Plinio Corrêa de Oliveira
Considerações em torno de "Revolução e Contra-Revolução" - I
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A D V E R T Ê N C I
A O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de
conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da
TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor. Se o
Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre
nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial
disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério
tradicional da
Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como
homenagem a tão belo e constante estado de
espírito: “Católico
apostólico romano, o autor deste texto
se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja.
Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja
conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”. As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui
empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em
seu livro "Revolução
e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº
100 de
"Catolicismo", em abril de 1959. |
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Apresentamos as três luminosas conferências feitas pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em torno do problema Revolução e Contra-Revolução, e publicadas na antiga Circular aos Propagandistas de "Catolicismo", em 1964.
A decadência da Idade Média ("Revolução e Contra-Revolução", cap. III, 5, A) operou-se por meio de uma crise de mentalidade ocasionada pela sensualidade. É todo um clima moral provocado por este mal. Os efeitos da sensualidade têm sua raiz já no século XIV quando começa a se observar na Europa cristã uma profunda transformação de mentalidade que, ao longo do século XV, cresce cada vez mais no Ocidente. É importante observar que a palavra mentalidade foi posta muito de propósito. Não se trata de doutrina, porque doutrina e mentalidade se diferem. Referimo-nos mais propriamente a um estado de espírito, a uma mentalidade, e não à doutrina. Essa mentalidade nasce de um modo confuso, mas à medida que cresce vai se tornando mais nítida. São transformações de mentalidade que passam por um processo de nitidez. É essa uma das regras da processividade. Os elementos dessa mentalidade são, primeiramente, um apetite de prazeres terrenos, que tende a se transformar em ânsia. É um apetite consentido que ao se tornar ânsia tem manifestações mais nítidas do que as do simples apetite. Em segundo lugar vem a necessidade das diversões que tendem a se tornar mais complicadas, mais suntuosas, mais freqüentes, com reflexos nos trajes, nas maneiras, na linguagem, na literatura, na arte e em uma vida cheia de deleites e fantasias dos sentidos, provocando a sensualidade e a moleza, o perecimento da austeridade e da seriedade, a mania de tornar tudo risonho, gracioso e festivo. Os corações se desprendem gradualmente do amor-sacrifício; é a cavalaria que se torna amorosa, a literatura que isto reflete e, como conseqüência, o excesso de luxo e a avidez de lucro. Tudo isto é característico não de uma doutrina, mas de uma mentalidade. A doutrina se lhe segue. * Ao lado do orgulho entra uma nova doutrina: o Absolutismo Depois de empregar a palavra mentalidade, falamos acima em clima moral. Mentalidade e clima moral são conceitos muito afins, que se completam. Então, não mais apenas a sensualidade impera, mas também a vaidade, o orgulho, que penetram mais diretamente no campo dos princípios e da doutrina. São disputas aparatosas e vazias, exibições fátuas de erudição e velhas tendências filosóficas que renascem. Isto que se passa no campo das doutrinas de caráter filosófico e religioso penetra também no campo político através de uma nova doutrina: o absolutismo. Não há mais só a vaidade dos legistas em conhecerem o Direito Romano, em estar a par da cultura de Roma e querer imitá-la, agora há também o orgulho dos reis, que queriam dominar pelo absolutismo. * Histórico do desencadeamento da Revolução tendenciosa Qual foi o primórdio da Revolução? Qual o ponto de transição entre a era em que não havia Revolução para a era revolucionária? Debaixo de certo ângulo, a história da Europa tem dois períodos. Inicialmente, uma mescla de povos latinos e germânicos, batizados e cristianizados, viveu em condições extremamente difíceis, com sua sobrevivência muito duvidosa, ameaçada por inimigos de toda espécie. Num segundo período a Europa se