Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

CAPÍTULO V

Os “Círculos de Estudo”

 

A doutrina que refutamos

Na Encíclica em que condenou a associação católica de jovens chamada “Le Sillon”, depois de expor o caráter igualitário e liberal das doutrinas dessa agremiação, o Santo Padre Pio X mostrou as repercussões dessa tendência nas várias esferas de atividade da referida associação. Quando tratou dos métodos de formação intelectual empregados por “Le Sillon” para a formação de seus membros, mostrou Pio X o seu sentido nivelador, inspirados na doutrina do sufrágio universal, com as seguintes palavras:

“Com efeito, não há hierarquia em “Le Sillon”. A elite que o dirige se desprendeu da massa por via de seleção, isto é, impondo-se por sua autoridade moral e suas virtudes. Entra-se livremente ali, e com a mesma liberdade se sai. Os estudos se fazem sem professor, e quando muito, com um conselheiro. Os círculos de estudos são verdadeiras cooperativas intelectuais, onde cada qual é ao mesmo tempo mestre e aluno. A camaradagem mais absoluta reina entre seus membros e põe em contacto suas almas. Daí a alma comum do “Sillon”. O próprio Sacerdote, quando aí entra, rebaixa a eminente dignidade de seu Sacerdócio e, pela mais estranha inversão de papéis, se faz aluno, se põe no nível de seus jovens amigos, e não é mais senão um camarada” (Carta de 25-8-1910, ao Episcopado Francês).

Lido com atenção este texto pontifício, vemos que o Santo Padre condena, nesse processo didático, os seguintes erros:

I – A abolição da função de professor, reputada anti-igualitária;

II – Em conseqüência disto, o ensino perde seu caráter tradicional, passando a constituir uma pesquisa de verdades cujos resultados são sancionados, não pela autoridade e prestígio do professor, mas, à moda democrática, pelo sufrágio e consenso dos alunos autodidatas. Em outros termos, uma anarquia pedagógica radical.

Neste assunto, devemos distinguir dois erros, isto é, o espírito de independência, que sugeriu essa subversão de métodos, e a radical insuficiência de tais métodos para a formação intelectual sólida e vigorosa.

Através de tudo quanto temos dito, tem sido fácil notar que um acentuado fundo de liberalismo é a causa mais profunda dos erros que vimos analisando. Conscientemente ou não, o resultado a que tais erros conduzem é sempre uma diminuição da autoridade. Não podiam, pois, os elementos dominados por tal mentalidade deixar de cair, de modo mais ou menos completo, no erro de “Le Sillon”, e por isto já ouvimos, com grande frequência, a afirmação de que aulas, cursos, etc., representam métodos antiquados de formação moral e intelectual, pelo que a A.C. não os deve utilizar de modo assíduo, nem deve fazer deles o processo principal do exercício de sua função instrutiva. Pelo contrário, apenas uma ou outra vez durante o ano se devem ou se podem realizar “semanas” com tais conferências. O círculo de estudo é o substituto jovem, interessante, democrático e atraente, dos velhos métodos didáticos rançosos, sisudos, monótonos e anti-igualitários.

Em que consistem os círculos de estudos, como assaz freqüentemente se realizam em certos setores da A.C.? Ainda aqui, façamos uma enumeração:

I – O auditório deve ser normalmente limitado, não contando mais de uma dúzia de pessoas, entre as quais uma, com o nome de dirigente ou monitora, orienta os trabalhos. O dirigente ou monitor deve tanto quanto possível ser da mesma idade e nível intelectual das demais pessoas;

II – Em seu modo de agir, de falar, de orientar os trabalhos coletivos, deve o dirigente excluir cuidadosamente qualquer manifestação que o coloque na posição de um professor ou de pessoa no exercício de função que, direta ou indiretamente, implique em superioridade ou preeminência. Precisamente como um chefe de célula comunista, deve ele ser o mais acessível, o mais abordável e o mais despretensioso “camarada”, das demais pessoas presentes. O dirigente deve mesmo apagar-se de tal forma, que se suspeite o menos possível, ser ele quem, hábil e disfarçadamente, dirige o curso das idéias;

III – O círculo pode versar indistintamente sobre questões doutrinárias, ainda as mais altas, e questões práticas, ainda as mais complexas e minuciosas. São submetidos a debate quaisquer assuntos, desde aqueles à vista de cuja solução titubeiam os mais graves teólogos, até aqueles cuja complexidade impõe hesitações aos mais firmes moralistas;

