Plinio Corrêa de Oliveira
Discurso por ocasião do jubileu episcopal de Dom Antonio de Castro Mayer
“Maison Suisse”, São Paulo, 30 de maio de 1973 |
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Excia. Revma. Dom Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos; Alteza Imperial e Real, príncipe Dom Luís de Orleans e Bragança; Alteza Imperial e Real, Príncipe Dom Bertrand de Orleans e Bragança; senhor vice-presidente, senhores componentes da mesa, senhores membros do Conselho Nacional da TFP; senhores presidentes representantes das TFPs da Venezuela, Colômbia, Equador, Chile e Argentina; Revmos. Senhores Sacerdotes; Revdas. Religiosas, minhas senhoras e meus senhores. Chegou o momento em que, depois das celebrações vibrantes e brilhantes que se desenrolaram na Diocese de Campos por ocasião do 25º aniversário da Sagração Episcopal do Exmo. Senhor Bispo de Campos, também fora de sua diocese se prestasse a Sua Excia. uma homenagem. Homenagem que tem fundamento nesse fato que é corrente na história da Igreja, que é luminoso, que é magnífico nos anais da Cristandade: em todos os tempos, houve grandes bispos cuja personalidade de longe sobrepujou as fronteiras de sua própria diocese e percorreu toda a Cristandade despertando nela um frêmito de admiração e de entusiasmo. Para exemplificar, bastaria lembrar a figura grandiosa de Santo Agostinho, brilhando não só para os católicos de Hipona, mas para todos os católicos daquele norte da África tão atormentado em seus dias, para todos os católicos daquela Cristandade convulsionada pelas invasões bárbaras dos dias em que ele viveu, mas projetando ainda uma enorme luz sobre aquela Idade Média que tanto haveria de se nutrir de suas obras. Um bispo é dado fundamentalmente à sua diocese, é bem verdade, mas nunca se disse e nunca se pretendeu que um bispo fosse dado exclusivamente à sua diocese, ou os limites de sua jurisdição são os de sua diocese. Mas o limite para o bom odor de Cristo que dele se evola, para a irradiação de seu talento, para a manifestação de sua virtude, esses limites não existem. Eles são os limites da própria terra, eles são os limites do universo e é por essa razão, excelentíssimo Senhor Bispo, que aqueles que não tem a fortuna de ser seus diocesanos e que, entretanto, olham com olhares que eu diria cúpidos ou gulosos para a cidade de Campos, onde tão bem se vive sob o signo da fé e da tradição, esses católicos que não só no Brasil hoje em dia, mas no mundo inteiro, na América, nas duas Américas, no mundo inteiro, olham com admiração para a pessoa de V. Excia. Esses católicos quisessem apresentar a V. Excia. uma homenagem especial por ocasião de data tão grata e eu me sinto verdadeiramente – na qualidade honrosa de membro do Conselho Nacional da TFP – deputado de todos eles, para vos dizer neste momento a nossa admiração, o nosso respeito, o nosso profundo reconhecimento. Meus senhores e minhas senhoras, pelos lábios tão cheios de fogo do meu ex-discípulo, hoje colega, professor de história, prof. Orlando Fedeli, falou a admiração, falou o entusiasmo (leia o discurso mencionado, em que o referido orador afirma: "Ao Dr. Plinio nós homenageamos também como a V. Excia., Dr. Plinio, terror da Revolução, amor e glória dos filhos de Nossa Senhora"). O entusiasmo é o modo pelo qual a admiração canta. Vai agora falar-vos, pelos meus lábios, a admiração e o entusiasmo também, mas a admiração e o entusiasmo, pela voz pausada, pela voz que, espero, não seja demasiado monótona, pela voz da reflexão. Quero analisar a figura de Dom Antônio de Castro Mayer, situando no contexto de sua vida, situando no contexto da história do mundo, porque como bem disse o prof. Orlando Fedeli, não é apenas em função da diocese de Campos e da história da diocese de Campos – entretanto história rica, fecunda, digna de respeito - não é só em função dessa história, mas é em função da história da Igreja no Brasil, é em função da história da Igreja em nossos dias, que a figura de nosso homenageado de hoje deve ser considerada. Portanto, cedendo ao peso de um velho professor de História, eu tenho a tentação, nessa reunião que é tão grande, mas de outro lado é tão íntima porque reúne pessoas aglomeradas aqui, aglutinadas por uma tal afinidade de idéias, por uma tal afinidade de aspirações, por uma tal consonância de admiração em torno da pessoa de Dom Antônio de Castro Mayer, eu sinto a tentação a qual, em alguma medida, na medida consentida pela brevidade, eu pretendo ceder, de fazer uma análise do que é Dom Antônio de Castro Mayer no mundo contemporâneo. Esta análise, meus caros, começa num tempo bem distante. E ela deveria deveria começar assim, como os “contos da carochinha”: Houve uma vez, uma cidade que tinha mais ou menos 500 mil habitantes... Houve uma vez uma cidade que já se considerava uma metrópole industrial... Houve uma vez uma cidade ainda equilibrada na sua massa e na sua população, no seu dinamismo e na capacidade de suas vias públicas; uma cidade em que coexistiam, num equilíbrio precário, mas que sem embargo trazia todos os encantos do equilíbrio, em que coexistiam harmonicamente a tradição e o progresso; uma cidade na qual