Plinio Corrêa de Oliveira

 

Considerações em torno de

"Revolução e Contra-Revolução" - II

 

 

 

 

 

 

 

 

(continuação)

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Quando estudamos o problema da decadência da sociedade medieval, ocorre-nos uma indagação no sentido de saber por onde ela se vergou à Revolução.

Muitos afirmam que a decadência coube aos reis e ao clero que deram o passo inicial. Há outra teoria, mais simpática, que é a de que tudo foi possível a partir do momento em que a resistência deixou de ser caracterizada por uma intolerância enérgica, indignada e militante. Só a reação enérgica é capaz de deter o progresso do mal. O mais lamentável não é que os maus sejam audaciosos, mas que os bons não lhes ofereçam a intolerância e resistência enérgica que eles demonstram para com o bem.

Se alguém denuncia publicamente o mal praticado pelos revolucionários, algo se lhes atrapalha, ainda que eles não queiram. E é esta espécie de atrapalho interno que produz o estertor dos revolucionários. Muito poucos têm coragem para contra-argumentar a quem lhes denuncia. E vence quem argumenta com mais intolerância e implacabilidade, no sentido mais profundo da palavra. Pode-se, em certo sentido dizer, sob este aspecto, que tudo depende inteiramente da intolerância.

O mal começa a vencer quando os bons deixam de ter essa intolerância ousada e triunfante. A história do carlismo na Espanha, por exemplo, é a história de uma parte dos espanhóis que são intransigentes, que não querem ceder. Enquanto os carlistas não forem reduzidos, estarão pondo obstáculos ao avanço da Revolução. O simples fato de existirem representa na Espanha forte foco contra-revolucionário. A história da decadência da Espanha não é a história do progresso dos liberais, mas é a história da decadência da intransigência dos carlistas.

Desde a Idade Média até nossos dias a atitude dos apóstolos da Igreja face à Revolução tem sido, em linhas gerais, defensiva. Os soldados da Igreja têm pensado sempre em se defender, em construir muralhas. Os poucos que tiveram intolerância militante deram origem a heroicas resistências. É o caso de São Luís Grignion de Montfort cujo apostolado deu origem à Vandéia, o maior foco de resistência à Revolução Francesa.

Podemos deduzir das noções já expostas uma teoria da tolerância. É possível tomar-se em relação à Revolução tanto uma posição tolerante legítima, verdadeira, como também enganar-se com uma falsa tolerância.

Suponhamos um diretor de almas que trata um seu dirigido, que na linha essencial de seus deveres vai bem, mas que tem fraquezas neste ou naquele particular; pode ser conveniente aguardar a hora de Deus para dizer determinada verdade, e, portanto, ter muita tolerância e ser contemporizador. E nisto, com muito tacto, ser tolerante, é um bem.

 Mas se a mesma pessoa pede a seu diretor uma tolerância na linha de suas próprias paixões, e uma tolerância que consista em concordar em que ela faça capitulações naquela linha, seria enorme pecado deste diretor de almas, uma concessão consciente.

Não podemos tolerar, tendo autoridade para isso, que, de quando em vez, fume um cigarro um homem que tenha um gosto destemperado de fumar, mas que esteja desejoso de parar. Fumando, ele alimenta em si todo o mar do vício.

Em relação à sensualidade, um educador que proíbe o educando de ir a lugares perigosos, imorais, mas que permite veja revistas imorais, está cometendo um grande pecado. Não se pode chamar a isto de tolerância no bom e verdadeiro sentido da palavra. Estas são atitudes que aceleram a marcha revolucionária. 

* As famílias de alma são a verdadeira alavanca da História. A teoria do pecado imenso 

Assim como todo apogeu vem do fato de ter-se saído de um estado de hostilidade à prática da virtude, toda crise começa com o fato do abandono de uma posição de amor à cruz, passando depois à contemporização, à tolerância, à admiração e, por fim, à adesão ao erro; parte da plenitude da prática do bem em rumo à decadência, e os bons decaem por isso. Como é que se consegue, poderíamos nos perguntar, conjurar neste sentido?