IV – Enquanto qualquer aula bem preparada comporta normalmente a definição clara dos termos do problema a ser estudado, a enumeração dos princípios aplicáveis ao assunto, a exposição das várias opiniões que sobre a matéria têm sido formuladas, sua crítica, o enunciado da opinião do professor e sua fundamentação; no círculo de estudo, pelo contrário, o dirigente deve ocultar cuidadosamente sua opinião pessoal, e suscitar, por meio de perguntas feitas aos presentes, que as vão ventilando sucessivamente, os vários aspectos da questão. Com este intuito, jamais deve o dirigente entrar pessoalmente no debate, argumentando com os membros do círculo, mas, pelo contrário, deve fazê-los discutir entre si;

V – Ao cabo de certo tempo, se o dirigente for hábil, terá sabido encaminhar indiretamente os espíritos à posse da verdade, e isto de modo imperceptível, sendo tanto mais hábil o dirigente quanto mais espontâneos houverem parecido os debates. Não falta quem dê um cunho acentuadamente anti-intelectualista aos círculos de estudo por achar que as conclusões surgem menos do raciocínio concatenado, do que da espontaneidade vital, que resultou da “comunidade”, e das várias “presenças”, que daí surgiram;

VI – O resultado do círculo teria sido idêntico ao de uma aula, pois que teria proporcionado aos seus membros o conhecimento da verdade, mas de modo mais vivo, mais interessante e mais convincente. Em uma palavra, um conhecimento vital, não um conhecimento lógico, adquirido pelos processos antigos;

VII – Cada setor da A.C. deve ter um círculo para dirigentes, feito de preferência por pessoa da direção central da A.C. Estes, por sua vez, repetem os círculos em cada paróquia da cidade e da diocese.

O que ela tem de bom e de mau

Como, em geral, nas doutrinas que temos refutado, encontram-se aí algumas verdades, algumas utopias, e muitos erros:

I – É infelizmente certo que muitas e muitas vezes as aulas são hoje de uma esterilidade aflitiva. A linguagem do professor consta de termos com que o aluno não está inteiramente familiarizado. Os problemas debatidos carecem enormemente de atualidade, e o professor revela, ao debatê-los, uma incapacidade radical para compreender as questões atuais. A exposição é feita com absoluta despreocupação de empregar os mil recursos existentes para torná-la mais suave e assim facilitar a atenção dos alunos. A tudo isto se acrescente que o caráter superficial e imediatista de grande número de alunos, sua aversão a qualquer esforço intelectual, por menor que seja, e, finalmente, sua pouquíssima vontade de conhecer a verdade, tudo enfim concorre para os colocar em nível muito inferior ao que normalmente lhes seria necessário para acompanhar a exposição do professor.

II – Estes inconvenientes, sem dúvida muito lamentáveis e para cujo remédio devemos empenhar nossos melhores esforços, de modo algum invalidam a grande verdade de que a aula, comportando uma explanação do professor diante de um auditório cuja função principal consiste em ouvir e entender, é e será sempre o método normal do ensino. Não queremos aqui discutir problemas pedagógicos. Limitar-nos-emos a lembrar que, mesmo entre os mais audaciosos defensores da escola nova, muito poucos levariam sua ousadia ao ponto atingido por certos exclusivistas, que entendem que os círculos de estudos dispensam qualquer aula e por si mesmos bastam para dar toda a formação intelectual – ou quase toda em matéria de Religião. A estes exclusivistas, se aplicam de pleno direito todas as censuras formuladas pelo Santo Padre Pio XI contra a escola nova, na Encíclica “Divini Illius Magistri”;

III – Se entendêssemos o contrário, e se devêssemos considerar que o método tradicional da docência exercida por professor abriu falência, seríamos levados a pensar que Nosso Senhor Jesus Cristo dotou de muito pobres recursos a sua Igreja, quando fez da pregação o método por excelência do seu ensino oficial.

Não serve de argumento a famosa maiêutica de Sócrates, processo sem dúvida engenhoso e fecundo, que supunha entretanto alunos já dotados de alta competência intelectual e, por outro lado, um genuíno Sócrates para o aplicar. Se a maiêutica se conservou no estado de exceção nos fastos do ensino, e não teve mesmo entre filósofos da envergadura de um Aristóteles ou de um São Tomás quem a aplicasse como método normal e mais comum do ensino, há nisto a prova evidente de que só uma habilidade muito especial e muito rara pode empregar com sucesso tal método;

