Plinio Corrêa de Oliveira

 

- V -

Alguns tipos... nada idealistas!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nenhum amor ao bem é efetivo se, diante de ações clamorosas contra esse bem, a pessoa não se levanta num protesto e numa incompatibilidade terrível contra o mal.45

Plinio Corrêa de Oliveira

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Neste capítulo

Dom Quixote de la Mancha, sonhador caricato criado pelo espanhol Miguel de Cervantes, estava sempre à procura de fantasias inacessíveis, e nunca lembrado das exigências da vida material. Era um falso idealista.

A seu lado estava o guloso Sancho Pança, contrastando com Dom Quixote, de quem é o escudeiro. Este, pelo contrário, só pensa no quotidiano. Ele é um típico não idealista, ao passo que o fogoso e desequilibrado cavaleiro é um falso idealista.

Em torno da problemática do idealismo vão girar, neste capítulo, diversos personagens, desde Che Guevara, típico falso idealista com metas abomináveis, até os avestruzes de nosso tempo, que não querem ver os perigos que os ameaçam. De passagem, vários outros espécimes, todos aberrantes em relação ao verdadeiro idealismo.

Dom Quixote, ridículo e demente

Entre os romances de cavalaria do fim da Idade Média e os do seu apogeu há uma enorme diferença.

O cavaleiro da época áurea é um cruzado. Luta por uma causa, sempre relacionada com a da Igreja Católica.

Ora é um cavaleiro andante, que vai percorrer vales e montes para a defesa das viúvas e dos órfãos, com o espírito de praticar uma obra de misericórdia; ora é um cavaleiro que vai lutar nas cruzadas, para libertar o Sepulcro de Cristo.

Mas o que sempre caracteriza seu espírito é a abnegação, a renúncia.

Luta, mas por amor à cruz.

Os romances de cavalaria lentamente os transformam: o cavaleiro deixa de ser um idealista para ser um homem vaidoso. Relatam-se fábulas absurdas, por exemplo a de um deles que com uma espada fura ao mesmo tempo cinco mouros, como se fossem cinco salsichas; ou então a de outro que saiu lutando contra um rochedo, e que o espatifou de um só lance.

É o espírito desses fatos que Cervantes ridiculariza na pessoa de D. Quixote.

Ao mesmo tempo que o ideal já não é mais o de servir à Cruz, mas fazer uma manifestação de força e de coragem, aparece no romance outra figura, que é a dama. Esta, ainda muito diáfana e pura, já é a dama romântica pela qual ele tem entusiasmos, pela qual luta para satisfazer seu amor.

E a causa do cavaleiro não é mais a de Cristo, mas a do sentimentalismo, da sensualidade. A dama substitui a Cruz. A cavalaria passa a ser um elemento de gozo da vida.46

Em um nível supremamente elevado, é óbvio que, para além da alternativa posta por Cervantes, estão as vias sacrossantas do heroísmo cristão. Sim, do heroísmo cristão como a Igreja sempre o ensinou, e ao qual a História deve seus lances mais sábios, mais esplendorosos e mais propícios ao bem espiritual e temporal dos homens.47

Porque Lepanto48 causou um reviver colossal do espírito de cavalaria, encomendaram a Cervantes o Dom Quixote... para acabar com o espírito de Lepanto.49

Cervantes é uma espécie de Voltaire espanhol.50

Sancho Pança, mais perigoso que Dom Quixote

Escrevendo a história de Dom Quixote, Cervantes lhe associou um personagem secundário, que nunca abandonou o herói da Mancha. Este homem se chamava Sancho Pança.51

Que surpresa sentiria Cervantes, se um telescópio profético lhe pudesse desvendar os acontecimentos futuros e lhe mostrasse que, enquanto o valente Dom Quixote entraria definitivamente para a galeria dos dementes inofensivos, com sua lança, sua couraça e seu esquelético Rossinante, Sancho Pança, o tímido Sancho Pança, o medíocre Sancho Pança, o desprezível Sancho Pança, haveria de acometer dentro de alguns séculos uma grande nação e atirá-la, ele sozinho, às beiras do mais negro precipício.52

Foi, no entanto, o que se deu com o Brasil. Se nosso País não estivesse sob uma proteção especial da Virgem Aparecida, não duvidaríamos muito que, dentro de algum tempo, se lhe pudesse cavar sepultura em sua terra fecunda. Como justo epitáfio, poder-se-ia escrever no túmulo estes tristes dizeres: Aqui jaz uma nação fundada por heróis, civilizada por santos e destruída pelo comodismo imprevidente de alguns de seus filhos.53

Sancho Pança? — perguntarão alguns leitores. Mas Sancho Pança não morreu? Que tem ele a ver, pois, com a crise brasileira?

