Plinio Corrêa de Oliveira
Comentários aos Salmos Penitenciais 37, 50, 129
"Santo do Dia", 28 de fevereiro de 1966 |
A D V E R T Ê N C I
A O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de
conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da
TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Se o
Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre
nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial
disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da
Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como
homenagem a tão belo e constante estado de
espírito: “Católico
apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja.
Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja
conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”. As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui
empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em
seu livro "Revolução
e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº
100 de
"Catolicismo", em abril de 1959.
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O valor universal desses salmos: a própria expressão da alma pecadora que reconhece o mal que fez, reconhece o quanto Deus é justo em castigar; mas reconhece, por isso mesmo, a misericórdia. Estes salmos são chamados os sete salmos penitenciais. E são os salmos compostos pelo Rei David e que marcam um arrependimento dele pelo pecado que ele cometeu. Os senhores se lembram naturalmente desse pecado: ele apaixonou-se por uma mulher – do general Urias – num momento em que teve um olhar imprudente em que a viu. A partir desse momento originou-se no espírito dele um incêndio de sensualidade, pelo qual entrou em concubinato com a mulher de Urias. Então, para se ver livre do esposo incômodo, mandou-o para a frente de batalha, para ver se morria numa guerra na qual ele estava empenhado. E ele – que tinha sido antigamente um homem muito bom, muito reto, etc. – caindo, naturalmente se precipitou num abismo de maldade. Porque houve a impureza e, depois, houve essa espécie de velado assassinato; um ato de verdadeira felonia.
Um profeta – Natan –, procurou-o e lhe contou um caso. O caso de um homem que tinha uma multidão de ovelhas, e que, entretanto, viu um vizinho que tinha uma ovelha só e que quis se apossar dessa ovelha matando-o. Então pediu justiça a David contra esse homem. David rasgou as vestes e disse que estava indignado; não sei mais o quê; e que iria intervir. Então perguntou a Natan: “Mas quem é este homem?” E Natan, num gesto magnífico, voltou-se a ele e disse: “Este homem és tu, ó Rei”. Aplicou o conto a David. Quer dizer, David estava tão embotado no ato que tinha praticado, que nem percebia a semelhança, e nem tinha remorso. Mas, naturalmente, com essa denúncia fulgurante, um golpe da graça: David se arrependeu. David se arrependeu; fez penitência, pôs cinza na cabeça – aquelas penitências orientais imensamente poéticas e imensamente bonitas e talvez não muito compreensíveis para o gênio ocidental moderno, mas que eu acho magníficas como, em geral, as coisas orientais, acho esplêndido, isso – ele então fez a penitência etc. Mas, apesar disso, foi castigado. E o filho [do adultério] dele morreu. E David tomou esta morte como um castigo, como de fato o era. Ele teve, entretanto, Salomão, que foi um filho cheio de doçura; foi um filho magnífico para ele; que o sucedeu esplendidamente no trono até o momento em que, por sua vez, prevaricou. Mas David não viu essa prevaricação. E David fechou os olhos na paz de Deus, olhando para o reinado de Salomão que se aproximaria. É uma coisa um pouco parecida, portanto, com a de Jó, como esquema: uma grande situação, uma catástrofe em que ele afunda até o barro e, depois, uma situação em que ele volta para uma posição melhor que era, pela misericórdia de Deus. Mas com uma diferença fundamental em relação a Jó: é que Jó não pecou, Jó era um varão justo; sofreu essas coisas para ser provado. Enquanto David, não: David pecou. E ele merecia então o castigo que sofreu. * * * Estes salmos cantam – David era um rei citarista – a penitência dele, a tristeza dele e o estado de uma alma que se sente no pecado. Mas que, ao mesmo tempo em que afirma toda a justiça de Deus e todo o merecido da punição que sobre ele está caindo ou possa ainda