coexistiam harmonicamente a brasilidade, ainda nota dominante, e o afluxo cheio de vitalidade e dinamismo da imigração; houve uma vez uma cidade que não tinha um encanto que se notasse à flor das ruas e à flor da pele, mas cheia de um encanto que se notava num quê misterioso difícil de definir, mas quão real e saboroso: era o encanto do ritmo da vida, o encanto do estilo da vida. Uma cidade na qual morava um povo que eu seria tentado a chamar – se eu não temesse as seduções fáceis e tão atraentes do bairrismo – os romanos do Brasil. Porque nessa cidade habitavam os homens com capacidade de expansão e com a capacidade de comunicar o estilo de vida que foi próprio ao gênio romano. Essa cidade, meus caros, essa cidade se chamava São Paulo. Cidade da garoa ainda, mas já cidade da fumaça. Cidade da tradição ainda, mas já cidade do progresso. Cidade ainda da tranquilidade, mas já cidade da agitação, apresentando entre seus múltiplos encantos, até este: um centro buliçoso, mas que era, ao mesmo tempo, ainda um centro social. Onde se encontravam os homens atarefados pelos negócios que corriam, mas, ao mesmo tempo, no próprio centro da cidade, as senhoras distintas e aristocráticas, que iam comprar pérolas, iam comprar jóias, iam comprar objetos de luxo ou de piedade nas grandes casas do centro da cidade. De maneira que a dignidade, a distinção da vida social... existiu isso outrora: a dignidade, a distinção da vida social, o pudor da vida social, o recato da vida social coincidiam ainda harmoniosamente com a trepidação bancária, com a trepidação febricitante dos negócios que começavam a tomar rapidez. Essa cidade de São Paulo, a qual, como os senhores bem vêem, eu não consigo referir-me sem uma saudade que lhes garanto que não é saudosismo. Porque não é apenas a saudade boba, a saudade um pouco senil do homem que se volta para seu passado de medo de morrer, de vontade de reviver, uma apetência de fazer voltar atrás o curso da história, mas é a saudade de um homem – vós, a esse homem conheceis bem de perto – afeito à análise. Compreendendo que a análise só tem valor quando ela é implacável, quando ela é exata, minuciosa, precisa, intransigente, que aperta a realidade como uma tenaz para tirar de dentro dela a verdade. Mas também fazendo sair dela o suco da verdade, pode-se encantar, pode-se deleitar – que diria eu? –, pode-se inebriar com o sabor, com o aroma, com a harmonia da verdade. É essa cidade de São Paulo, assim analisada, nos idos tempos que iriam, mais ou menos, de 1925 a 1935, é essa cidade a que me refiro. E nela, no contexto dela, coloco Dom Antônio de Castro Mayer. Naquele tempo, o orador já sexagenário que tem a honra de vos falar nesse momento, era um jovem. E a sua vida se tinha dividido em duas partes bem claras, bem distintas. Uma parte de sua vida tinha sido entregue ao turbilhão do mundo. Graças a Deus, não ao turbilhão do pecado. Mas vós sabeis quanto o turbilhão do mundo é cheio das fuligens do turbilhão do pecado, se bem que naquele tempo não se confundisse com ele. Ao turbilhão do mundo, entregue, portanto, às circunstâncias especiais do mundo daquele tempo, pertencente a um grupo, a um escol social da cidade de São Paulo, com os olhos constantemente voltados para o exterior. E recebendo, portanto, todos os aromas do exterior, todas as agitações do exterior, pressentindo também todas as catástrofes que se estavam preparando nesse período chamado “entre deux guerres”, 1918 a 1938, ou 39. Pressentindo todas essas catástrofes não só nos miasmas da decadência da Europa, cuja cultura já em declínio nos chegava, produzindo suas últimas flores de encantamento, mas também as suas últimas flores de veneno, mas também o turbilhão esse da vibração, do dinamismo que vinha dos Estados Unidos, com a americanização, com o jazz, com as danças extravagantes, com o gosto da aceleração exagerada, com o gosto da imprevisão, com o gosto da prática em sacrifício da teoria, com o gosto do ouro valendo como valor supremo da vida e se impondo sobre a virtude, sobre a cultura, sobre todos os outros valores tradicionalmente admitidos. E sobretudo sobre o valor dos valores, sem o qual nenhum valor é verdadeiramente valor, a Santa Sé Católica, Apostólica, Romana. Nessa cidade, onde minha vida tinha transcorrido e onde, por feitio, exatamente pelo hábito da análise, ainda muito jovem eu via se acumularem as tempestades vindas de toda parte do mundo. E eu via ainda no contato com os meus patrícios, as debilidades diante das crises internacionais, a excessiva receptividade para tudo quanto é de fora, a propensão para abandonar tudo quanto era nosso, tradicional, genuíno, cristão. Nessa cidade, uma ruptura em minha vida em determinado momento se deu. Uma ruptura pela qual eu deixei o ambiente do mundo e eu tive a sensação curiosa – vós que conheceis a cidade do Rio de Janeiro me compreendereis perfeitamente – eu tive essa sensação curiosa de quem vai pela rua das Laranjeiras, sobe a rua do Cosme Velho no meio da barulheira, dos ônibus que sobem, que descem, dos automóveis que se cruzam, das buzinas, dos transeuntes, etc. e, de repente, entra bruscamente à direita e passa para o largo do Boticário.