Não, Sancho Pança não morreu. Sancho Pança revive em espírito. Inspirando milhares de mentalidades, dita as atitudes de seus filhos espirituais nos parlamentos, nas cátedras, nos bancos, na alta administração.54

Sancho Pança revive no comodismo dos imprevidentes que fecham os olhos às nuvens de hoje, que serão tempestades amanhã. Ele fecha os olhos, não porque confie na Providência, não porque tenha qualquer motivo sério para negar o perigo, mas simplesmente para gozar em paz o momento que passa. Julga que o perigo não existe, simplesmente porque não lhe atacou o pelo.55

Sancho Pança revive na incúria comodista de muitos cidadãos a quem o Brasil havia confiado a missão sagrada de defender a Religião, a Família, a Propriedade, e que não se pejavam em designar para cargos de máxima responsabilidade os mais encarniçados inimigos dos princípios cuja custódia lhes incumbia como dever sagrado.56

Ouve, ó Sancho Pança

Oh! Sancho Pança! Tu que, vestindo farda, beca, toga ou casaca, brincas com o fogo ou foges diante do adversário; tu que simbolizas a imprevidência, a incúria, o comodismo, a cupidez imediatista, o medo — tu infeccionaste profundamente o Brasil.

Tu brincas hoje, tu chorarás amanhã. Mas ouve: aqueles mesmos revolucionários cujo caminho preparas, porque és imediatista ou porque és poltrão, eles mesmos te dirão agora, pela boca de um grande anarquista, o futuro que te aguarda se não te emendares.57

Quando o perigo ruge, tu foges e taxas de quimérico nosso esforço para organizar a reação. Mas, se não te impressiona a voz dos que lutam por Deus, ouve a voz de alguém que lutou pelo mal, ouve Proudhon:58

Já vimos isto...

“Quando a primeira colheita tiver sido pilhada, a primeira casa forçada, a primeira igreja profanada, a primeira tocha incendiada, a primeira mulher violada;

“Quando o primeiro sangue tiver sido derramado;

"Quando a primeira cabeça tiver caído;

“Quando a abominação da desolação reinar em toda a França;

“Oh! Então sabereis o que é uma revolução social!”

Proudhon

Também já vimos...

“Uma multidão desencadeada, armada, ébria de vingança e de furor; espetos, machados, espadas nuas, martelos; a polícia no seio dos lares, as opiniões suspeitas, as palavras delatadas, as lágrimas observadas, os suspiros contados, o silêncio espionado, as denúncias, as requisições inexoráveis, os empréstimos forçados e progressivos, o papel moeda depreciado, a guerra civil e o estrangeiro nas fronteiras, os proconsulados implacáveis, um comitê de salut public, um comitê com o coração de aço.

“Eis aí os frutos da revolução dita democrática e social”.

Proudhon

 

Eis aí, Sancho Pança, o futuro que nos preparas. Mas tu não vencerás o Brasil. Não é possível que uma coorte de míopes destroce uma grande nação.59

Hitler, a nosso ver, nada tem de heróico senão as aparências que, segundo as necessidades do momento, sabe tomar, como hábil comediante que é. A nosso ver, ele é um Sancho Pança que representa bem o papel de Dom Quixote.60

Deixemos, pois, de lado a pessoa de Hitler como a vemos, na nudez de sua personalidade psicológica pequenina e velhaca.61

Enquanto católico, contesto terminantemente que o gênero humano se reduza a um conjunto de Quixotes e de Sanchos. E que diante dos passos dos homens, só duas vias se abrem: a do esquálido e desvairado “herói” manchego, e a de seu abdominal e vulgar escudeiro.62

 

O avestruz do século XX é fundamentalmente um egoísta64

Os avestruzes, que agora “não veem” o perigo, tirarão a cabeça de dentro do monte de areia, abrirão grandes olhos espantados e ponderarão:

“Está tudo perdido, é mau negócio resistir”.65

O avestruz continuará com a cabeça metida na areia, levando sua vidinha e recitando o seu credo: “Creio num só Deus, o dinheiro onipotente, criador da fartura e da tranqüilidade”, etc.66

Os setores de opinião dominados pelo avestruzismo são, pois, o ponto fraco de um país, a zona mental própria a ser penetrada e explorada pelo adversário, para arrastar a vítima à derrota e à capitulação.67

A maioria vai entrando nesse mundo novo fascinada, arrepiada, hipnotizada, como o passarinho entra na boca da cobra.68

A Luíza destronca o pé...