Para responder a esta questão devemos considerar a doutrina das famílias de almas, que é da maior importância para uma concepção católica da História. A Providência sugere todo um sistema de almas, que se influenciam mutuamente como planetas e satélites, para evitar a deterioração dos bons costumes; elas constituem entre si uma família de almas que, se se mantiverem íntegras e aplicarem o princípio da teoria da intolerância triunfante, não haverá de se desencaminharem. A fidelidade delas ao princípio acima enunciado será tal que detém o avanço da Revolução. Assim sendo, poderíamos dizer que o peso do mundo realmente repousa sobre estas famílias que são a verdadeira alavanca da História.

Como conseqüência dos princípios enunciados chegamos à teoria do pecado imenso. Houve, evidentemente, na raiz de todo esse processo, desta apostasia, um imenso pecado. As famílias de almas deveriam, no diálogo interno das várias fibras de um povo que entram em luta, manter a fidelidade à virtude e o amor à Cruz. Alguém não a manteve. Houve um ente sublime, extraordinário, predestinado, que pecou. E com este pecado todo o plano da Providência caiu por terra. Ela quer, muito misteriosamente, condicionar à generosidade de certos indivíduos o livre curso de certos fatos. É um plano de Deus.

Na Idade Média, que viveu de grandes ordens religiosas formando enormes famílias de almas (beneditinos, reforma de Cluny, franciscanos, dominicanos) - e eu não vejo uma ordem religiosa senão como uma família de almas - houve uma ou algumas famílias de almas que apostataram em determinado momento. Como conseqüência, todos os vírus maus começaram a agir no momento perigoso. E a hecatombe da civilização feudal se lhe seguiu.

Mas, por que logo de início veio esta tremenda explosão, esta carga brutal de revolta? Por que tal força explosiva? Porque quanto maior a altura da qual se cai, tanto maior a queda, e quanto maior a virtude, tanto mais rugem as feras quando soltas.

Ora, o mundo estava num pináculo. Sair desse pináculo era soltar animais os mais ferozes. Daí decorreram tremendas paixões que invadiram o mundo contemporâneo.

O pecado imenso se deu em duas gamas: foi de alguém ou de alguns que se entibiaram; e dos outros que, por decorrência, lhes seguiram os passos. Donde a descompressão pavorosa de todo um continente, o que continua até nossos dias. Tratava-se apenas de escorar o salvável e procurar uma era de prata, um plano B, uma vez que a era de ouro, o plano A, fracassara.

 

 

O sonho milagroso do papa Urbano III, em que São Francisco de Assis sustentava em seus ombros a Igreja, simbolizada na basílica de São João de Latrão que se rachava em duas partes, se aplica a esta teoria do pecado imenso. São Francisco de Assis teria cometido um pecado imenso se não tivesse impedido com seu apostolado a queda de toda a Igreja. Provavelmente, se não tivesse havido São Francisco essa revolução teria estourado muito mais cedo.

Torna-se, então, compreensível que um outro Francisco de Assis, em dado momento, não tenha correspondido, e a História tenha mudado seu curso. Esse pecado imenso pode ter-se dado a sós, numa cela de frade, numa cela de religiosa, no quarto de algum homem predestinado, que recusou talvez um sacrifício pequeno, porque, às vezes, tudo depende de um pequeno sacrifício. É mistério de Deus

* A Revolução e a Contra-Revolução são dois blocos compactos? Concepção verdadeira, mas pavorosamente incompleta 

Há um modo corrente de se conceber historicamente as lutas da Revolução e da Contra-Revolução, que é o que faz ver dois grandes setores divididos por uma cortina ideológica: de um lado os revolucionários, do outro os contra-revolucionários.

Assim, na primeira Revolução havia protestantes e católicos, depois monarquistas e republicanos e, hoje, comunistas e anticomunistas. Cada um desses "exércitos" aparece como uma massa compacta. Os católicos são um corpo homogêneo frente aos protestantes, que também são assim considerados. Depois, os republicanos e monarquistas são dois blocos compactos. O mesmo quanto ao comunismo.

