Folha de S. Paulo,
18 de
abril de 1971
Nem
vitória autêntica, nem pleito livre
Como já vimos,
o resultado obtido nas eleições chilenas pela coligação
socialista-comunista não representou, para esta última, uma vitória
autêntica. Os partidos que apoiam Allende alcançaram simplesmente
empate. E um empate sob forte e omnímoda pressão, o que equivale,
moralmente, a uma derrota.
Foi o
que — em essência — sustentei em meu último artigo. Ao que parece, o
próprio governo chileno se deu conta da inutilidade de blasonar vitória
a propósito de tão magro resultado. Pois, em seguida às fanfarronadas
das primeiras 48 horas, o governo se calou sobre seu "êxito" eleitoral.
É nas notícias que nos chegam do país irmão, não figura mais uma só
referência de Allende a seu teste de popularidade. O que é propriamente
meter a viola no saco.
Um
dado a mais, que não cheguei a comentar, ajuda a melhor entender o que
há de frustro, para o governo marxista, no resultado das eleições. é que
o total de "regidores" — isto é vereadores — eleitos se compõe de 914
filiados a partidos de oposição e 766 à coligação governamental. O que
faz pensar que se o governo obteve melhor votação em algumas cidades
mais povoadas, no interior ela lhe foi desfavorável. Precisamente nesse
interior que o governo vem "beneficiando" pela reforma agrária,
apregoada como profundamente popular pelos socialistas, pedecistas,
progressistas e comunistas...
* * *
Isto
posto, continua de pé, sem embargo, um fato óbvio. É que — de um ou
outro modo — a votação governista cresceu da eleição presidencial de
setembro do ano passado para a eleição municipal de princípios deste
mês. E cresceu em proporções nada desprezíveis, ou seja, de 36,3% a
49,7%.
Olhemos de frente para este fato. De onde proveio a diferença? —
Obviamente ela só pode ter vindo das correntes de oposição. Explico-me.
O
Partido Nacional, que é de certo modo a direita no panorama
político-ideológico chileno, desenvolveu, durante a campanha eleitoral,
uma propaganda mole, desanimada e ininteligente. Boa parte de seus
eleitores, segundo tudo leva a crer, engrossou as fileiras dos
abstencionistas. E outra parte, vendo na DC maior dinamismo e melhores
possibilidades de vencer o marxismo, terá votado a favor dela. Ou,
então, do Partido Radical, corpúsculo inocuamente a-marxista incrustado
na coligação governamental. Assim, embora a votação de Alessandri,
candidato apoiado pelo Partido Nacional, tenha correspondido a 34,9% do
eleitorado em setembro do ano passado, nas eleições do corrente mês o PN
não obteve senão 18,1% dos votos.
Ora,
a votação do PDC e a do PR não indicam a alteração correlata. O
eleitorado do PDC passou de 27, 8% em setembro para 26,1% nas últimas
eleições. Quanto ao Partido Radical, os dados são um pouco mais
complexos. Porém igualmente concludentes. O PR — cujos votos se situavam
em torno de 13% nas eleições municipais de 1967 e 1969, respectivamente
— cindiu-se em duas alas, por ocasião da eleição de Allende. A ala que
conservou o nome de Partido Radical recebeu agora 8% dos votos, e a
outra ala, a Democracia Radical, de tendência mais bem direitista,
obteve 3,8% dos votos. O que perfaz o total de 11,8%.
Como
explicar tudo isto, já que a votação dos demo-cristãos e dos radicais
deveria estar acrescida pelos votos dos nacionais?
De um
lado, é absurdo supor que os direitistas descontentes tenham votado no
marxismo. De outro lado, o coeficiente de aumento das abstenções (16,3%
em setembro passado e 25,5% agora em abril) não basta para explicar a
evasão dos votos direitistas. Onde, então, a chave do mistério?
Tudo
leva a crer que os marxistas se beneficiaram de votos de simpatizantes.
Ora, em matéria de simpatizantes, os que o marxismo possui estão na DC e
no PR. Logo, devem ter votado pró-marxismo muitos membros destas duas
correntes. E como estas provavelmente se beneficiaram do apoio de
eleitores alessandristas, a evasão dos votos das fileiras delas para a
esquerda foi de algum modo compensada, e se nota pouco nos números.
* * *
Assim
vistas as coisas, é-se propenso a afirmar que Allende teria sido
derrotado nas eleições municipais, e as coisas estariam hoje bem
diversas no Chile, se os simpatizantes não marxistas do marxismo não
tivessem, mais uma vez, dado a vitória a este.
Insistamos sobre o fato. Agora, mais uma vez, foram eleitores que se
prezam de não marxistas, os que deram a vitória ao marxismo. Tão fraco é
este para conquistar o poder só por si.
* * *
Foram, pois, os simpatizantes não marxistas do marxismo, os grandes
responsáveis pela vitória deste nas eleições municipais. Postos os olhos
nos seus congêneres dos demais países sul-americanos, "sapos",
demo-cristãos e progressistas, não é difícil perceber que estes se
aprestam a fazer o mesmo por toda a parte.
Daí
se tira um conseqüência prática do maior alcance. É que, no tocante ao
perigo comunista, não basta alertar a opinião pública contra o PC
propriamente dito. Mas é absolutamente indispensável, é urgente, é
capital alertar o público contra as correntes que, sem se dizerem
comunistas, fazem um muxoxo ao anticomunismo e mostram para com o
comunismo uma condescendência inspirada nas mais tolas e perigosas
ilusões.
Mas
esta já é outra matéria. Fiquemos apenas na análise das eleições
chilenas. Tal análise, com o presente artigo, chega ao fim.
Como
ficou dito, ela prova que, se a coligação prómarxista obteve agora certo
aumento de votos em relação ao pleito anterior, deve-o a votos... não
marxistas! Tão ilusória é a posição "majoritária" de Allende em seu
país.
* * *
Este
fato tem muito alcance, por certo.
Desde
o manifesto de Marx, lançado em 1848, jamais um candidato comunista
obtivera a vitória em eleições autênticas e livres. Este crônico
insucesso eleitoral produzia duas conseqüências importantes, uma no seio
do próprio PC internacional, outra na opinião publica em geral.
No
seio do PC, fortalecia-se cada vez mais a corrente dos que achavam que,
sem violência, não é possível ao marxismo chegar ao poder.
A
assim chamada — e tão apregoada — "vitória" do marxismo em dois pleitos
sucessivos, no Chile, viria dar argumentos à corrente contrária à
violência. Pelo menos uma vez, em um país, os processos legais e
pacíficos teriam levado o comunismo ao poder. A estas horas, entretanto,
os especialistas do PC já terão concluído suas análises, e já terão
chegado à mesma conclusão que nós: ambas as "vitórias" provam que a
maioria, se se lhe der ocasião de votar em pleito livre, se manifestará
renitentemente anticomunista. E que, em conseqüência, continua de pé o
princípio de que, sem pressão nem ameaça de violência, o comunismo não
alcança o apoio da maioria autêntica dos eleitores.
A
outra conseqüência, extramuros do comunismo, salta aos olhos.
Para
seus partidários, para seus simpatizantes, para o imenso rebanho dos
ingênuos, o comunismo apresentar-se como o grande movimento
reivindicatório de imensas massas oprimidas. Como as massas são a
maioria, e, segundo as doutrinas democráticas à Rousseau, as maiorias
são soberanas, resistir ao comunismo é resistir ao único poder legítimo,
isto é, o das multidões. Daí a fundamental iliceidade de todos os
movimentos anticomunistas.
Suposta verdadeira a doutrina pagã de Rousseau, segundo a qual as massas
podem tudo quanto pode um déspota oriental, inclusive suprimir todos os
direitos assegurados pela Lei de Deus — o raciocínio é impecável
enquanto mero raciocínio feito no ar. Entretanto, falta-lhe a base. Pois
uma de suas premissas é falsa. Não se pode pretender que o comunismo
exprima anelos de imensas massas, se ele sempre e por toda a parte perde
as eleições. E com isto rui por terra a construção armada pela
propaganda vermelha.
Pode-se imaginar quanto mal-estar isto causa à propaganda comunista.
Ora,
com o resultado das eleições chilenas tentou o comunismo reabilitar-se
aparecendo pela primeira vez como vencedor em um pleito eleitoral livre.
Não
houve vitória autêntica, nem pleito livre. É o que quisemos provar nos
sucessivos artigos que consagramos ao assunto.