Largo do Boticário (Rio de Janeiro) em foto relativamente recente De repente, silêncio. De repente, passado. De repente, tradição. Todos os ruídos acabam. Uma pracinha encantadora, um calçamento desigual, encantador como tudo quanto é desigual e que foi consolidado, na sua desigualdade cheia de imprevistos. Pelo passado foi martelado pelos passos de inúmeros transeuntes que deram àquilo a configuração do passo humano, humanizando mais ou menos as pedras e fazendo com que se tivesse mais ou menos a sensação do contato com as gerações que por ali andaram: passos aflitos, passos vagarosos, tropel de cavalos, passos de damas, liteiras que entravam... tanta coisa que passou por cima desse calçamento. Por cima desse calçamento, à sombra de árvores frondosas que se projetam, um pequeno monumento central apenas para indicar que aquilo tem um centro. E para indicar que, no meio de tanta variedade, houve a cogitação sobre o ponto da unidade, afirmando o velho princípio da unidade na variedade como perfeição de todo o universo. Solares nos dois flancos, casas menores, antigas como fundo de quadro que nunca ninguém mudou e onde se tem a impressão de que a vida não passou. De tal maneira que se tem a sensação de que a qualquer hora vai se abrir uma porta e vai sair uma senhora de mantilha, ou vai sair um senador do império, com sua casaca de veludo azul, com seus galões de ouro, para ir a uma sessão do senado. O rio carioca, o rio carioca tão poluído, tão prostituído, tão canalizado por debaixo da terra, mas que ali aflora e que canta no meio de um pedregulho irregular, que felizmente a prefeitura ainda não pode por em ordem. Uns fundos de casa com tudo o que há de íntimo, de pitoresco, de ligeiramente prosaico em tudo quanto é fundo de casa, e que nos repousa da monotonia monumental dos apartamentos modernos: uma colcha velha, uma roupa secando no sol, um cachorrinho que ladra... vida concreta, sons de ambiente caseiro, repouso! Sai-se da inferneira moderna e entra-se para um ambiente completamente diverso. Essa sensação de ter encontrado um “largo do Boticário” espiritual, tive-a eu quando, de repente, saindo dos ambientes mundanos, um tanto cosmopolitas, agitados, vivos, esplendorosos, penetrei naquilo que naquela São Paulo daquele tempo tinha um nome que corresponde a uma realidade que, como tantas outras, mais ou menos já se esvaeceu. Foi nesse “largo do Boticário” que encontrei mais do que tudo isso que acabo de descrever, mais do que as casas velhas, mais do que o rio da Carioca que corre, mais do que as frondes das árvores, eu encontrei a intimidade e o perfume dessa instituição incomparável, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana...! Eu me vi católico praticante mais ou menos durante toda a minha vida, até aquele momento, eu me dei conta que eu conhecia a Igreja um tanto de fora para dentro. E que era nesses meios que eu ia conhecê-la praticamente de dentro para fora. Eram os chamados meios católicos. O que eram os meios católicos? Eram algo de bem diferente do conjunto da cidade. Toda a matriz, toda a igreja funcionando junto a um convento – embora ela não fosse paróquia, embora ela não fosse matriz, não fosse sede de uma paróquia, não fosse matriz – toda matriz era o foco de umas tantas associações religiosas: Congregações Marianas para os jovens, Apostolado da Oração, Liga de Jesus Maria José, Ordens Terceiras, para pessoas de mais idade. Para as jovens, Filhas de Maria. Ainda algumas pequenas associações locais, nascidas de iniciativas locais, porque nada era rígido, nada era enquadrado, nada era excessivamente disciplinado. Havia uma dessas ordenações, como num jardim inteligentemente bem organizado, onde as alamedas crescem bem, onde o jardineiro sabe evitar a vegetação inútil, mas onde as plantas podem se expandir segundo o seu próprio feitio e sua própria natureza. Havia então ali essa vegetação exuberante das associações religiosas, que giravam em torno do vigário e seus coadjutores. E que constituíam, pelo convívio recíproco, mais do que um grupo de pessoas que se encontravam apenas na sacristia, na entrada e na saída das