IV – Tocamos aqui em um dos maiores erros que cometem os partidários da eliminação da aula como método de ensino. Todo ensino correto não deve apenas proporcionar ao aluno a posse da verdade, mas educá-lo para o esforço intelectual, habituar sua inteligência ao panorama largo das exposições doutrinárias de grande fôlego, aos vastos sistemas de idéias encadeadas entre si e constituindo estruturas ideológicas imponentes e fecundas. Ora, enquanto a aula bem dada proporciona este fruto ao aluno diligente e capaz, pelo contrário, o círculo de estudos, pelo seu aspecto fragmentário, tem que representar normalmente o caos. Com efeito, renuncia ao bom senso quem imagina que um dirigente normal pode conduzir, dentro dos métodos acima expostos, uma discussão. A técnica aqui analisada supõe que o dirigente saiba insinuar de tal maneira as respostas, que a verdade nasça por assim dizer espontaneamente dos debates. Os mais consumados diplomatas teriam por vezes dificuldade em canalizar por esta forma digressões de um grupo de dez pessoas, perdidas no labirinto de questões doutrinárias vastíssimas, ligadas umas às outras, e das quais cada uma sugere outras mil. Não tenhamos a ilusão de que os dirigentes de círculos de estudos, sobretudo sendo eles tão numerosos que bastem para as inúmeras paróquias que possuímos, tenham tal capacidade.

Precisamente por isto, os círculos de estudos têm dado lugar a equívocos e erros inúmeros.

V – A isso acrescente-se que o próprio método dos círculos de estudos, assim concebido, acostumando os espíritos a debater, sem o devido fundamento, os mais variados problemas, deforma as inteligências, dando-lhes o hábito da soberba. E a soberba gera a temeridade, em conseqüência da qual são as pessoas tentadas a realizar coisas superiores as suas próprias forças. As inteligências habituadas a se pronunciarem sobre assuntos que elas reconhecem, de modo mais ou menos claro, superiores a si mesmas, são inteligências soberbas e é óbvio que os círculos de estudos podem ser verdadeiras escolas de soberba. “Altiora te ne quaesieris” diz S. Tomás aos que querem adquirir o tesouro da ciência.

VI – A esses inconvenientes intrínsecos, acrescentemos outros, que não afetam os círculos de estudos senão de modo meramente circunstancial e que só têm importância enquanto a carência de medidas enérgicas os deixam existir.

Na prática, o cuidado de fazer círculos de estudos tem sido confiado muitas vezes a pessoas ainda na adolescência, ou de uma cultura tal, que lhes falta toda a aptidão para o assunto. Conhecemos o caso concreto de uma dirigente, a quem se perguntou inopinadamente, durante o círculo, se os gatos têm alma. A dirigente, para a qual este problema constituía impenetrável mistério, sentiu-se confundida, e o círculo terminou sob o riso de todas as amigas, aliás tão pouco enfronhadas da solução, quanto a própria dirigente. Mas, se pretendermos, como infelizmente se pretende, distribuir açodadamente círculos de estudos por todas as paróquias de todas as Dioceses deste imenso Brasil, que outra qualidade de dirigente se poderá esperar?

Por outro lado, como esperar que nosso douto e zeloso Clero possa comparecer aos inúmeros círculos, que grupinhos de dez pessoas fariam dentro da paróquia, e como esperar que a ortodoxia se mantenha, sem a presença do Sacerdote, em todos os círculos tão numerosos?

De tudo quanto dissemos se deduz que o desígnio de erigir os círculos de estudos em processo exclusivo ou capital para a instrução religiosa e orientação geral dos membros da A.C. é inaceitável, do ponto de vista didático, e só pode resultar de preconceitos e tendências que não podem encontrar guarida em um católico bem formado.

* * *

Devem ser utilizados pela A.C. os círculos de estudos?

Se não louvamos os círculos de estudos realizados com o espírito e com as tendências acima, não quer isto dizer que projetemos ou proponhamos sua completa eliminação. Pelo contrário, entendemos que, bem utilizados, podem ser muito úteis à A.C..

Desde que se renunciasse inteiramente à pretensão de dar ao círculo de estudos um caráter primordial, e se lhe atribuísse exclusivamente uma função subsidiária das aulas ou cursos – colocados estes em sua função normal e tradicional – os círculos de estudos funcionariam como elementos acessórios, e aí seriam utilíssimos.

Por mais bem dada que seja uma aula, jamais conseguirá ela resolver os múltiplos problemas e objeções que suscitará nos alunos, e não poderá atender o interesse particular, que cada um deles sentir por este ou aquele aspecto do assunto abordado. Por isto, o contato do professor com o aluno, fora da aula, produz sempre resultados didáticos inapreciáveis. Com o intuito de metodizar e de tornar eficaz tal contato, formaram-se em várias universidades reuniões de alunos e professores, que, com o nome de “seminários”, se destinam a proporcionar, em um ambiente de intimidade, uma aproximação fecunda entre o mestre e seus discípulos.