vir a cair, ao mesmo tempo confia na misericórdia. E todos esses salmos – depois da pintura mais negra da situação do pecador – terminam com um ato de confiança: porque Deus ouviu a súplica do coração contrito e humilhado, do coração que tem pesar do que fez e que se humilha. Quer dizer: eu sou ruim mesmo, eu fiz mal, e eu fiz mal, eu, porque esta raiz de pecado está em mim, não foi um acidente, mas este sou eu. Qual é o valor universal desses salmos? O valor é que passaram a ser a própria expressão da alma pecadora, da alma que reconhece o mal que fez, reconhece o quanto Deus é justo em castigar; mas reconhece, por isso mesmo, a misericórdia. Porque a misericórdia existe em função de mal autêntico e não em função de um mal inautêntico. Uma misericórdia em função de um pecado inautêntico é uma quimera, uma coisa, um “non sense”. Ela existe em função de um mal grave efetivamente cometido. Depois, reconhecido com dor. E com uma dor que envolve uma humilhação pessoal: eu não lamento apenas ter feito; – como eu poderia, por exemplo, lamentar ter morto sem culpa, uma pessoa – eu lamentaria muito, mas não é isso. Eu lamento e lamento a culpa que tive no caso. Eu reconheço a culpa que tive, reconhecendo que a raiz do pecado está em mim, que a raiz do pecado sou eu; e eu lamento, tenho tristeza de que em mim haja essa raiz de pecado. Então eu confesso isto a Deus com a humildade. Agora, isto confessado, nasce em mim a esperança da misericórdia. Deus tem uma misericórdia maior do que a minha maldade; Ele tem uma bondade maior do que o castigo que eu mereço. Então peço que Ele atue na minha alma, que Ele corrija o meu pecado, que Ele perdoe, que Ele atenue o meu castigo em atenção à minha franqueza; e que, enfim, Ele seja o meu Pai infinitamente bom, embora eu não mereça de nenhum modo aquilo que estou pedindo a Ele. E por isto eu peço por misericórdia, por isto é que peço sabendo que não mereço. E minha confiança é admirável. Porque, se eu soubesse que eu mereceria, a minha confiança não seria tão admirável. Mas, a minha confiança naquilo que eu não mereço e que tenho certeza que obterei pela bondade dEle, este é um ato de reconhecimento da bondade dEle. E então a Ele me dirijo, e eu me dirijo cheio de certeza. Há nesses salmos um tom grandioso. O tom grandioso vem, em parte, de um Deus magnífico, enormemente distante; e de uma criatura que se arrasta pelo chão, mas cuja voz se eleva numa varonilidade magnífica, numa varonilidade cheia de tristeza e de dor; mas dor de varão e tristeza de varão e que de algum modo transpõe essas distâncias. Então, por causa disso, há um certo tom grandioso dentro disso, que tem isso de próprio que é como uma coisinha pequena que faz uma coisa enorme. Tem uma grandeza do pequeno quase que podendo mais do que pode. Agora, ele tem um tom profundamente católico. Mas não inteiramente católico neste sentido especial da palavra: o Verbo não se tinha encarnado, não tinha [se] mostrado, não tinha estado entre os homens, não se tinha feito homem, não tinha habitado entre os homens, não tinha dito ainda que as delícias dEle consistem em viver entre filhos dos homens. O Sagrado Coração de Jesus não se tinha revelado para os homens. E, em função do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, esse tom muda algo, como quem se dirige a um Deus que a gente já sabe que é exorável; é mais como quem fala com a Mãe do que como quem fala com o Pai, na linguagem do Novo Testamento. De maneira que essa linguagem é magnífica. Mas ela, ao passar por nossa mente, por nossos lábios, ela precisa ter um pouco dessa adaptação a um horizonte da misericórdia, mais rico em misericórdia, mais definidamente misericordioso do que era no Antigo Testamento. Bom. Por fim, há uma outra coisa. É que a Mediação de Nossa Senhora nesse tempo não era conhecida. De maneira que não há a certeza da Medianeira Onipotente que está nos acompanhando o tempo inteiro, e que está rezando por nós com uma misericórdia da mãe que pega no filho pródigo imundo e o abraça; e vai, abraçada nele, pedir perdão ao pai. Na parábola, o filho pródigo se apresenta sozinho. Nessa não: é a historia dos filhos pródigos depois de Nossa Senhora ter nascido. Eles todos vão junto com a mãe, se apresentam junto com a mãe abraçada ao filho asqueroso, ao filho porco, ao filho arrependido, ao filho errado; e cobrindo-o com o seu manto, e encaminhando, dando-lhe uma coragem junto ao pai que ele de si não poderia ter. Há, portanto, umas retificações de registro de órgão nesse esplendor todo que, entretanto, não deixam de fazer com que isto seja a oração própria da alma penitente. E com essas elucidações, me parece então que é interessante a gente ler os textos para comentá-los. * * * * * * Salmo XXXVII - Súplica do pecador castigado por Deus O terceiro [salmo penitencial] é o Salmo XXXVII e começa muito caracteristicamente. É David que está pedindo perdão. Ele começa assim:
Reconhece o tamanho da ira e o tamanho do furor de Jeová pela imensidade do pecado que ele cometeu. Ainda mais com a agravante que "X" comentou, e que dá uma espécie de requinte dentro de requinte, que é uma coisa horrorosa. Então ele pede que Deus não o castigue nessa medida. Ao mesmo tempo em que ele reconhece a falta dele ele já começa pedindo misericórdia. E continua:
Ou seja, Deus, como uma pessoa, dispara setas que vão se cravando no pecador impenitente, é a mão de Deus que passou em cima dele; mão tremendamente pesada que arrasa com a pobre criatura, então ele diz: eu já tenho o efeito tremendo em mim dessas setas e dessa mão; não queira destruir-me Tu, que já me puniste; não me dês uma destruição que eu sei que mereço. Ele então continua – é um argumento que ele dá para não ser destruído, pois só falta ser destruído:
Notem que é um salmo profético, que profetiza Nosso Senhor pelos homens. Nosso Senhor na Cruz: não há parte sã da carne dEle e não há paz nos ossos dEle à vista dos pecados dos homens que Ele pôs sobre si. David, enquanto penitente, era uma prefigura do Redentor, expiando pelos pecados também, embora tivessem sido os pecados cometidos por ele. Os senhores compreendem a riqueza de significados que pendem de um texto desses. É muito bonito dizer que não há paz nos ossos dele. A paz é uma coisa moral, mas [a frase] indica um corpo tão profundamente ferido que até o que ele tem de interno, que são os ossos, estão convulsionados; uma alma cujo esqueleto, cuja ossatura está tão profundamente atingida que, até no que ela tem mais profundo, não há paz. Esta é a idéia. Os senhores vêem por aí como o oriental é superior ao ocidental. É uma coisa que tem uma grandeza lírica, uma coisa enorme, não é? Que diz imponderáveis fabulosos, que um [homem moderno] não pode compreender! Continua. Qual a razão desse castigo que Deus deu a ele?
Eu cometi tantos pecados que o monte dos meus pecados é mais alto do que eu mesmo; e eu estou afundado dentro deles; eles se elevaram por cima de minha cabeça, fecharam-se por cima de minha cabeça. E por isto, sobre esse monte de pecados em que está o pecador, vêm as setas de Deus, vem a mão de Deus, a carne se torna uma chaga, a alma as torna uma chaga, os ossos entram em perturbação; que dizer, a alma esta perturbada até o fim! Pode-se, em termos mais magníficos, pintar uma crise de alma completa? Eu não sei de nada que tenha pintado uma crise de alma completa, com expressões tão soberbas como essas. Desde que a gente tome o trabalho de interpretar. É claro que isto não está ao alcance de qualquer um, mas isso é um título de superioridade a mais. Continua o efeito do pecado sobre ele. Ele está castigado; o pecado está como um monte que o envolve inteiro. Agora, o resultado:
As chagas da minha alma já eram chagas. Mas, por causa da minha falta de sabedoria, elas apodreceram e se corromperam. Eu estou, portanto, num processo de infecção, de deterioração de todo o corpo. Eu não estou só ferido, eu estou infeccionado, eu estou podre; e isto é por causa do pecado que eu cometi. É evidente que o que ele diz aqui do corpo é um símbolo para falar do estado da alma. Ele continua:
Essa situação me tornou miserável. E eu, continuamente baixo para o chão, acabrunhado. E isto me tomava o dia inteiro, era uma tristeza que me tomava o dia inteiro.
São os restos das ilusões do pecado que estão nas entranhas da alma dele.
Os senhores estão vendo a idéia de que as ilusões que geraram o pecado ainda existem, e essas ilusões tem um nexo com a putrefação inteira dele. A raiz do pecado, a causa do pecado ainda está dentro dele; ele ainda sente atração, ele ainda sente a tendência para o mal.