De acordo com essa concepção histórica, a luta, em cada uma dessas ocasiões, foi capitaneada pelos mais ardentes dos dois lados, e, se a monarquia vence, a vitória é dos ultra monarquistas; se os republicanos vencem, é a vitória dos jacobinos; se a Igreja vence, é a vitória dos mais extremados da Contra-Reforma. De acordo ainda com essa teoria, todos os acontecimentos do mundo estariam sempre entregues às alas extremas.

Esta concepção é verdadeira, mas pavorosamente incompleta. Um grande número de erros de estratégia que têm sido cometidos, sobretudo pela Contra-Revolução, foram baseados na ignorância do que tem de incompleto esse panorama.

Quando vemos a luta dos revolucionários e contra-revolucionários percebemos que, de fato, as minorias extremas de um e de outro lado, de si mesmas, representam muito pouco e não são o peso decisivo. O que humanamente decide as lutas, a fortuna, o número, a posição social, o valor intelectual, está sempre colocado numa categoria de pessoas que constitui um imenso meio termo, que poderia ser chamado o centro. 

* A luta consiste em atrair, cada qual para seu lado, a verdadeira alavanca da sociedade que está, habitualmente, no centro 

Estes se acham entre a direita e a esquerda, compreendendo a ala direita da esquerda, e a ala esquerda da direita. Este elemento é verdadeiramente o decisivo. Em face dos extremos radicais revolucionários e contra-revolucionários, a luta consiste exatamente em conquistar esse meio termo. Ele é um verdadeiro campo de batalha, e a luta consiste em atrair, cada qual para seu lado, a verdadeira alavanca da sociedade que está, habitualmente, no centro.

A sociedade de hoje nos dá uma idéia do que isto seja. Os membros dos partidos comunistas, no Ocidente, são uma minoria, e tudo faz crer que no Oriente ela ainda seja menor. Também não é necessário provar que os contra-revolucionários são poucos. O número, a riqueza, a influência, estão num elemento central que cada qual procura atrair para seu polo.

 O mesmo se poderia dizer com relação às lutas que sempre houve entre os católicos. A imensa maioria é central, e os ortodoxos e liberais procuram atraí-la para seu lado.

Analisando deste modo os fatos compreendemos bem que no momento em que os contra-revolucionários conseguissem colocar de seu lado o centro, teriam vencido, dando-se o mesmo em relação aos revolucionários. E desde que a Revolução desabrochou, o centro sempre se revela um tanto revolucionário, e acaba lutando deste lado. Os revolucionários têm triunfado porque têm conseguido um centro que lhes favoreça.

É o caso dos monarquistas constitucionais. Apesar de estarem mais perto da monarquia do que os republicanos, favorecem sempre os republicanos porque a Revolução lhes explora sempre certos pendores psicológicos.

Se os contra-revolucionários, cientes da lei da Revolução e da Contra-Revolução, cônscios de que a Revolução é algo de processivo e gradual, soubessem como combater a Revolução e explorar estes pendores psicológicos, teriam podido ganhar a luta. Mas, como não conheciam suas leis, o centro sempre corroeu esse processo e os contra-revolucionários o deixaram; assim, a Revolução sempre venceu. 

* Os que se empenham na luta da Contra-Revolução devem ter um conhecimento muito especial do caráter processivo da Revolução 

Aqueles que se empenham na luta da Revolução e da Contra-Revolução devem ter um conhecimento muito especial desse caráter processivo da Revolução, e tê-lo bem nítido para poder comunicá-lo aos outros contra-revolucionários. É este o único meio de que dispõem para estancar o caráter processivo da Revolução. Feito isto, então poder-se-á pensar em Contra-Revolução. Neste trabalho temos especial empenho em mostrar com cuidado o caráter processivo da Revolução, dada sua extrema importância.