firma, derrota seus adversários, e começa a expandir-se, chegando ao apogeu no século XIX, com o domínio de quase todo o mundo através do seu colonialismo. Reportemo-nos à Europa de Carlos Magno ou, logo após, a do século IX. Os árabes dominando a Espanha constituem um perigo permanente junto aos Pirineus; os sarracenos efetuando invasões no sul da França e na Itália, submetem todo o litoral mediterrâneo do império de Carlos Magno a inúmeras provações; na Alemanha, os germanos; e, pelo mar, os normandos, que atravessaram a França fluvialmente, e, caminhando em direção ao Mediterrâneo, chegaram até a Sicília e Constantinopla, onde queimaram parte da cidade. Nos famosos leões de São Marcos, que eram de Bizâncio, e hoje estão em Veneza, há inscrições em seus focinhos; estas permaneceram indecifráveis até se conhecerem os caracteres normandos. Estes mesmos normandos, chegando a Constantinopla, marcaram injúrias nos dentes dos leões. Tem-se, por estes fatos, que bem mostram a penetração normanda, uma idéia do seu enorme perigo. Carlos Magno, que nos parece haver reinado na paz do seu poder, pelo contrário, teve uma vida repleta de aventuras. Esse destino cheio de provações para a Europa permaneceu até o século XIII, quando, podemos dizer, ela tornou-se vitoriosa. Mas em que sentido? Os árabes não foram expulsos da Espanha, mas sua influência nitidamente decadente é sinal evidente de que não venceriam. Em toda a costa mediterrânea estão também os árabes tão decadentes que, no século XV, os turcos derrotá-los-iam rapidamente. De outro lado, os germanos estão completamente convertidos; os húngaros, que constituíram outrora grande perigo, abraçaram também a religião católica; os prussianos, lituanos, que foram também perigosos, e, contra os quais haviam combatido os cavaleiros da Ordem Teutônica, estão em vias de conversão; os normandos, mesclando-se, confundiram-se com outros povos, entraram na Inglaterra, e já não oferecem perigo. * A atmosfera triunfal da Idade Média levou ao afrouxamento na prática da virtude A sensação da Europa é de que domina completamente a situação. Começa, então, a surgir um estado moral e social vitorioso, a chamada atmosfera imperial ou triunfal da Idade Média; Nosso Senhor Jesus Cristo passa a ser apresentado nas catedrais não mais apenas como um mártir crucificado e sofredor, mas como um Rei cheio de glória, e na liturgia a afirmação do Seu triunfo por todos os séculos, no mundo, passa a ter enorme importância. Mas, acompanhando esta idéia, vinha, muito justificadamente, a do triunfo dos cristãos, e por detrás desta a concepção de que para todo o sempre o poder de Jesus Cristo estava firmado na Terra; o mais glorioso e mais civilizado dos continentes era cristão; tinha-se aberto um reino de paz na Terra, e as promessas do Evangelho iam ser realizadas com o triunfo da Cristandade. Ora, para a transição que se irá operar é preciso notar que o homem medieval sentia bem o triunfo em que esta pujança iria dar. Não nos esqueçamos que depois veio a queda de Granada, a descoberta da América e seu povoamento; veio a formação do Império português colonial e o domínio do Oriente. Estava-se, então, na aurora de uma era de prodigiosa expansão europeia. Eles sentiam isso, e a atmosfera era de grande esperança, de grande expectativa, de grande alegria. Acontece, porém, que um movimento, ainda mal estudado, fizera aparecer, no começo da Idade Média, muitos santos. Como, após a podridão romana e a efervescência bárbara, no tempo de Clovis, apareceu uma santa Clotilde, um São Rémy, um São Gastão, um São Gregório de Tours e tantos outros ao mesmo tempo, e que foram ponto de partida para a conversão da Idade Média? Deve ter havido na base deste movimento, uma família de almas, uma espécie de ciclo de santidade, que fundou a Idade Média. Esse ciclo desenvolveu-se sob o signo da luta: era a Igreja perseguida e ameaçada; cada homem era obrigado a lutar contra o inimigo externo e contra o inimigo interno, a heresia; havia lutas de uns contra os outros, pelo hábito das guerras bárbaras feudais que estavam ainda muito próximas. Enfim, todos viviam arduamente. Ao mesmo tempo que se delineia esse triunfo europeu, os costumes vão se mitigando, as guerras privadas se tornam menos numerosas, começa uma era de doçura e suavidade. É nesse tempo, então, que os católicos começam a afrouxar seu modo de viver. E é propriamente nessa descompressão, que se delineia um fenômeno aparentemente