Essa expressão eu acho lindíssima: o meu coração geme, e eu rujo como um leão ferido diante dessa desgraça em frente da qual me encontro.
Tu vês, Deus, todos os meus pecados; mas Tu também vês que uma coisa eu tenho: um desejo. E esse desejo é um gemido, e esse gemido não te é oculto e esse estado não me agrada; algo em mim se move em direção ao arrependimento.
É um processo de doença em que ele – depois de descrever toda a carne podre – descreve o próprio processo cardíaco abalado, os olhos vão morrendo. Eu tenho a impressão de que isso é uma alusão à agonia. Não sei se tenho a certeza, mas deve haver uma coisa que caminha para a morte assim; em que o coração comece a fazer das suas, e a visão deve decair.
Aqueles que me deveriam defender, os meus soldados, as minhas tropas, esses usam de violência contra mim. É o castigo que caiu sobre mim.
Tapeações contra ele. É a conspiração que se levantou contra ele como um torvelinho.
O miserável que não tem o que fazer, e que está perdido, e que não tem nem com que reagir:
É Nosso Senhor ao longo da Via Sacra, não é? Ele como um surdo não ouve e como um mudo não abre a boca. – A gente faria uma lindíssima meditação da Paixão lendo esses salmos. Era quase o caso – num outro simpósio – de a gente fazer um comentário meditado da Paixão, nos Salmos. Mas eu não quero insistir muito senão embaralha os conceitos e dá numa espécie de desordem. Mas é o indivíduo que não tem nada que dizer, contra o qual todos se revoltaram, e que não tem defesa. E ele, então diz:
Quer dizer, ele está escangalhado, está achincalhado; ele não tem defesa contra o que dizem contra ele. Uma terceira miséria: ele está todo perturbado e o mundo inteiro em torno dele está contra ele.
Aqui entra uma espécie de vitória da misericórdia; uma coisa fantástica. Porque ele diz a Deus: “Vede, Senhor, eu estou perto de acabar, eu estou sofrendo isto, eu estou sofrendo aquilo”. Como quem diz: “Eu sei que Vós não quereis acabar comigo, e eu confio na vossa misericórdia por detrás de toda a vossa ira”. E que, portanto, a consideração da justiça vai até o Céu; pode-se dizer que a consideração da misericórdia vai até os céus dos Céus. É a certeza de que se apresentando tão prostrado e tão arrebentado, Deus tem pena dele e o poupa do castigo que está para desabar. É por causa disso que ele diz: “Eu sei que, etc.”. Eu não sei se torno claro como a nota da misericórdia supera a nota da justiça, num cântico que positivamente não é o cântico da Pequena Via – não tem dúvida nenhuma – nem é o cântico da geração-nova, mas que tem uma beleza de todos os séculos, e que é um tema de meditação admirável para todas as gerações; isso não se pode negar!
Os inimigos dele eram piores do que ele. Eram inimigos de Deus, enquanto ele era mau amigo de Deus. E ele acha que os inimigos de Deus não prevalecerão. Como esse pensamento é apropriado para nós e nossos defeitos!
Quer dizer, são as razões pelas quais ele confia. Por que ele disse “Nunca triunfem”? Primeira razão: porque ele esperou em Deus, ele sabe que Deus o ouvirá, é a confiança. Segunda: porque os inimigos dele, que estão lutando contra ele, lutam contra Deus; ele tem com Deus uma certa aliança, Deus não o abandonará. Terceira: por causa da humildade dele, ele reconhece que merece o castigo. “E a minha dor está sempre diante de mim”: ele então não tem momentos de esquecimento, não tem momentos de olvido; mas, pelo contrário, continuamente é penitente, continuamente o seu pecado lhe dói.
Quer dizer, eu não só sou assim agora, mas eu continuarei a fazer.