 Do lado da Contra-Revolução, há também um aspecto que, na ordem natural das coisas, é muito importante. É o choque contra-revolucionário. É o meio de tirar o revolucionário do mecanismo da Revolução, e torná-lo apto a ser contra-revolucionário. Estudaremos também este ponto mais adiante. 

* Primeiro princípio: da dupla gradatividade (na natureza e no homem

Descendo à mais profunda psicologia do homem, notamos que há nas apetências humanas uma espécie de correspondência com a ordem natural criada por Deus. Os predicados de todas as criaturas são susceptíveis de graus: há graus de alvura, há graus de maciez, de escuridão, de rigidez, de sabor. Na natureza tudo tem predicados sujeitos a determinados graus.

Concomitantemente dá-se o mesmo fenômeno em sentido oposto. O modo de apetecer do homem é também gradativo. Podemos, por exemplo, olhar uma luz e depois, gradualmente, ir nos habituando com esta luz. Inicialmente tivemos um choque, e depois nos habituamos. Podemos nos habituar a algo macio. Depois de certo tempo, no entanto, ficaríamos satisfeitos se nos oferecessem algo ainda mais macio. Porque não só o macio tem graus, mas porque vamos progredindo, por graus, na apetência do macio. No mais alto grau do macio, nossa apetência dele também atinge seu grau máximo.

À medida que vamos passando de grau, vamos apetecendo o outro grau. Por esse processo, passamos da ascese de uma cama de tábua para o cúmulo do macio, por vários graus sucessivos, que são duas ordens de graus: o grau do macio que está nas coisas, e um grau segundo nossas apetências que vão cada vez mais desejando o macio.

Trata-se de uma gradatividade dos predicados dos diversos elementos e uma capacidade de caminhar gradualmente para atingir o seu extremo. É o primeiro princípio que poderíamos mencionar, princípio este tão forte que, naturalmente falando, um homem nunca chega a determinados extremos de apetência, sem ter passado pelas escalas intermediárias. Antes de ter apetecido todos os graus intermediários o homem, normalmente, rejeita o extremo se lhe for apresentado

* Segundo princípio: o da totalidade 

Consideremos um segundo princípio, que chamaríamos da totalidade. Precisa ser compreendido de um modo muito "nuancé" (matizado), para que não pareça falso e contra ele não se possa fazer toda espécie de objeções.

Em cada gosto, em cada deleite que tenhamos, em virtude de nossa natural tendência à felicidade, somos levados até o extremo daquele gosto, daquele deleite. Em princípio, e salvo os contra vapores que existam em nosso organismo, em cada deleite a tendência é sempre a de chegar ao seu último requinte. Quando apreciamos algo somos levados a chegar ao seu último paroxismo.

As tendências existentes dentro do homem tendem à totalidade. Há uma espécie de paroxismo, de auge, para o qual tudo caminha. Por esse motivo, para os homens voluptuosos e para as civilizações voluptuosas não há limites. Estas desenvolvem suas tendências em todas as direções. O que acontece em relação aos sentidos, dá-se também em relação às paixões da alma.

Uma pessoa que seja vaidosa do seu físico, enquanto não for proclamada um Adônis, não se contenta. Depois, quererá que se a proclamem muito acima dos Adônis. O mesmo se pode dizer de uma pessoa orgulhosa. Primeiramente ela quererá ser rei constitucional de seu país, depois monarca absoluto, a seguir quererá um altar, e, em breve, deseja ser divinizada. Cada etapa tende ao seu paroxismo.

Poder-se-ia fazer objeções a isto. Os olhos apetecem a luz; quanto mais luz os olhos recebam, mais devem gostar. Existem, entretanto, certas pessoas que têm horror à luz excessiva.

 Isto explica-se naturalmente: há, dentro do homem, para certas paixões, uns contra-vapores, que funcionam à maneira de freios. No caso esses contra-vapores são certas disposições do globo ocular que a luz prejudica. Mas essas são situações excepcionais. A regra normal não é essa, pois os homens estão sempre à procura de mais luz.