cerimônias religiosas, mas que depois se encontravam nas sedes das associações cujas famílias se conheciam e formavam um ambiente social. Um ambiente social muito mais próximo da paróquia do que todos os outros católicos que constituíam a massa da população. Um ambiente social que realizava as suas reuniões, que realizava sua própria vida social. Então, numa união muito mais estrita com os princípios da Igreja, com as doutrinas da Igreja e cujas grandes festas, cujas grandes solenidades eram no salão paroquial. E brilhava, sobretudo, com todas as suas luzes, na festa do vigário, centro de toda essa vida social, como ele era na igreja, na matriz, o centro da vida espiritual. Mas imaginem uma cidade de 500 mil habitantes, com um número já grande de paróquias, número grande de conventos que não eram sede de paróquias. Imaginem esse tecido de paróquias se relacionando entre si, de maneira que de uma paróquia para outra essas inter-relações se formavam. Imaginem tudo isso multiplicado ao infinito pelo interior do Estado e depois por todo o mapa do Brasil. Os senhores terão, então, uma sensação do imenso meio fechado, um tanto homogêneo, um imenso meio fechado vivendo densa e intensamente sob a inspiração e influência da Igreja, meio esse que não era batido pelas ondas de fora, meio esse que vivia – enquanto o mundo continuava a agitar-se e sacudir-se – vivia numa paz singular. Aquela paz que eu creio que se poderia chamar a “paz piana”, a paz de São Pio X.
São Pio X foi um pontífice combativo. No seu processo de canonização, como os senhores bem sabem, o advogado do diabo levantou uma pergunta: por que estava trincada a esmeralda do anel papal? E recebeu essa explicação, que à primeira vista, o encheu de esperança de torpedear a canonização do pontífice: a esmeralda estava trincada – e creio eu haverá aqui, naturalmente, especialistas que possam me desmentir, creio que a esmeralda é uma pedra dura – a esmeralda estava trincada porque, num gesto de cólera, o papa dera um murro sobre a mesa. Então foram perguntar por que. E era porque o embaixador da Alemanha ia levar ao papa uma sugestão do governo imperial, que o pontífice reputava insultante à sua dignidade de Vigário de Cristo. E como ele sabia disso, de manhã, na missa, ele pediu a Deus a virtude da cólera. E quando o embaixador lhe apareceu e lhe fez a sugestão, ele, num gesto muito peninsular, deu um murro sobre a mesa. A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa e santifica. Deu um murro na mesa e trincou a esmeralda. Horas depois ainda o papa vibrava de ira santa por causa da indignação da proposta do embaixador do Kaiser. Acontece que os homens que são combativos para o bem, esses são os verdadeiros homens que fazem a paz. Porque são combativos contra os fautores da divisão, são combativos contra os fautores do mal, são combativos contra o erro. E, por causa disso, deles nasce a paz. Pio X, o pontífice combativo, criou na Igreja, pelo destroçamento do modernismo, que ficou encolhido nos seus antros à espera de melhor oportunidade para tentar – e com que terrível sucesso! - a reconquista da Cristandade, Pio X foi o homem que lançou na Igreja uma grande paz, que no Brasil perdurou mais do que em outros lugares. Essa “paz piana”, paz da ortodoxia, paz na união de todas as cogitações e de todas as vias em torno da lídima doutrina católica, essa “paz piana” pairava sobre esses ambientes católicos sob a forma de uma concórdia interna, de uma fraternidade no sentido católico e verdadeiro da palavra, de uma colaboração sem nuvens, uma ausência de rivalidades, de pontos de amor próprio, de divergências, de discussões, que fazia com que – e quantas vezes eu mesmo senti isso – viajando pelo interior, viajando por qualquer parte, tocando campainha na casa de qualquer vigário, entrando em qualquer igreja e dizendo: “eu sou congregado mariano, padre, eu queria tal coisa, por favor, tal outra”... Ou então dizia para um membro do apostolado da oração: “eu sou congregado mariano”... – Imediatamente (se ouvia): “entre aqui, venha cá, o que quer?” Ajuda, auxílio, aplauso... nem passava pela cabeça – e V.Excia se lembra bem disso, porque já o comentamos várias vezes – nem passava pela cabeça a idéia de uma frincha, de uma divisão. Esses ambientes não olhavam quase para fora. Eles nem se davam conta da imensa crise que se acumulava sobre o universo. Eles não se davam conta, por causa disso, da grande necessidade de combater. Eles viviam despreocupados. A Igreja não tinha adversários externos, ponderáveis e sensíveis nesse momento. O vagalhão do positivismo morrera, exausto. Não porque encontrasse no Brasil grandes apologistas que lhe cortassem o caminho, mas porque o desgastou a perenidade da Igreja. Ele fez, ele proclamou, ele arrasou, ele destruiu. E quando ele acabou de fazer tudo e seus corifeus estavam velhos, a Igreja estava tranqüila, pacífica e criando novas coisas. Se uma onda do oceano, quando morre na praia, sentindo-se escorrer dentro da areia e recuando envergonhada... se uma onda pudesse pensar, ela pensaria o que os últimos positivistas pensaram diante da grande bonomia da Igreja, da grande tranqüilidade da Igreja à vista da inutilidade do esforço positivista. Houvera uma investida protestante. Uma investida protestante contra a qual Dom Duarte Leopoldo e Silva armou uma associação que hoje seria reputada tremendamente anti-ecumênica: a Legião de São Pedro. Essa associação tinha por finalidade, quando os protestantes espalhavam bíblias de um lado e de outro, e faziam suas prédicas, de começar a discutir... Essa associação em São Paulo quebrou a investida protestante. Mas manda a verdade que se diga, que independente disso, a modorra do povo brasileiro tornou a investida protestante inútil. Os protestantes vieram, eles gastaram, eles proclamaram, eles fizeram, o povo brasileiro os olhou com a displicência como quem olha um perigo impossível e inútil. E o protestantismo enlanguesceu e começou a dormir diante da indiferença geral, sem que ninguém prestasse atenção a ele. “Paz piana”... adversários muito mais do que derrotados e humilhados, mortos por falta de ar fora das paredes da casa doméstica. Era a fraternidade interna, concórdia completa, ignorância dos grandes problemas universais, este era o ameno, o piedoso “largo do Boticário” que encontrei na minha vida, surpreso, encantado, mas, ao mesmo tempo, atônito, quando eu passei de um mundo cheio de agitação para este imenso mundo fechado que se chamava meios católicos. Eu não posso vos ocultar que uma estranheza, uma preocupação, uma apreensão eu senti à vista disso.
No topo da nau católica, na cidade de São Paulo, uma figura simplesmente granítica: Dom Duarte Leopoldo e Silva. Homem esguio, alto, que tinha um olhar com uma força extraordinária, uma grande segurança de si, uma fisionomia vulcânica, trabalhada pelas provações e pelas lutas de seu passado do tempo do protestantismo, do tempo do positivismo. Ele parecia a gloriosa relíquia de uma época de lutas. Ao mesmo tempo, com seu brasão com a divisa: Ipse firme et autorictas mea, Cristo é a minha firmeza e a minha autoridade. Ele olhava meticulosamente para aquele lindo jardim que ia nascendo sob suas bênçãos e não havia erva daninha que ele não extirpasse. Mas este homem que de tal maneira pregava assim a força e a vigilância, este homem, ele também concorria involuntariamente, quase a contrário sensu, para essa atmosfera de tranqüilidade. Porque todo mundo olhava para ele e dizia: “Se houver um problema, Dom Duarte resolve, se houver um inimigo Dom Duarte liquida. Eu vou viver tranquilamente a minha vida”. E se alguém perguntasse: “mas, como?! Dom Duarte pode morrer!” A resposta seria: “não, então o mundo acaba... Dom Duarte não vai morrer”. Não passava pela cabeça de alguém – não é mesmo, Dom Mayer? – que Dom Duarte pudesse morrer. Sabia-se que ele era mortal, sabia-se que o mundo não acabaria. Mas havia a idéia de que ele era um marco tão firmemente cravado no chão, que sua morte estava para um futuro indefinido, que nunca se sabia qual seria. Eu então pensava, com os meus botões, o seguinte: nesta cidadela tão bem protegida e um tanto desprevenida, onde brilham todas as virtudes, mas onde, de um momento para outro, as circunstâncias podem exigir a virtude da fortaleza, nesta cidadela, qual o Padre, qual o Pastor, qual o varão de Deus suscitado para as horas da crise, as horas da dificuldade, as horas da luta? Quando essas horas vierem, quando essas tempestades que se desencadeiam no mais alto do céu baixarem sobre a terra, atormentarem essa cidade, atormentarem esse País, qual o peito sobre o qual essas ondas vão se quebrar?...” A minha pergunta não era vã. Porque, exatamente, por volta de 1935 e quando a vida de Dom Duarte já se encaminhava para seu declínio, por volta de 1935 começam a aparecer os reflexos no Brasil do fascismo, do nazismo, do comunismo... Desse comunismo que Dom Duarte, num discurso histórico, declarou que tinha vindo para o Brasil na mochila dos soldados que vieram com Getúlio Vargas, em 1930, mas que se tornou uma realidade bastante palpável em 1935 para dar origem a golpes de estado em Natal, em João Pessoa, em Recife... Desse movimento comunista que, a contra senso, gerava os elementos fundamentais do nazismo e do fascismo entre nós. Nesse Brasil as tempestades começaram a entrar... Os primeiros germens da divisão entre os católicos também começaram a se fazer notar. Aquela concórdia diminuiu, as diferenças de ponto de vista começaram a se firmar, os matizes, infelizmente, começam a se vincar, aparecem os católicos de direita e os de esquerda. Os católicos de direita, designação ambígua, ora para designar os facistóides, ora para indicar aqueles que simplesmente não queriam nem o fascismo nem o comunismo. Os católicos da esquerda, católicos da “politique de la main tendue” (política da mão estendida), os católicos da democracia cristã, os católicos do socialismo cristão, os católicos maritainistas, que começam a lutar. E, de outro lado, dentro de pouco tempo, começa então o turbilhão, este muito mais sinistro, das doutrinas teológicas estranhas. O turbilhão, muito mais grave, das doutrinas que afetam a própria ortodoxia e a própria moral católica e começam a produzir polêmicas entre católicos, que há dois, há três, há quatro anos atrás se poderiam imaginar verdadeiramente insustentáveis. Nesta transição da era, como que edênica, como que paradisíaca da “paz piana”, para o começo dessa luta, aparece uma figura. Chama-me a atenção um sacerdote que me parecia possuir todas as virtudes inerentes ao sacerdócio mas, de um modo especial, as virtudes que a crise ia exigir, que os tempos futuros iam exigir, um sacerdote que me parecia, por causa disso, ser o homem do futuro, a muralha da Igreja, diante de cuja firmeza iam se quebrar os vagalhões que inevitavelmente haveriam de assaltá-La. Esse sacerdote, que vós bem o vêdes, era o então padre Antônio de Castro Mayer. Esse sacerdote – geralmente acatado, moço ainda, mas já professor no seminário do Ipiranga – me parecia que tinha essas características, porque todas as virtudes dele eram marcadas com uma nota que parecia mais feita para os dias vindouros do que para os dias que nós vivíamos. Inteligência penetrante, lúcida, com uma capacidade de compreensão extraordinária, mas, ao mesmo tempo, uma inteligência investigadora e indagatória. Uma inteligência que no mais alto e belo sentido – e eu reconheço a essa palavra, que entre nós repercute como uma palavra de elogio extraordinário – nós podemos dizer que era uma inteligência inquisitorial, à maneira da inteligência de São Pio V, o grande inquisidor da Itália. Inteligência que fez, com o que eu ouvisse, a respeito de Dom Antônio de Castro Mayer, dos lábios do sucessor de Dom Duarte Leopoldo e Silva, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva, essa referência a Dom Mayer que lhes direi a seguir. Eu, nesse tempo, não conhecia ainda Dom Mayer muito de perto. Levei a Dom José Gaspar um documento qualquer, mostrando-lhe que tinha um erro qualquer de doutrina. Ele leu um pouco e disse: “Olha – ambos eram colegas e muito amigos, daí a linguagem livre –, procure o Mayer e mostre ao Mayer, porque o Mayer tem uma inteligência tal – e aí os senhores vêem definido o sentido de sua inteligência – o Mayer tem (Dom Mayer, faz de conta que V. Excia