legítimo, lícito. O homem medieval passa a organizar sua vida na qual o prazer tem um certo papel. Começa-se, na vida social, a fazer festas mais numerosas, mais brilhantes; as canções populares tornam-se mais alegres e joviais, não mais apenas guerreiras; na arte a produção é mais risonha. E essa suavização dos costumes segue-se até os séculos XIII e XIV. Depois surgem fenômenos mais complexos e começa a decadência. Poderemos fazer o histórico deste declínio, se nos reportarmos a um esquema que parte de três princípios, que adiante explicitaremos melhor. * Pode-se aplicar nos problemas de vida espiritual dos povos os mesmos princípios à vida espiritual dos indivíduos Nada de extremo, quer no sentido do bem, quer no sentido do mal, se faz repentinamente. Ora, depois desse passo que descrevemos, a Europa se despenca numa crise gravíssima, que não pode ter aparecido de repente. Ela teve seus primórdios muito discretos, antes de se tornar tão grave. Este é um princípio de vida espiritual do qual não podemos abstrair. Podemos aplicar nos problemas de vida espiritual dos povos os mesmos princípios que se aplicam à vida espiritual dos indivíduos. Poderíamos falar para um povo, coletivamente, em paixões, em livre-arbítrio, em ascese, nas três vias da vida espiritual, purgativa, iluminativa, e até mesmo unitiva. Temos, portanto, o direito de fazer uma análise histórica, baseada nos princípios de vida espiritual aplicados aos povos. Há um ótimo método para sabermos se um conjunto de fatos históricos está decifrado. Trata-se de aplicar uma cifra ao que está enigmático. Se a cifra der sentido a tudo, quererá dizer que os fatos estão decifrados. Ora, com os princípios da vida espiritual é possível construir uma hipótese lógica a respeito da queda da Idade Média; aplicá-los-emos e veremos explicarem-se os fatos. Deixemos a Idade Média um pouco à parte e consideremos os problemas de vida espiritual num homem. Sabemos que cada condição de vida tem algo que, pelo menos acidentalmente, favorece o bem e dá também ocasião ao mal. Reciprocamente, as melhores condições de vida têm algo que também dão ocasião ao mal. Examinemos um apache [termo empregado aqui na seguinte acepção: indivíduo da ralé, galã, perigoso e cruel (Paris), n.d.c.]: vive em péssimas condições e é um homem que faz o mal, por definição. Mas a sua vida lhe dá oportunidade de praticar algumas ações, como a coragem, que, embora não sendo virtude, tem algum aspecto de virtude. Pelo contrário, na mais santa das vidas, na de um religioso em estado de santidade, há certas ocasiões propícias ao mal. É evidente a solidariedade que existe entre todas as virtudes e entre todos os vícios. Quando o homem progride numa virtude, progride em todas; quando progride num vício, progride em todos. Imaginemos a história da regeneração de um bandido, de um gangster americano que seja o pior que se possa conceber. Ele tem certo amor pelo risco, pela luta e pelo futuro incerto, tem certa "varonilidade", sem ser naturalmente, a verdadeira, e pode até ter certa piedade. É o caso de François Villon, que escreveu uma Balada a Nossa Senhora, e também é o caso de Bocage. Não se pode dizer que nestas atitudes haja verdadeira piedade, mas há algo disto, e até de elegância moral. Suponhamos que esse gangster de que tratávamos passe por um fenômeno de maturação. Começa a ficar ajuizado e a passar da fase má de ladrão para a fase boa; e pensa então que muito mais razoável é a segurança, o verdadeiro bem da vida, depois a fartura e por fim o repouso. Deixa sua vida e vai ser agente de correio numa cidade interiorana muito pacata. Torna-se homem honesto, traz suas contas com muito critério, vive como um burguês. Regenerou-se; não achou bom cálculo ser gatuno. Com esta conversão a meias ele perde seus defeitos de ladrão, mas perde também algumas qualidades. Ele amolece. De generoso que era, torna-se avarento e fica deselegante. Pode vir a ser piedoso e, é incrível, pode até ficar em estado de graça. Mas dele nunca sairá uma balada a Nossa Senhora. A piedade dele pode ter crescido em raízes, mas um certo jorro, um certo fogo ela não mais terá. Esta é, entre muitas outras, uma das evoluções possíveis. Se fosse verdadeira conversão essa transformação seria bem diferente. O ladrão regenerado não passaria nunca de um egoísmo para outro, porque, absolutamente, isto não é regeneração autêntica. Ao contrário, ele deveria passar do egoísmo para a "procura do