Dentro do princípio da totalidade pode-se, isso sim, estabelecer uma ressalva: existem no homem determinados contra-vapores que, de si, estabelecem um limite para o princípio da totalidade. É exemplo o caso da luz acima citado. E o limite é também de bom senso. Sabe-se que o princípio existe, mas que nem todos os homens estão, a cada momento, à procura de todas as volúpias.

Esta totalidade, entretanto, tem a seu favor uma característica. Em determinados pontos o homem deseja, sem nenhum contra-vapor, uma totalidade absoluta, até a última exacerbação. Não se contenta a não ser com esse extremo.

Para a imensa maioria dos homens o instinto sexual está nesse caso. O desenfreamento é tal que se a pessoa, de fato, for abrir largas nesta matéria, haverá de chegar à toda espécie de manias, paroxismos e degradações que, sucessivamente, vão aumentando a intensidade do prazer.

Ao lado do instinto sexual há também, para a quase totalidade dos homens normais, uma tendência ao orgulho que praticamente não conhece limites. É algo até mesmo insondável.

Esses dois instintos transformam-se em paixões que são as duas principais molas da Revolução.

Todos os homens têm graus nestas paixões, mas tendem para uma espécie de exacerbação e plenitude. É um paroxismo de prazeres que é comparável quase a um êxtase. Invade o homem todo, satura-o, ingurgita-o.

Muitas vezes podem estes vícios não estarem claramente manifestados, mas, interiormente, se não forem fortemente combatidos, estarão corroendo e destruindo todas as fibras da alma

* Terceiro princípio: a totalidade está contida no primeiro germe 

A totalidade, ou a apetência da totalidade, está contida toda no germe inicial. Uma pessoa que durante toda a vida tenha combatido o orgulho, e que tenha sido sempre de uma perfeição exímia na virtude da humildade, quando pela primeira vez tiver um lapso nesta matéria, ouvindo, por exemplo, com um pouco mais de complacência um elogio, de fato consente em algo aparentemente insignificante; é apenas uma pequena concessão. Para uma pessoa que subiu tão alto, no entanto, aquela concessão tem um significado especial.

Diz-se que quanto maior a altura tanto maior é a queda. De fato, ao ouvir com algum agrado aquele elogio não está apenas o desejo dele, mas a carga completa da vaidade a mais delirante. Em próprios e exatos termos, a vontade de se fazer adorar está contida nessa concessão. Nesse primeiro germe, estão contidos todos os paroxismos; qualquer concessão traz a apetência de todas as outras concessões.

A teoria do caráter processivo fica desta maneira bem estabelecida. No homem, que possui de maneira rudimentar a carga tremenda que há em todos os homens de sensualidade e orgulho, na primeira concessão feita está já contida uma apetência do paroxismo. Inicia-se assim o processo. Ele não chegará logo ao extremo. O princípio de vida espiritual que diz que o homem nada faz de extremo subitamente é inteiramente verdadeiro.

A primeira concessão, no entanto, alimenta a paixão e faz com que ela progrida 10. Esse 10 já predispõe a alma para a próxima concessão, que se lhe segue. A paixão progride 100; a seguir, outra, e progride 100.000; depois, milhões. E assim como não há unidade suficiente para medir a força desagregadora do átomo, assim também não há unidade que meça a força de explosão intrínseca da alma humana.

Processa-se então na alma uma cadeia de fenômenos semelhantes ao que se vê na Revolução e na Contra-Revolução. No homem, uma carga em estado dormente, que repentinamente entra em erupção, irá progressivamente avolumando-se em virtude da tendência processiva e gradativa. Este é o caminho normal e habitual pelo fato de serem o bem e o mal apetecíveis por graus. Nada impede, porém, que haja um processo com um impulso formidável

* Quarto: o revolucionário de marcha lenta e o de marcha rápida 

O revolucionário de marcha rápida não é um homem que tenha deixado de percorrer as diversas etapas. A diferença é que ele passa rapidamente pelas fases intermediárias, enquanto o outro as percorre lentamente. Neste há recursos psicológicos que funcionam como amortecedor, e, por outro lado, não se entregou tão completamente ao vício. Se examinássemos em câmara lenta o revolucionário de marcha rápida, veríamos que segue a mesma senda de deterioração que o de marcha morosa.