Somando esta vantagem a outras, estabeleceu-se que em tais reuniões deveriam os alunos tomar uma parte muito ativa, produzindo trabalhos de especialização, fazendo perguntas, discutindo entre si, tudo sob a autoridade vigilante do catedrático, ou de seu assistente. Assim, quanto a sua estrutura, esta organização está a dois passos dos círculos de estudos, em relação aos quais apresenta de comum toda a flexibilidade, todas as vantagens decorrentes da iniciativa dos alunos, da livre discussão entre eles etc.. Por outro lado, os círculos diferenciam-se destes “seminários” em um ponto substancial: enquanto o “seminário” realiza suas sessões tendo por base a preparação anterior das aulas e por garantia a presença do professor, que ali comparece no exercício de sua função docente, o círculo carece de qualquer preparação da parte dos seus membros, excluído o dirigente, e não tem a garantia de qualquer autoridade. O “seminário” é feito para completar a ação do professor. O círculo é feito para eliminá-la.

É óbvio que o problema da terminologia apresenta aí uma importância secundária. Desde que os círculos de estudos passam a ser verdadeiros “seminários”, não importa a denominação que se lhes possa dar. O que, entretanto, é capital, é que os círculos percam sua confiança na ciência nascida por geração espontânea, e passem a se desenvolver em função de aulas e cursos, que deverão ser sempre o principal instrumento de formação da A.C..

Não consideramos indispensável que o dirigente do círculo seja sempre um Sacerdote. Mas, se algum leigo receber esta tarefa, deverá ter um grau de formação e instrução muito maior que o de um simples catequista, já que este só cuida, entre nós, em via de regra, de crianças, enquanto o dirigente de círculos de estudos tratará em geral com adolescentes e adultos. A A.C. andaria, pois, muito sabiamente, se exigisse de tais dirigentes estudos especiais, regularmente comprovados mediante exames, e proporcionados às exigências intelectuais do ambiente, perante o qual houvessem de atuar.

Encerraremos, este capítulo, com uma consideração final, embora seja de pormenor.

Em capítulos anteriores, mostramos as conseqüências concretas a que conduz a doutrina de que o Assistente Eclesiástico é mero censor doutrinário nas reuniões das diretorias da A.C.: praticamente, escapa-lhe das mãos todo o poder efetivo, ficando-lhe apenas a ingrata função de vetar. Não obstante, lhe restaria ainda a atribuição, aliás apreciável, de formar os membros da A.C.. Se, entretanto, toda a formação deve ser feita em círculos de estudos, e, dado que estes jamais devem ter normalmente mais de uns dez membros, daí se deduz que, em um setor da A.C. que tivesse duzentos membros, o Assistente seria forçado a vinte reuniões por semana se quisesse formar pessoalmente todos os membros. É patente que não lhe restaria tempo para tanto, pelo que seria forçado a formar um pequeno grupo que por sua vez formaria os demais. Curiosa situação! Em última análise, o Assistente perderia qualquer ação direta sobre a massa dos associados, e a função de formar ficaria nas mãos daqueles mesmos que já reivindicam a função de governar. Mais uma vez se torna frisante a analogia entre a situação que se pretende criar para o Assistente Eclesiástico na A.C. e a do Sacerdote nas velhas Confrarias do tempo de D. Vital e de D. Antonio de Macedo Costa.

*  *  *

Para concluir, julgamos útil condensar em alguns itens os princípios que, sobre círculos de estudo, acabamos de enumerar:

I – Os círculos de estudos não podem bastar para dar formação intelectual e moral aos membros e estagiários da A.C.. Tal formação deverá ser dada em aulas, conferências ou palestras, pelo Assistente Eclesiástico ou professor autorizado;

II – Entretanto, como elemento complementar da ação do professor, e sempre sob a direção deste, poderão os círculos de estudos produzir resultados preciosos.

III – Nestes círculos, o professor continuará com toda a autoridade. Não será um simples presidente de sessão incumbido de pôr em ordem as discussões por demais acaloradas. Será também a autoridade que ensina e decide.

IV – Em tais círculos, o professor não deverá ocultar em nenhum sentido suas prerrogativas, mas saberá servir-se delas com a benignidade necessária para pôr inteiramente à vontade os componentes do círculo, permitindo-lhes exprimir com facilidade e desembaraço as perguntas, dúvidas ou objeções que queiram formular.

V – Os assuntos tratados no círculo devem conformar-se a uma ordem geral de modo a evitar que eles percam qualquer relação com a aula ou curso a que se devem referir.

 


 

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