Eu estou tão humilhado, e a canalha está tão glorificada! Vós, meu Deus, não olhais para isso? Eu estou certo que olhareis! Essas são as razões da confiança dele. Depois vem outra expressão que indica bem a ligação dele com Deus e dos adversários com o demônio:
Era gente que não gostava dele porque ele era filho da luz, e que vendo-o pecar, começa a dar gargalhadas dele. Conclusão:
E com as palavras “Deus de minha salvação” ele termina esse salmo. Quer dizer, é uma plena confiança. * * * O “Miserere” – por causa da palavra “miserere”, que indica a idéia da miséria e do pedido de misericórdia, – porque “misericórdia” é pedida, sobretudo, por quem está na miséria – o “Miserere” passou a ser, mais do que outro salmo qualquer, o cântico da contrição. Mas, como acontece com todos os salmos que estão aqui, é o cântico da contrição, mas é também o cântico da aflição do inocente provado ao extremo, e que pede para que a provação não chegue até o auge. É o cântico do aflito, que diz: eu estou sofrendo para o bem de minha alma e não por um castigo; mas atendei, Senhor, para o extremo da aflição em que eu estou; estou prestes a quebrar e, então, tende pena de mim. Também tem esse lado. É uma oração tão parecida com aquela de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras quando Ele disse: “Si fieri potest transet a me calix iste” - Se for possível, que esse cálice seja desviado de mim”. É também um sentido. Então, tem três sentidos. Aliás, todos esses salmos têm três sentidos: o sentido da alma penitente, o sentido da alma inocente e provada em extremo e, depois, o sentido de Nosso Senhor Jesus Cristo penitente pelos homens e infinitamente inocente, que carrega a sua Cruz. Quer dizer: são os salmos proféticos; são os três valores, as três gamas desses salmos. Mas eu continuarei a comentar enquanto sendo o salmo da alma penitente. Então começa assim:
Esta idéia repetida está no estilo literário. Ele repete: “Tende piedade de mim por causa da tua grande misericórdia”. E depois de falar da “grande misericórdia”, no singular – unidade na variedade – ele fala da “multidão das misericórdias” una e imensa de Deus. Aqui já vem a idéia seguinte, de que a iniqüidade do homem é apagada por Deus. Quer dizer, há uma solução para o homem que está posto naquele monturo anteriormente enunciado: é que Deus cura, Deus é o médico das iniqüidades. Ele é o médico em dois sentidos: porque ele pode perdoar, sem sofrimento para nós, uma dor que nós merecemos; mas é também, porque Ele, pela graça, pode atuar em nossa alma, – é verdade que com o consentimento nosso – mas, enfim, Ele pode eliminar em nós um mal que entrou em nós por nossa culpa. Quer dizer. Essas duas idéias estão expressas aí, e tão congruentes para a natureza deste salmo. Ele continua:
Minha iniqüidade é tão grande que eu preciso ser lavado várias vezes. Há um lavar processivo de misericórdia sobre misericórdias que lavam lavando. E lavando uma alma que está encardida como nós falávamos ontem de uma pessoa que veio do norte do Paraná: não há Benjoim que acabe de lavar completamente. Qual é a razão porque ele pede isto?
E continua:
O pecado atinge só a Deus.
Quer dizer, eu reconheço que eu fiz o pecado diante de Ti e contra Ti, e diante dos teus olhos. E eu reconheço isto para que os outros que virem isto saibam que Tu não abandonaste a aliança comigo, fui eu que abandonei a tua aliança, e eu é que me fiz rejeitar por Ti; por isto é que eu caí neste estado de miséria. Quando fores julgado pelos povos, segundo o teu procedimento, sejas encontrado justo. O teu procedimento é perfeito, mas eu sou um miserável; em mim está a causa de todo dano. Há uma espécie de adoração da severidade de Deus e da justiça de Deus. [Como] quem diz: eu te adoro enquanto me feres, porque Tu és justo; e se Tu não odiasses o meu pecado, eu não te amaria. E por isso eu quero que a glória da tua justiça resplandeça diante dos homens. O mau sou eu; vejam como foi perfeito Ele quando me feriu! Há um requinte de humildade dentro disso, há um requinte de entregar-se a si próprio, que é verdadeiramente magnífico. E seria lindo, depois, mostrar como isto se aplica a Nosso Senhor Jesus Cristo. É uma coisa estupenda. É um tesouro! Naturalmente inexplorado, nem preciso dizer.