Entre os “Bilhetes de Paris”, de Eça de Queiroz, encontramos um intitulado “As catástrofes e as leis da emoção”.

Nele Eça de Queiroz sustenta que, quanto maior a distância no espaço e no tempo, menor a emoção que um fato causa. Para tentar demonstrar sua tese, o autor dá vários exemplos.

O mais característico é o caso do pé da Luíza Carneiro.

Conta ele que, numa noite, uma senhora lia para uma roda de pessoas um jornal repleto de notícias calamitosas. As catástrofes eram lentamente comunicadas. Primeiro, um terremoto em Java destruíra vinte aldeias e matara duas mil pessoas. Ninguém se interessou por tão longínqua desventura. Depois, mais perto, na Hungria, uma inundação destruíra vilas, searas, homens e gado. Alguém então murmurou, num lânguido bocejo: “Que desgraça!”. Em seguida foram relatados uns tumultos na Bélgica, nos quais haviam morrido quatro mulheres e duas crianças. Vozes mais interessadas exclamaram brandamente: “Que horror!”.

A leitora virou a página do jornal e procurou noutra coluna. De repente soltou um grito, levou as mãos à cabeça e exclamou: “Santo Deus!” Todos se ergueram, sobressaltados, e perguntaram o que havia acontecido. A leitora balbuciou: “Foi a Luíza Carneiro, da Bela-Vista!... Esta manhã!... Destroncou um pé!”.

As senhoras largaram a costura, os homens esqueceram charutos e poltronas, e todos se debruçaram, reliam a notícia amarga no jornal e se repastavam da dor que ela exalava: “A Luizinha Carneiro! Destroncou o pé!”.

Já um criado correra furiosamente para a Bela-Vista, a buscar notícias. Sobre a mesa, aberto, o jornal parecia todo negro com aquela notícia, que o enchia todo e o enegrecia.

Dois mil javaneses sepultados no terremoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera, era sombra ligeira e remota.

Mas o pé destroncado da Luíza Carneiro esmagava os corações. Pudera! Todos conheciam a Luizinha, e ela morava adiante, no começo da Bela-Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava no muro, dando à rua sombras e perfume.

O “centro do Universo”

Ceder ao espontaneísmo descrito por Eça é colocar-se como centro do universo, é afirmar que as coisas importam na medida em que nos tocam, e não enquanto se referem a Deus. Com esta mentalidade, não teria havido cruzadas nem missões.

Com efeito, ninguém se teria movido por um problema tão distante como libertar o Santo Sepulcro ou converter selvagens americanos. Essas coisas se fizeram porque havia um interesse, que nada tinha a ver com a emoção sensível.

É possível que nós tomemos ante os acontecimentos internacionais essa mesma atitude, se nos preocuparmos com nossas coisinhas e formos pouco impressionáveis por um castigo anunciado em Fátima, e que se deve deduzir de argumentos teológicos e históricos que ninguém vê de modo palpável e imediato.

Isto é uma tal desordem mental, uma tal incapacidade de dar às coisas o valor que elas têm, que nossa formação e nossas perspectivas ficam completamente adulteradas.

A pessoa que é assim tem que retificar-se, tem que adquirir uma segunda natureza para julgar as coisas de acordo com seu valor, e não na medida em que toca seu egoísmo.69

 

“Che” Guevara, ou a máscara para velar a violência

Ernesto “Che” Guevara, o argentino transplantado para Cuba, exprime autenticamente o cunho marxista da revolução cubana.

Os cabelos, que parecem não ser de há muito nem cortados nem lavados, um bigode ralo e esfiapado cujas extremidades acabam por se unir a uma barbicha de contornos incertos, formando tudo para o rosto uma só moldura de desalinho e desordem, causam repulsa instintiva, mas visam despertar uma impressão de naturalidade e despretensão, levada ao extremo.

O olhar, de uma luminosidade incomum, e o sorriso procuram dar uma certa idéia de bonomia e afabilidade um pouco mística.