Absoluto", para uma atitude de humildade diante de Deus e de uma verdadeira abnegação. Então, seria um homem que somaria ao seu progresso moral as virtudes de um novo estado, as qualidades de outrora, que passariam, então, a serem autênticas qualidades. Seria o seu caminho para a santificação. * Deu-se na Idade Média um fenômeno que poderá repetir-se no Reino de Maria, no momento do triunfo sobre os inimigos da Igreja: o perigo vem com a vitória Deu-se na Idade Média um fenômeno semelhante e muito importante para nossa meditação, porque poderá dar-se no Reinado de Maria, no momento do triunfo sobre os inimigos da Igreja. Na Idade Média, para os católicos de fé muito intensa e de grande espírito de sacrifício, faltou algo muito profundo. Aceitavam a cruz e a carregavam garbosamente, mas não estavam compenetrados, de um modo consciente e explícito, de que a cruz não era na vida apenas uma contingência irremediável devido ás árduas circunstâncias que não conseguiam remover; de que a vida trabalhosa e difícil da Cristandade era inevitável não porque há mouros, pagãos e inimigos de outra natureza, mas porque a vida do católico é penosa em sua essência mesma, após o pecado original, e corre sobre um leito falso quando não é árdua. Cessadas as provações, deveriam ter entrado na vida nova com um verdadeiro pânico de perderem o amor a Cruz, um verdadeiro pânico de perderem o senso do sacrifício. Tratava-se de se organizarem dentro da vitória com maior temor ainda do que quando na luta, percebendo que teriam dificuldades muito maiores para perseverar no período da descompressão do que no da provação. Deveria ter sido esta a matéria para que os púlpitos ressoassem, os confessionários apertassem as cravelhas, para que todas as pessoas responsáveis pela vida espiritual da sociedade cristã se manifestassem insistentes: o perigo vem com a vitória; é exatamente esta a hora do desfibramento. Ganhar a vitória depois de ter vencido a guerra, em circunstâncias destas, é o grande problema. Não somos medievalistas profundos e não conhecemos inteiramente as coisas da Idade Média. Mas em tudo que folheamos a respeito dos séculos XIII e XIV, nada encontramos que indicasse o receio do abuso da vitória; não encontramos a idéia explícita de que nesta hora é preciso tomar redobrado cuidado. A vida do católico é uma luta perpétua e se não houver luta ele regride. Não havendo luta é sinal de que a derrota começou. * Em menos de dois séculos, todo o corpo social ficou deteriorado Dessa primeira fase em que a Idade Média se revela ainda ponderada, equilibrada, passamos para uma época em que os prazeres se vão acentuando. São ainda honestos, legítimos e até equilibrados. Há, porém, uma sede de prazer que se vai tornando progressivamente acentuada. Numa terceira etapa notamos todo o corpo social da Idade Média já deteriorado. E uma espécie de febricitação, de agitação, de delírio, já define bem o século XV, fazendo com que muitas pessoas do tempo pensassem que o mundo iria acabar. Então, um São Vicente Ferrer percorria a Europa, pregando que o mundo ia acabar dizendo que ele era o anjo previsto no Apocalipse, cuja finalidade era a de percorrer a terra anunciando a catástrofe. Realmente, se não era o fim do mundo, talvez fosse o início do fim. Maquiavel dizia que estávamos na vigésima terceira hora e que o mundo inteiro estava na iminência de ser saqueado; os desenhos macabros de Dürer ilustram bem estas apreensões; enfim, há toda uma atmosfera que se torna ainda mais densa e que prenuncia algo de horrível que iria acontecer. * Uma atitude despreocupada da Cristandade foi a causa da decadência Nota-se, então, a passagem sucessiva de um apogeu para um estado de decadência. O ponto de partida foi seguramente a falta de cuidado, a falta de prevenção. Uma atitude despreocupada da Cristandade Medieval foi a causa da decadência. Despreocupação esta que se caracterizava pela excessiva confiança em si mesmo, julgando haver na própria sociedade medieval raízes e lastros de virtudes suficientes para se eliminar qualquer preocupação. Nem se pode afirmar que havia má intenção nesta atitude; tratava-se apenas de um relaxamento e não de deliberação de praticar o mal. Nessa fase de afrouxamento do modo de viver a Idade Média até nos impressiona pelo que tem de temperante, de digna, de nobre, mesmo nos seus prazeres. Note-se que isto não é uma afirmação, não é uma tese que venha acompanhada de documento, mas uma hipótese