O revolucionário de marcha lenta vive sob uma espécie de compromisso de mentira. E isto o caracteriza. Quereria manter-se fiel a determinadas posições de virtude, mas não quer renunciar inteiramente a uma raiz de vício existente nele. Vive de fechar os olhos, vive de não ver, de não reconhecer. Nada há que o faça mais estremecer de que se lhe desvendar este vício psicológico e mostrar-lhe a realidade. Seria como rasgar-lhe a consciência e pôr à luz o seu pecado.

Um dos filhos do revolucionário Luís Felipe, rei dos franceses, exprimiu isto de maneira tristemente subtil. Representava ele a tendência monárquica moderada: nem Ancien Régime, nem república. E dizia: "enganam-se os que julgam que nós, os Orléans, temos um programa. Não temos programa, somos um estado de espírito, que corresponde ao de certa parte do povo francês, que deseja a religião, mas não muita... e a monarquia, porém não muita também. No dia em que esse estado de espírito desaparecer, o orleanismo terá cessado de existir".

 

 

 

A iniquidade neste caso não mentiu nem aos outros nem a si própria - disse o que era. O demônio da incongruência, da mediocridade, da hesitação, da vileza de espírito, da felonia, está contido nesta afirmação.

O estado de espírito "Luís Felipe", poderíamos chamá-lo assim, é o estado de espírito que, sistematicamente, em todas as fases desse processo, se apodera de toda uma família de almas numerosa e abundante. Contra essas almas só poderemos vencer aplicando a dialética necessária para pôr abaixo esse estado de espírito. Dialética esta que consiste em argumentar segundo os princípios acima explicitados e mostrar à vítima deste estado de espírito que ela está sofrendo todo um processo de revolução lenta, denunciando-lhe que este processo a levará, ou então a seus descendentes, às últimas etapas da Revolução.

É preciso ter, pois, o conhecimento das regras, dos princípios, das normas, para poder provar a alguém que este processo existe, e depois lhe demonstrar que ele está caminhando dentro desse processo. É o único meio capaz de sustá-lo. E sustar tais processos é o único meio de impedir a marcha da Revolução, porque ela é processiva e só pode ser detida se se lhe puser a nu este veneno

* Veracidade e utilidade destas noções 

Poderia alguém dizer que em todas estas noções há um lado claudicante. Todos os desvios e as menores concessões conduzem a abusos vertiginosos? Qualquer pequena concessão que se está fazendo em qualquer campo, em última análise, já é um precipitar-se no abismo de todas as condescendências? É verdadeiro que se tomarmos o hábito de ceder a toda espécie de pequenos abusos, nos lançamos num precipício?

Devemos distinguir em nós, entretanto, as concessões que praticamos nos pontos onde nossa tendência para a totalidade tem contra-vapores. Onde há contra-vapores não há risco grave nem próximo de se chegar aos maiores absurdos. Há outros pontos, porém, onde os chamados contra-vapores internos não existem, e onde qualquer concessão é um passo inicial para um verdadeiro abismo. Portanto, é preciso deixar claro do que falamos quando nos referimos às pequenas concessões.

A tendência à totalidade, ao paroxismo, a esta espécie de êxtase suíno, contém dentro de si já os germes do monstruoso. No primeiro momento a pessoa quer tudo que esteja de acordo com a ordem da natureza. Quando a ordem da natureza a enfastiou, a apetência dela continua muito forte. Então, recorre às formas monstruosas para conseguir seu deleite.

Alguém, por outro lado, poderá nos dizer que todas essas noções não são novas. Isto não nos deve preocupar. Preocupar-nos-ia perguntar se elas são úteis. Mas, estejamos certos, tomar essas noções, reduzi-las a tabletes, a princípios, ou a moedas bem cunhadas, para depois utilizá-las no combate à Revolução, é tarefa da maior utilidade para a causa contra-revolucionária.

Continua


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