem, fosse conforme aos princípios da Revelação e do Direito Natural. Com isto, restabeleceu-se uma paz fecunda. Entre os maiores dons que Nosso Senhor deu à humanidade, nesse escrínio de infinito valor que é a Igreja Católica, está a Infalibilidade Pontifícia.

Os outros dois são, a meu ver, a Sagrada Eucaristia e a Santíssima Virgem. O magistério da Igreja tem, entre outros efeitos salutares, esse de garantir a união dos fiéis. Tendo a Igreja falado, a questão está encerrada. Assim, a unidade de espírito se restabelece. E a unidade de espíritos é a raiz bendita da qual brota a flor preciosa da concórdia. Foi o que sucedeu. Todos os espíritos se reconciliaram. E se voltaram resolutamente para a faina inadiável do apostolado social.

* * *

Deu-se isto no pontificado de Leão XIII. Sucedeu-lhe o grande e santíssimo Pio X, sob cujo comando os católicos de todos os matizes batalharam valorosamente contra as leis anticlericais da III República francesa. O pontificado de Bento XV foi todo ele absorvido pela guerra. Sob Pio XI, a divisão renasceu.

De que maneira? Leão XIII dissera que todas as formas de governo eram legítimas em si, e sua eficácia para promover o bem comum dependia da conformidade de sua legislação com o direito natural e as verdades reveladas. Liquidada a questão de princípios, aparecia uma questão de fato: as democracias, não mais consideradas em tese, mas como eram na prática, entre os povos ocidentais, estavam de fato estruturadas segundo a ordem natural? Com a restauração dos estudos escolásticos sob Leão XIII, com as grandes encíclicas sociais desse Papa, com as diretrizes de ação sapientíssimas e práticas de Pio X, às quais Bento XV ainda trouxe muito acréscimo inteligente e oportuno, o campo de estudos do direito natural se dilatara imensamente. Mas certas questões continuavam discutidas. Entre elas, a mais palpitante era a seguinte: dentro de que medida a ordem natural permite que o povo se associe à direção do governo, nos países democráticos?

Para dar neste assunto o simples "status questionis" seria preciso escrever, não um artigo, mas um livro, tantos são os aspectos doutrinários, e as hipóteses concretas que se devem considerar antes de resolver o problema. Portanto, analisemo-lo simplesmente do ponto de vista histórico e político.

Com o tratado de Versailles, e os "acordo-satélites" de St. Germain, St. Cloud, Rambouillet etc., tinham ruído por terra quase todas as monarquias europeias. Isto significara o afastamento, da direção política do Ocidente, de toda a aristocracia na Europa continental. Na Rússia, na Alemanha, na Áustria, Hungria, Polônia, Suíça, França, Portugal, alguns anos mais tarde na Espanha também, o poder público se deslocara das mãos dessa classe para a dos burgueses. "Os burgueses", que significava propriamente isto? Um conjunto eclético de sumidades da vida bancária, intelectual, industrial, heróis da bolsa, "grands seigneurs" do comércio, professores investidos em uma espécie de mandarinato intelectual nas universidades, jornalistas e parlamentares dispondo a seu talante da opinião pública, e chefes eleitorais manipulando à sua guisa os resultados das eleições. Essa gente provinha de todos os quadrantes. Ao lado de alguns destroços da antiga aristocracia, que haviam sobrenadado no dilúvio, encontravam-se os famosos condes da indústria, antigos copeiros ou cocheiros, enriquecidos no comércio. Ao lado de sábios de indiscutível valor, encontravam-se os demagogos brilhantes e ocos que haviam logrado ingresso nas universidades e nas Academias de Letras em virtude de mil estratagemas políticos. Mas essa massa eclética estava sabiamente articulada por dentro. E todos os cordéis dessa articulação vinham parar nas mãos de alguns potentados financeiros.

Qual a razão disto? Em última análise, o grande poder pertencia ao povo. Ora, o povo, considerado segundo certos processos de sufrágio, é a massa. E a massa de homens se porta, frequentemente, de modo muito lamentável... de modo mais lamentável, do que se portaria cada homem isoladamente. O domínio da massa chegou a ser tão grande, que um dos maiores comentadores da Constituição norte-americana, James Bryce, chegou a escrever que o poder da massa sobre os órgãos de governo nos Estados Unidos era comparável ao do sultão turco sobre os escravos. Isto, para Bryce, era um elogio!

No que deu, praticamente, esse domínio da massa? A massa é um ser anônimo e surdo. Ela só tem olhos para ler o que escrevem os jornais, só tem ouvidos para ouvir o que dizem as emissoras de rádio. Com efeito, sem jornais, sem rádio, como falar à massa? E sem meios de falar à massa, como influenciá-la?

Ora, os rádios e os jornais não pertencem aos mais inteligentes, nem aos mais cultos, mas aos que possuem o dinheiro. Assim, o intelectual só fará carreira se ele tiver à sua disposição o jornal ou o rádio dos ricaços. Os ricaços, reciprocamente, só franquearão o rádio ou o jornal aos intelectuais que digam o que eles quiserem que se diga. Ninguém pode deixar de ver, portanto, que o intelectual – mesmo algum muito grande intelectual – se quiser influenciar a massa, dependerá inteiramente do banqueiro.

Mas, dir-se-á, o banqueiro também não depende do intelectual? Do que lhe valerá uma emissora sem locutores nem artistas de valor? Que fará de um jornal escrito por pífios redatores, dotado de corpo de colaboradores sem valor? A objeção impressiona à primeira vista. Mas só à primeira vista. A massa não aprecia, em geral, as sumidades de nenhuma espécie. Um artigo ligeiro, breve, fácil de digerir, a impressiona mais do que um trabalho profundo e completo, encarando os problemas da atualidade, não sob seu aspecto mais interessante – algum aspecto de pormenor – mas sob seu aspecto verdadeiro.

Tomemos, por exemplo, as questões financeiras a que hoje se dá tanto relevo. Todo mundo gosta de ler alguma pequena "charge" espirituosa sobre a falta de batatas, que acabe por mandar plantar batatas a direção de alguma estrada de ferro ou aos graves e importantes demiurgos de algum órgão de controle público. Ninguém gostaria de ingerir um relatório técnico contendo todos os dados referentes ao suprimento de batatas para a cidade de São Paulo. Ora, de fato, em matéria de batatas a verdade só pode ser exposta e demonstrada num relatório massudo, e nunca num suelto rabiscado às carreiras. Isto se dá em todos os outros terrenos.

O jornalismo contemporâneo evoluiu de tal maneira, que habituou o público ao péssimo vício de formar opinião de modo frívolo e infundado, sobre toda espécie de questões. E, para este efeito, os recursos dos grandes talentos são muito menos eficazes do que os talentos de segunda classe, de que falava Veuillot, rabiscadores sôfregos e apressados de artiguetes de atualidade, que perdem seu valor no dia seguinte. "Ça veut être mangé chaud" (isto precisa ser comido quente), dizia Veuillot.

Ora, talentos de segunda classe, as universidades contemporâneas os produzem às grosas, às toneladas. Algumas parecem mesmo não produzir senão isto, e afundar para a segunda classe os talentos de escol que se encontrem por acaso desgarrados nos bancos universitários.

O que acontece então? O resultado é simplicíssimo: os talentos de segunda classe são muitos, os banqueiros são poucos. Logo, os talentos procuram em grande número os banqueiros. Os banqueiros, dispondo de muitos talentos, não precisam de nenhum. Em duas palavras, está aí o drama dos "intelectuais" reduzidos à condição dos lacaios dos banqueiros.

E, assim, chegamos a esta consequência final: os que têm o dinheiro têm os intelectuais, os artistas, os rádios e os jornais, em suma, os meios únicos de chegar aos olhos e aos ouvidos do soberano anônimo, que é a massa. Logo, de fato, todo o poder pomposamente atribuído à massa não pertence a esta. A técnica moderna praticou essa imensa escamoteação: o poder pertence aos que têm os meios de falar à massa, pertence às potências do dinheiro.

Excetue-se disso uma ou outra raríssima empresa de rádio ou de imprensa (e já nem falamos de cinema) que, como, por exemplo, o rádio e a imprensa católica, se fazem ou com o dinheiro de pessoas ricas e abnegadas, ou com o "pé de meia" da multidão, e o panorama é claro e incontestavelmente este.

Ora, à vista disto, pergunta-se: uma democracia assim estruturada, é conforme à lei natural? E, para começar, é ela uma verdadeira democracia? Este é o problema trágico que os espíritos penetrantes começaram a considerar depois da grande guerra.

Veremos como correram depois os acontecimentos, e o papel que fez nisto tudo o totalitarismo, a ação negativa das duas grandes Encíclicas de Pio XI, e a ação positiva da última alocução de Pio XII.


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