não está presente nessa descrição), o Mayer tem uma inteligência tal, que se der para ele um material qualquer, ele descobre o erro sem microscópio. Se for preciso microscópio, ele usará e descobrirá. Se não houver um microscópio e ele não enxergar, ele queima, reduz a cinza, analisa a cinza. Se houver erro, ele descobre”. Decidido, trabalhador. Mas o gênero de trabalho e o gênero de decisão tinham qualquer coisa de aquilino. Assim como, por exemplo, a águia sobe e cai sobre a presa, assim também a atividade de Dom Mayer era uma atividade em linha reta. Consistia em subir muito acima do horizonte e, do alto do horizonte, praticar um vôo em linha reta em cima do problema. Pegá-lo, agarrá-lo e resolvê-lo. Dom Mayer era certamente um homem de propulsão. Ele era e é, certamente, um homem de dinamismo. Dom Mayer levantava vôo e baixava de novo, tomava o problema e era para resolvê-lo num golpe, numa medida seca e que o resolvia de uma vez só. Homem certamente não só de luta, não só de estudo, não só de trabalho, mas homem também muito atento e observador. Muito atento aos matizes das coisas, muito atento às “nuances” (matizes), apaixonado por observar as psicologias e as mentalidades. Mas, ao mesmo tempo, sempre propenso a estudar as grandes correntes do pensamento moderno. “Pari passu” que eu o ia conhecendo, ia pensando de mim para comigo (isso eu não disse a ele e reservo como sendo minha homenagem desta noite): “qual! Esse não é o homem do presente. Esse é o homem do futuro. O futuro dirá o serviço que esse homem pode prestar”. Professor do seminário, vigário geral coadjutor efemeramente da matriz de Santa Cecília, ele estava em dois pontos altos, entre tantos outros, da vida religiosa do Brasil naquele tempo. Porque a gente poderia dizer um pouco que Santa Cecília era, para a vida religiosa do Brasil, o que São Paulo era para a vida política e econômica do Brasil do tempo: uma metrópole extra-oficial, com todas as alavancas na mão. Que os cariocas não briguem demais comigo, depois eu explico melhor, se quiserem... Dom Mayer começa a trabalhar no “Legionário”, onde seus comentários do Evangelho se tornam prontamente conhecidos e chamam a atenção de todo o Brasil católico. Dom Mayer é logo depois elevado, por Dom José Gaspar de Affonseca e Silva, à dignidade de cônego do Cabido Metropolitano, ao cargo de assistente geral da Ação Católica; à dignidade de vigário geral. Mas quando essa carreira vai galopando para seu zênite, também as tempestades chegam ao seu zênite. Começa uma fase que nós poderíamos chamar a fase vulcânica da vida de Dom Antônio de Castro Mayer. Há, meus caros, duas espécies de biografias. Há algumas biografias que são belas como é belo este copo d’água, cristalino, límpido, a gente o percorre com um olhar e poderia dizer que o bebe com um só gole. Pessoas que morrem e das quais se pode dizer logo tudo quanto a respeito delas há que dizer. Porque tudo quanto fizeram é belo, tudo o que fizeram é nobre, tudo o que fizeram é reto, tudo o que fizeram está ao alcance e ao conhecimento de todo mundo, porque qualquer um pode entender. É uma forma de beleza das biografias. Há outras biografias que são diferentes: elas têm a nobreza de certos líquidos que o olhar não desvenda desde logo, que pedem uma iluminação especial para se compreender a fulguração de opala, a variedade de cores de opala que dentro deles existe. É preciso colocar à uma luz especial para que se perceba tudo quanto neles há, todo o colorido que neles há. Há certas vidas que não podem ser contadas inteiras, não só em vida daqueles de quem se fala, mas até depois da morte daqueles de quem se fala, porque são vidas que rasgaram a história, que rasgaram os acontecimentos, como o arado rasga a terra para que dentro dela se deite a semente. Mas o arado é insensível. Ele rasga, mas não dói nele o rasgar. Os “homens arado” que rasgam a terra, mas que são sensíveis e que se rasgam ao rasgar, que na noite ou na tempestade, se for preciso abrem os sulcos salvadores para que entrem as sementes do futuro, esses homens têm, muitas vezes, vidas que não se podem contar de imediato.