É uma atenuante que ele insinua. E ele insinua, muito a propósito que, pelo menos, não é um pecado original que ele cometeu. Foi um horror, etc., etc, mas a raiz não nasceu dele.
Eu nasci assim. Mas Tu que me conheces, depois de eu ter nascido assim, foste tão bom comigo, Tu amaste a verdade e Tu me revelaste o segredo e o mistério de tua sabedoria. A verdade que Tu amas, o espírito de sabedoria, Tu me deste a mim pecador concebido no pecado original. Agora, eu caí! Resultado:
Todas as vias da santidade estão abertas para mim por causa da tua misericórdia infinita, da tua misericórdia que tem pena, da tua misericórdia que lava; de tua misericórdia que tem multidões de misericórdias em que, em sucessivos lavares me tornará mais limpo do que a neve.
Lembrem-se de que ele falava, há pouco, da dor em que ele estava o dia inteiro; palavra de gozo, ele só quer de Deus; ele não espera das criaturas. Ele sabe que elas não são nada. Mas Deus fará ouvir, a ele, uma palavra de gozo e de alegria.
Quer dizer, uma palavra que entra – como é a palavra de Deus – até o fundo da alma; e que fará com que os meus ossos, que estão desconjuntados – as profundidades pecadoras da minha alma – eles vão, entretanto, exultar. Porque eu recebi uma palavra de Deus, e essa palavra opera o que ela contém. O que ela diz, ela faz já na minha alma, ela entra até o fundo de mim. E Tu não me lavarás apenas de dentro para fora, mas no que eu tenho de mais interno. Tu agirás em mim e eu me alegrarei! Eu confio nesta tua palavra.
É preciso que Deus como que se afaste, não olhe para os meus pecados para consentir em me lavar. Há uma espécie de paradoxo, mas quer dizer o seguinte: o meu pecado foi tão profundo que Tu não consentirias em me lavar; então, lembra de meus pecados apenas para lavá-los e mais nada; não olhes para eles. – Como quem vai lavar um sujeito imundo e pega nele sem olhar porque, do contrário, não tem coragem! – Este, sou eu. Mas, porque Tu és o Deus das misericórdias, faze assim comigo, aproxima-te de mim e lava-me.
Quer dizer, o coração puro precisa ser criado, há uma espécie de nova criação. E o espírito reto que havia em mim antes do meu pecado, eu peço que tu o renoves nas minhas entranhas, no que eu tenho de mais interno, dá-me um espírito! É todo o processo de reconstrução – vamos dizer, o Grand Retour [1] – que é pintado aqui com tintas magníficas, embora eu não queira dizer que ele tenha tido esta intenção. Mas a reconstrução da alma é uma digna imagem do Grand Retour. Acrescenta:
Ele pede e vem o medo do pecado [em] que ele está. Há uma espécie de alternativa. É sempre assim: eu peço isso; mas ele cai em si: mas, eu? Pecador! Está bem, mas, por favor, não me arremesses de tua presença. É verdade, eu mereço, eu fiz isso, eu sou assim; mas, por bondade, não faças isso comigo e, pelo contrário, não tires de mim o teu espírito santo. Pelo contrário:
Aqui diz “espírito magnânimo”. Espírito magnânimo é o espírito grande, um espírito enorme. O resultado: ele promete a Deus uma retribuição:
Se tiveres pena de mim, eu terei pena dos outros. E eu, que agora sou um instrumento de apostolado quebrado nas tuas mãos, inutilizado pelo seu próprio pecado, eu te prometo: eu te servirei. Como quem diz: se não há em mim razão para teres pena de mim, pelo menos tem pena de mim por causa dos outros; porque aos outros eu farei um bem que eu sei que Tu desejas que eu faça. Eu sou um pecador tão horroroso contigo, eu fui de tal maneira ingrato, que Tu, que tens pena deles, é bem o caso [que] não tenhas pena de mim; mas, então, por pena deles, dá-me isto que eu estou pedindo; porque eu farei uso disto, não para esta alma que já não é digna de teu amor, mas para aqueles que Tu ainda amas. Aí vem a expressão – e que tem, no latim, uma doçura enorme e uma majestade enorme – o latim diz isso assim: “Docebo iniquos vias tuas”. E agora vem a frase mais bonita: “Et impii ad Te convertentur”. É uma promessa de regeneração da humanidade. É muito bonito isto aí. Agora ele cai de novo em si, e se lembra do pecado que cometeu com seu general. Ele diz:
Livra-me do peso do sangue que eu cometi: o sangue de Abel pesou sobre Caim. Então, livra-me do sangue, Deus, Deus de minha salvação.