baseada em alguns conhecimentos. Mas, quando formulamos esta hipótese os fatos se alinham de tal maneira que tudo se torna claro. Assim sendo, os acontecimentos ficam arquitetonicamente explicados. É necessário considerar que isto não se refere a desvios existentes, mais ou menos excepcionais, embora até profundos. Encontramos na Idade Média fenômenos marginais, como as heresias, mas que não são a Idade Média; casos de satanismo, mas que não são a Idade Média; um imperador que é até arabizante e muçulmanizante, mas isto também não é a Idade Média. É a doença inteira do corpo social que estou procurando descrever, e não apenas certas chagas. Isto interessa muito aos contra-revolucionários, sobretudo tendo-se em vista o Reinado do Imaculado Coração de Maria conforme Sua promessa em Fátima: "Por fim o Meu Imaculado Coração Triunfará". Se nos for dado sobreviver para essa nova Idade Média, só seremos dignos de nela agir se ensinarmos aos que nos sucederem como começou a decadência, e que se não houver um cuidado extraordinário para se conservar um verdadeiro amor à Cruz e um verdadeiro senso de luta e de sofrimento, dentro das novas condições, novamente se romperá o equilíbrio da sociedade católica. * Não se deve temer tanto as lutas de conversão (primeira fase) quanto as batalhas de segunda fase Estes princípios são tão verdadeiros que se aplicam até aos fenômenos de vida espiritual dos contra-revolucionários de hoje. Em virtude de quase todos os ambientes atualmente estarem, uns mais outros menos, impregnados do espírito revolucionário, quando uma alma ao converter-se torna-se contra-revolucionária, entra em uma fase de lutas e enormes provações. São batalhas, lutas, brigas com companheiros de infância e antigos amigos. Há depois, uma segunda fase, de estabilização em que tudo se torna menos árduo e mais fácil. Esta é a fase perigosa. Não se deve temer tanto as lutas de conversão como as batalhas de segunda fase, porque é aí que vem a tentação de se viver sem preocupações dentro da virtude, o que significa abandonar a virtude e viver fora dela. Está na substância da santificação o desejo de luta e de cruz. A primeira das várias etapas da decadência se caracteriza pelo agradável-bom que se acentua demais, mas ainda honesto, nobre e equilibrado. É exemplo disto o traje feminino habitual na Idade Média. Era lindíssimo, com os belíssimos chapéus de cone com véus pendentes, ou em forma de gomos, com uma coroa. É algo de muito nobre e bonito, e também muito calmo e repousante. Toda a arte medieval dá uma sensação muito agradável. O agradável encontra sua melhor expressão no gótico "flamboyant". Mas o "Flamboyant" vai invadindo todos os campos, e em vez de ser apenas um agradável-bonito para a sala de visitas, passa a ser a nota dominante em quase todos os ambientes. O gótico nesta fase torna-se catito. Não é mais a época das grandes catedrais, mas das capelas feitas quase só de vitrais. A pedra é já bem menos usada. Tudo piora sensivelmente a partir do momento em que o agradável se torna ilícito e, portanto, imoral. O mesmo se dá na literatura de cavalaria e em inúmeros outros setores da vida medieval. *As profundidades desta crise nas diversas camadas sociais Para se analisar como a crise se generalizou no corpo da sociedade medieval é necessário ver as profundidades dessa crise. Por profundidade entendemos as várias camadas dessa sociedade; a mais baixa, a do povo, seria a última profundidade. A mais elevada seriam as cortes. Antes de prosseguirmos seria conveniente lembrar um princípio. Ao analisarmos alguém de personalidade encontramos, sobretudo se se trata de um liberal, várias personalidades conjuntas que entram numa espécie de diálogo. Há num mesmo homem o monarquista, o republicano, o católico, o protestante. Quem tem um antepassado protestante herda, queira ou não, um protestante dentro de si. Quando uma pessoa tem uma hereditariedade profundamente católica e outra profundamente protestante, este ramo tem como que um católico dormindo dentro de si, e o católico como que um protestante. É o princípio das várias personalidades opostas, estabelecendo um diálogo interno, e que se dá na vida espiritual de um homem. As várias correntes de opinião transmitem para a vida espiritual de um país este princípio. O Brasil, habitado por republicanos, monarquistas, católicos e protestantes, constitui um imenso cérebro coletivo parecido com os cérebros individuais de muitos. