Folha de S. Paulo,
11 de
abril de 1971
No
Chile: empate sob pressão
Quando das eleições presidenciais no Chile, escrevi para a
"Folha de S. Paulo" um artigo em que examinava a votação obtida pelos
três candidatos, o marxista, o demo-cristão e o nacionalista.
Mostrei, então, que a vitória de Allende de nenhum modo significava que
a maioria dos chilenos optara pelo regime marxista. Pois os votos
somados dos candidatos nacionalista e pedecista superavam sensivelmente
a votação alcançada pelo marxista.
No
dia 4 passado, realizaram-se novas eleições no país irmão, desta vez
para a escolha dos membros da Câmaras Municipais. O pleito, como se
sabe, atraiu a atenção do mundo inteiro. Nele, com efeito, o povo
chileno teria ocasião para se manifestar sobre a política pró-comunista
desenvolvida por Allende nestes cinco meses de governo. Feita a apuração
verificou-se que a coligação governista obtivera, abstraídos os votos
nulos ou em branco, 50,86% dos votos, ao passo que os partidos de
oposição somaram 49,14%. Em conseqüência, muitos comentaristas
concluíram que, desta vez, a vitória da coligação governamental
encabeçada pelos marxistas era mais significativa. Pois o total obtido
por ela superava todos os seus adversários somados.
É
natural que me perguntem muitos leitores o que digo a isto.
* * *
Começo por observar que a diferença pela qual a coligação governamental
"venceu" foi de 1,68%, computados os votos nulos ou em branco. De fato,
nesta base de cálculo, o governo teve 49,73% e a oposição 48,05% dos
votos.
O
governo se enganou, pois, ou enganou o público, quando anunciou para si
uma maioria pouco superior a 50%, abstraindo jeitosamente os votos nulos
ou em branco.
Do
ponto de vista estritamente legal, a diferença de 1,68% basta para
caracterizar uma vitória. Aliás, uma pálida e magra vitória. Mas provará
ela que a maioria dos chilenos prefere mesmo a política de Allende? —
Afirmo que não.
Considerada a eleição como um teste, a diferença de 1,68% é irrelevante.
Pequenos fatores ocasionais e sem expressão ideológica podem ter causado
essa diferença. De sorte que à vista dela qualquer crítico imparcial
pode falar, no máximo, em empate.
Digo
"no máximo", porque várias circunstâncias levam à convicção de que mesmo
a autenticidade desse empate é duvidosa:
1)
Antes de tudo, é preciso considerar as abstenções. Chegaram elas a pouco
mais de 25%. Dada a disciplina de cabresto dos partidos marxistas, em
geral as abstenções só ocorrem nos setores não comunistas. De cada
quatro eleitores chilenos, desta vez um não votou. E este um não é
marxista. O que quer dizer que — se ele tivesse votado — o marxismo
teria sido folgadamente derrotado.
2)
Qual a razão destas abstenções? Desinteresse? Desalento? Protesto? —
Freqüentemente, as abstenções são numerosas nas eleições chilenas.
Correspondem a áreas não politizadas, e portanto não bolchevizadas, da
opinião pública. Seja como for, o desinteresse seria difícil de se
supor, mesmo em tais áreas, à vista de eleições tão decisivas para o
país e para a vida particular de cada qual. O desalento e o protesto,
pelo contrário, são absolutamente explicáveis. Razão a mais para se
considerar como antimarxista o significado das abstenções.
3)
Vejo o muxoxo de alguns leitores diante da conclusão. Objetam, ao
ler-me, que as abstenções são intrinsecamente ambíguas, pelo que não
podem ser levadas à conta de um ou de outro lado. — Acho simplista a
assertiva. Entretanto, só para argumentar, concedo que seja exata. Se
25% dos chilenos mantiveram uma atitude ambígua diante do teste
eleitoral, como negar que o resultado de tal teste tenha sido ambíguo?
4)
Acresce outro dado. O único partido não marxista da coligação
governamental, o Radical, obteve 8,18% dos votos. Ou seja, se ele
tivesse formado ao lado dos demais partidos da oposição a minúscula
maioria pró-marxista teria sumido. Ora, tenho em mãos um cartaz de
propaganda eleitoral desse partido. Segundo esse cartaz, que faixa
eleitoral se empenha o Partido Radical em atrair? A faixa marxista? — De
nenhum modo. Os descontentes com o marxismo, aos quais procura convencer
que colaborem com Allende, por lhes ser mais útil ter no governo o freio
de alguns não marxistas, a votar na oposição e ter assim um governo
constituído só de marxistas. É inadmissível que os eleitores atraídos
com esse argumento sejam computados como adeptos do marxismo.
5)
Ademais, qualquer eleição — como esta de que tratamos — em que há, de um
lado, um partido, ou conglomerado de partidos, apoiado às escâncaras e
com toda a energia pelo governo, e, de outro lado, partidos
oposicionistas, só pode ser aceita como expressão autêntica das
tendências ideológicas de um povo quando a vitória é da oposição. Ou,
então, quando a maioria obtida pelo partido oficial é grande. Pois o
governo tem sempre — e máxime em tal caso — um peso eleitoral que
arrasta numerosos votos. Muito e muito mais numerosos do que os
minguados 1,68% de vantagem obtidos pela coligação allendista.
6)
Isto, que é certo para qualquer eleição, no caso concreto é de furar os
olhos. Pois Allende, em seus cinco meses de governo, desenvolveu um
contínua série de intimidações violentas contra a imprensa de oposição.
O mais importante diário não-marxista do Chile, "El Mercúrio", pertence
à família Edwards. Allende começou por desferir uma ofensiva contra o
Banco Edwards, da mesma família. O motivo alegado foi a necessidade de
apurar certas irregularidades cambiais. A nomeação de um interventor
para gerir o banco foi a primeira medida. Mas, logo depois, sob o
pretexto de que "El Mercúrio" podia estar envolvido no caso, foram
abertas duas investigações sucessivas no jornal, com grande orquestração
difamatória na imprensa esquerdista. As investigações nada apuraram
contra "El Mercúrio". Em seguida, o governo apresentou queixas-crime
contra duas emissoras antigovernistas, a Rádio Minería e a Rádio
Balmaceda.
A
Rádio Minería teve de se sujeitar à pena de suspensão por 24 horas. O
processo contra a Rádio Balmaceda ainda está em curso. Ao mesmo tempo,
deputados comunistas visitaram várias rádios independentes,
pressionando-as para que despedissem seus colaboradores antiesquerdistas,
no que foram obedecidos. A editora Zig Zag, a maior do Chile, publicava
grande número de revistas. Foi ela sujeita a uma greve de comunistas,
que reivindicavam uma alta de salários exorbitante. À vista disto, a
direção recusou o aumento. Allende nomeou então um interventor
comunista, que deu ganho de causa aos operários. Diante da conseqüente
insolvência da empresa, o governo a comprou... a vil preço. Esta é a
liberdade no Chile de Allende. Assim, Allende mantém sob regime de
terror as empresas de publicidade ainda livres. Por isso, inteiramente à
vontade só atuaram, na última eleição, os órgãos de publicidade
governamentais. — A isto, pode-se chamar de embate livre e sério? E se
não o foi, como atribuir significado ideológico sério ao resultado
eleitoral daí oriundo?
7)
Aliás, está longe de ser só este o tipo de pressão eleitoral havido no
Chile. Durante estes cinco meses de governo, Allende fez descer sobre
seu país as primeiras sombras do terror policial. A partir do assassínio
do general Schneider, quer o presidente, quer seus sequazes têm
multiplicado as denúncias de reais ou supostas conspirações. E as
correlatas ameaças. Isto incute, em muita gente, um verdadeiro pânico de
ser enredado em um processo criminal calunioso e de desfecho
imprevisível, se falar alto e forte contra o governo.
8) O
elemento empresarial, cuja legítima influência poderia ter dado às
eleições um sentido bem diverso, vive sob outra forma ainda de terror. O
empresariado comercial e industrial depende do crédito. E este, no
Chile, está cada vez mais em mãos do Estado. Com efeito, o governo
marxista moveu uma campanha de imprensa para aterrorizar os acionistas
de bancos particulares, ameaçando-os com o confisco bancário. Em
conseqüência, muitos acionistas começaram a vender seus títulos. O
governo comprou-os então. Em seguida, sempre por meio de ameaças fiscais
ou outras, o governo adquiriu as restantes ações de que precisava para
se tornar majoritário. E, por esta forma, passaram para o controle
estatal oito bancos. Os que ainda sobrevivem em mãos de particulares —
são dezesseis — estão a mercê de uma legislação penal ambígua, que os
expõe a tantas multas e sanções, que o Estado os pode, a qualquer
momento, esmagar. Nestas condições, um empresário que tome atitude clara
contra o governo nas eleições se expõe a ter cortado todo o seu crédito.
O empresariado rural — na medida em que ainda sobrevive às rajadas de
confisco agrário — vive no terror da CORA ou das "ocupações" feitas
pelos pelegos do allendismo. O melhor dos quadros dirigentes da opinião
antimarxista ficou, pois, paralisado. Parte até emigrou. Há quem fale em
mais de cem mil refugiados chilenos só em Buenos Aires.
9)
Quanto ao setor eleitoral dos empregados conservadores, sensíveis à
influência de seus patrões, desorientado, privado de seus chefes
naturais, claro está que perdeu assim muito de sua iniciativa e coesão
política. Isto sem falar da opressão exercida sobre os trabalhadores
rurais "beneficiados" pela reforma agrária, dependentes hoje do apoio do
governo em tudo e para tudo a fim de fazer produzir "suas" glebas. — A
que sanções se expõe o distrito rural em que os candidatos
governamentais não tenham obtido votação maciça!
Tudo
isto somado, aceitar como concludente o resultado de uma vitória
eleitoral como esta, é cômico. Ou trágico. Tanto mais quanto — como já
dissemos — esta exígua "vitória" não passa de um autêntico empate.
--
Empate sob pressão o que exprime? Igual força de ambos os lados? Ou
maior força do lado que, ainda sob pressão, se igualou ao senhor da
polícia, da publicidade, do crédito e dos favores?
* * *
Pretendo retomar em outra ocasião meu anterior artigo sobre propriedade
individual. Por ora, preciso ainda analisar o significado da queda dos
votos radicais, pedecistas e nacionais.
O que espero fazer no
próximo artigo.