Quer dizer, eu te cantarei pela misericórdia que fizeres, me libertando do sangue que eu derramei. E novamente uma frase de confiança:
Mesmo para eu falar de Ti bem, é preciso que Tu abras os meus lábios; quer dizer, os meus lábios se secaram no pecado, mas Tu os abrirás, e minha língua libertada cantará os teus louvores. Agora vem, então, outro lado. Por que é que ele não ofereceu tantas penitências materiais quanto aparentemente seria possível? Diz:
Um boi, um novilho, ou qualquer coisa; mas Deus não queria. Deus estava irado com ele e não queria o sacrifício oferecido por ele. Então ele diz isto: eu teria oferecido,
Não bastam uns holocaustos, da parte de quem não está com disposições de alma necessárias.
Quer dizer, eu tenho algo que eu sei que aplaca a tua justiça. E este algo é que eu cometi toda espécie de pecados, mas o meu coração está contrito, meu coração está humilhado. E isto não é propriamente dizer que te arranca um perdão em toda força da lei, mas a questão é que isto te aplaca na tua bondade. Tu não desprezas isso. Não é a seguinte frase: Tu dás o devido valor ao coração contrito e humilhado. Mas, é outra frase, Tu não desprezas. Quer dizer: na tua bondade, isto Tu não rejeitas.
Então, ele se põe como o justo que deve continuar a obra de construção, que se tinha iniciado nele. Ele diz: de pena de Sião, por tua bondade, dá-me esta misericórdia, e então serão edificados os muros de Jerusalém. E agora ele faz ver a Deus a glória que Ele terá da nação que será posta nos gonzos necessários.
Aqui então é a idéia de que, só então, Deus aceitará os holocaustos que se celebram no Templo.
A antiga lei funcionará, e a glória de Deus brilhará sobre o Templo de Jerusalém. Como quem, no fundo, diz o seguinte: Senhor, não é só por pena deles, mas é por tua glória; a glória da nação que elegeste é a tua glória. E esta glória só se constituirá se o homem que Tu constituíste, mas que te foi infiel, o reconduzires à fidelidade. Tem pena dele. Senão por amor dele que não merece, senão por amor do povo que talvez não mereça, por amor à tua própria [Glória] salva o homem da tua dextra. E então vem o Glória Patri. Quer dizer, termina-se, pela liturgia, esse salmo. O “Miserere” é o salmo da misericórdia. Impetrando a misericórdia sempre nesse movimento: um susto e um argumento.
Depois – como quem sente que mesmo esse argumento, diante da imensidade do pecado não tem o porte necessário, a coisa desfecha num último argumento: Tende pena de mim, que horror que eu fiz, tende pena de mim, que horror que eu fiz; tende pena da tua própria glória; porque, a Ti mesmo, eu tenho certeza que Tu te amas. Quer dizer, é uma beleza de construção se a gente trata de pegar o fio. Porque, para ler sem cuidado não há o que, lido assim, tenha beleza. Mas se a gente procura construir o fio interno, a gente percebe uma coisa verdadeiramente suntuosa, faustosa. Eu repito essas três aplicações:
Todos esses sentimentos, Nosso Senhor teve na sua Paixão; esses salmos são salmos proféticos.
E de tal maneira Ele [os] teve que no alto da Cruz, rezou aquele salmo: “Eli, Eli, llama sabactani: Senhor, Senhor, porque me abandonais?”, – um salmo mais trágico do que esses aqui em que ele diz que ‘o meu fígado se derramou por terra’ – Vós me abandonais, a salvação foge de mim, eu corro e não a encontro, etc., etc. Mas [que] termina numa afirmação de glória: “Tu és o Deus esplendoroso que estás no alto dos Céus e Tu me socorrerás” etc., etc. É um sumo ato de confiança, é uma prova histórica de que Nosso Senhor tinha os salmos em mente, apropriando-se a Ele enquanto padecia. E que dá uma contraprova de que se tratava de salmos proféticos. E que, nisto, se poderia fazer uma lindíssima meditação da Paixão do Nosso Senhor Jesus Cristo. * * * Poder-se-ia fazer mais do que isto? Eu creio que poderia. Poderíamos fazer desse salmo o salmo de dor de todas as almas de hoje em dia que conservam um resto de fidelidade. Castigadas porque esse castigo também é para nós. Castigadas, porque nós temos, também, uma certa parte no pecado coletivo, sobretudo na medida em que nós não rechaçamos o pecado coletivo com a violência com que nós o deveríamos rechaçar; somos meio coniventes com o mundo moderno. Sobretudo neste sentido, nós temos uma responsabilidade. Mas por outro lado, no sentido em que todas essas almas, como que justas, que representam um filão que deve ficar para depois da Bagarre [2], dizem a Nossa Senhora: Não me quebres, não me destruas, por amor a nós, por amor a todos. Afinal, se não é por amor a todos, se não é por amor a isto: por amor ao Reino de Maria; porque, se nem essas perseverarem, não haverá o Reino de Maria. Então, por amor a Maria, e por amor à glória dEla: tende pena de nós e não nos tritureis, perdoai as nossas iniqüidades, etc., etc. É ao mesmo tempo o salmo da Bagarre e o salmo do Reino de Maria. É o salmo da Bagarre, enquanto exprime essa trituração de todos, até dos bons. E é o salmo do Reino de Maria, enquanto exprime a misericórdia que lava, que recompõe e que faz uma coisa verdadeiramente magnífica. Acaba sendo também o salmo dos fiéis dos últimos tempos, em que sentido? Diz, eu creio que o Apocalipse, – não sei se o Evangelho – que se esses dias não fossem abreviados, nem eles perseverariam. É uma aflição tão grande e uma tentação tão grande que nem eles perseverariam. Os senhores estão vendo então a propriedade da expressão: “Não nos quebreis, não nos destruais, vinde logo, nós agüentamos mais; mas nós confiamos em Vós porque Vós sois misericordioso”; porque isto, porque aquilo e porque aquilo outro. Também e não só dos apóstolos dos últimos tempos, mas dos apóstolos... Daquela parte dos apóstolos dos últimos tempos que vão ser os apóstolos dos fins dos tempos. Os senhores estão vendo, para várias situações, como isso se aplica de um modo esplêndido? Haveria mais uma aplicação? Eu creio que sim. E essa aplicação é a Santa Igreja falando, exprimindo o seu espírito pela boca dos que compreendem o martírio dEla, e compreendendo que Ela está sendo castigada pelos pecados dos homens. * * * (Clicar acima para aceder ao comentário sobre o Salmo "De Profundis") * * *
NOTAS:
[1] A expressão Grand Retour (Grande Retorno) surgiu em 1942, na França. Neste ano, iniciaram-se peregrinações de quatro cópias da antiga e famosa imagem de Nossa Senhora de Boulogne, que visitaram durante cinco anos dezesseis mil paróquias, aproximadamente a metade do número de paróquias daquele país. Tais peregrinações ocasionaram um caudal de graças, que determinou impressionante movimento de renovação espiritual no seio do povo. Este, desde o início, chamou espontânea e apropriadamente esse movimento de Grand Retour, isto é Grande Retorno da França à devoção marial. É oportuno mencionar aqui um excerto do discurso do Papa Pio XII, por ocasião da audiência concedida a um grupo de peregrinos do Grand Retour, em 22 de novembro de 1946:
O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira e os membros da TFP, utilizando-se da significativa expressão francesa, passaram a chamar a graça do Grand Retour, uma profunda restauração espiritual — à maneira de conversão — que Nossa Senhora concederá àqueles filhos seus fiéis, tendo em vista os dramáticos e grandiosos acontecimentos previstos por Ela em Fátima. [2] Bagarre: Um grande triunfo da Igreja e da Civilização Cristã, depois de uma crise, metaforicamente definida na linguagem quotidiana da TFP com esta palavra francesa - cfr. "O Cruzado do século XX - Plinio Corrêa de Oliveira", Roberto de Mattei, Civilização Editora, Porto, 1996, Cap. VII, n. 10). |