A fisionomia de “Che”

Guevara representa uma das máscaras mais recentes da Revolução, isto é, a bonomia insincera, a velar a pior das violências.70

 

O violinista — ou a imprevidência e a inércia

Narra-se que, quando Bizâncio foi invadida pelas tropas turcas, em um suntuoso edifício se encontrou um bizantino, cidadão prestante que em lugar de empunhar a espada na defesa da pátria, tocava violino enquanto seus compatriotas morriam no cumprimento do dever. Com um golpe de espada, foi morto sob o riso sarcástico dos adversários e entrou para a História como símbolo da imprevidência e da inércia.

Parece, em todo o caso, que o violino exerce atrativo maior que a espada.71

 

Em Pentecostes, dia de fogo e de amor, o afeto sobrenatural se abrasou e inspirou atitudes tão veementes e radicais que chegaram a sugerir a idéia da ebriedade.

Mornos, ou o vômito merecido

Se muitos homens acabam seguindo uma orientação uniforme, para o alto ou para baixo, muitos outros, pelo contrário, ficam eternamente na situação intermediária, na zona limítrofe entre o bem e o mal, sem arderem de vida sob a ação da graça nem estarem inteiramente gélidos na morte do pecado.

Aquele desprezo específico que se tem pelo mole, pelo medroso, pelo poltrão, não se tem pelo filho das trevas que é um terrorista. Podemos até hostilizar muito mais o terrorista, mas Nosso Senhor disse: “Oxalá fosses frio ou quente; mas, porque és morno, e nem frio nem quente, começarei por vomitar-te de minha boca”.72 O homem morno provoca vômito; o homem varonil, não.

Devemos ser homens do sim e do não. Disse Nosso Senhor no Evangelho: “Seja vossa linguagem sim sim, não não”.73 Não devemos ser homens do talvez e do “deixa disso”.74

*

O amortecimento do princípio de contradição gera o gosto, a mania das soluções intermediárias. Eu quase diria: a servidão às soluções intermediárias. Dados dois caminhos, escolher sempre o do meio — o que não é carne nem peixe — é no que se cifra para muita gente toda a sabedoria.

Ora, se é um erro rejeitar por princípio as soluções intermediárias, erro também é adotá-las por princípio. Pois há casos em que a sabedoria as condena formalmente.

A pessoa viciada em soluções intermediárias é a vítima ideal de todos os velhacos. Pois a habilidade do velhaco consiste precisamente em fazer com que o ingênuo aceite, com algum disfarce, aquilo que, a nu e sem maquilagem, ele repudiaria.75

*

A adesão ao princípio não é apenas uma firme convicção de determinada verdade, mas é uma convicção tal que repelimos o que a contraria, porque daquela verdade fazemos um bem nosso, uma coisa nossa. Aquilo que a contradiga, nós rejeitamos por ofender a nós.

E tornamo-nos, portanto, dedicados àquele princípio, tornamo-nos combativos por ele, porque se transforma para nós num bem de nosso ser. Cortar aquilo é como tirar o nosso ser. 76

*

Mas há muitos meios de se ser morno.

Não são mornos somente os que vivem ora no pecado ora na virtude.

Também são mornos, se bem que de modo menos grave, aqueles que, vivendo habitualmente na virtude, a arrastam penosamente como um fardo, estritamente colocados no terreno do minimalismo, e firmemente deliberados a não elevar suas preocupações além da esfera do simples combate ao pecado mortal.

Na ordem moral, há muitos mornos assim.

*

Pieguismo não é bondade. Estupidez não é generosidade. Inocentes como as pombas, nem por isto deixemos de ser astutos como as serpentes. É Nosso Senhor que, em termos expressos, no-lo impôs.77 Queremos porventura ser melhores do que Ele?

A mediocridade tem o charme ilusório da tranqüilidade, da segurança, mas também implica na ausência de qualquer progresso. Isso é incontestável.

Quando chega a ocasião de se dedicar, de fazer alguma coisa por Nossa Senhora, a posição de alma do medíocre é: satisfeito quando Ela fazia algo por ele, retraído quando se trata de fazer alguma coisa por Ela.

Não queremos nos sacrificar. Esta é a miséria do espírito humano, a alma humana é continuamente assim.

Em Pentecostes, dia de fogo e de amor, o afeto sobrenatural se abrasou e inspirou atitudes tão veementes e radicais que chegaram a sugerir a idéia da ebriedade. Peçam os mornos e os tíbios um pouco daquela centelha. Ela os ressuscitará para a vida plena da graça e da verdade.78 

Avante

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