Sagração episcopal de Dom Antonio de Castro Mayer A vida de V. Excia., Dom Mayer, tem as duas características. Até aqui vai a vida clara, a vida fácil de contar, a vida brilhante do sacerdote cheio de futuro, festejado, querido por todos. Daí por diante começa aquilo que nós poderíamos chamar o longo tormento de Dom Mayer, o longo martírio de Dom Mayer. É o momento em que Dom Mayer começa a engrandecer aos olhos daqueles que eram verdadeiramente capazes de engrandecer. É o momento em que, em virtude de circunstâncias que não é hora de relembrar aqui, mas que vós todos conheceis, em virtude dessas circunstâncias Dom Mayer vai crescendo. Crescendo porque ele aceita a luta, crescendo porque aceita a incompreensão, crescendo porque aceita a hostilidade, porque aceita a calúnia, porque aceita a perseguição, sempre sereno, sempre tranqüilo, sempre desprendido, sempre indiferente a cargos, sempre indiferente à carreira, aceitando com a mesma humildade, com a mesma decisão, com a mesma ausência de falsa humildade, todos os vilipêndios ou a dignidade episcopal que sobre os ombros dele, num momento de luz, num momento de surpresa, foi como que um antegozo do Reino de Maria. Há vinte e cinco anos atrás, colocaria a mão sagrada do Papa Pio XII, elevando-o a bispo titular e coadjutor de Dom Otaviano Pereira Albuquerque, arcebispo-bispo de Campos. Não é o momento, meus caros, de dizer-vos tudo quanto de lá para cá se passou. Vós sabeis de muita coisa. Vós sabeis quantos amigos Dom Mayer perdeu. Vós sabeis quantos admiradores Dom Mayer perdeu. Vós sabeis quantas pessoas deixaram de entender Dom Mayer. Vós sabeis também – e como isso é triste – quantos amigos começaram a ver a trajetória de Dom Mayer, de longe, com medo de se aproximar dele; de medo de se envolver na grande epopéia de dedicação e de sacrifício que a vida de Dom Mayer tem sido. Mas afinal vós o vedes aqui. Afinal vós o vedes neste instante. O nome dele transbordou de todas as fronteiras do País, transbordou das fronteiras de sua diocese, transbordou das fronteiras do estado onde ele é bispo, transbordou das fronteiras de São Paulo, onde brilharam os primórdios de seu apostolado e de onde ele é natural, transbordou das fronteiras do Brasil. E aqui está uma plêiade de jovens, representando uma legião de jovens que vai desde Madrid até o mais sul da América do Sul, ou até Nova York, vai do Oceano Atlântico ao Oceano Pacífico. Que vai, como dizia o hino das congregações marianas, do mar as cordilheiras, de jovens para os quais a pessoa de Dom Mayer é uma luz, a pessoa de Dom Mayer é uma orientação, a pessoa de Dom Mayer é uma firmeza, a pessoa de Dom Mayer é uma razão de esperança, é um estímulo para a luta. São os jovens da TFP, para os quais – e eu tenho a alegria de dizer – a amizade de Dom Mayer e o apoio de Dom Mayer resplendem sobre a fronte dos jovens e não jovens da TFP, como o diadema pode resplandecer sobre a fronte de um homem. Dom Mayer não é só isso. Tive ocasião de verificar, em vossa diocese, toda a admiração que vos tem o verdadeiro escol de vossa diocese. Eu, na minha vida inteira, não vi ninguém, ninguém, aplaudido como Dom Mayer o foi, na noite em que, no Forum de Campos, lhe foi promovida uma homenagem pelo clero, com a participação das mais altas autoridades locais, de Dom Antônio de Almeida Morais, arcebispo de Niterói e que estava presente para prestigiar, por essa forma, o ato que se realizava. E quando eu via as pessoas se aproximarem de Dom Mayer, era com uma espécie de sofreguidão, era com admiração, com um brilho de olhos, eu diria - lembrando o salmo da Escritura - que chegavam a Dom Mayer “sicut cervum ad fontem aquarum”, assim como o cervo se aproxima da fonte das águas, cheio de sede para se dessedentar. Mais ainda, pelo Brasil inteiro, sacerdotes, religiosas, leigos, olham para Dom Mayer como sendo a grande luz, a grande esperança, a grande firmeza. Fora do Brasil também, não só nos setores da TFP, mas por toda parte onde a expressão “fidelidade incondicional à Santa Igreja Católica Apostólica Romana“ quer dizer tudo. O nome de Dom Mayer é um nome sagrado, é um nome pronunciado com um sentimento que se enfeixariam nessas palavras com que eu vou terminar a minha oração: “Tu laetitia Israel, tu honorificientia populi nostri”. Dom Mayer, vós sois a alegria de Israel, a honra daquele povo que quer ser fiel à Igreja Católica em tudo, para tudo e acima de tudo! (aplausos)
Da esquerda para a direita: Prof. Fernando Furquim de Almeida, Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, D. Antonio de Castro Mayer, Príncipe Dom Bertrand de Orleans e Bragança, Dr. Plinio Vidigal Xavier da Silveira, por ocasião do discurso acima transcrito Nota: A fim de se ter uma breve noção a respeito do relacionamento do então Bispo de Campos com a TFP, leia-se a propósito da sagração episcopal realizada em Ecône (Suíça), em 30 de junho de 1988, pelo Arcebispo Marcel Lefèbvre, a nota que o Serviço de Imprensa da TFP distribuiu, nessa ocasião, aos órgãos de comunicação social. Igualmente, veja-se o comunicado de imprensa da TFP por ocasião do falecimento de Dom Antonio de Castro Mayer, a 25 de abril de 1991. |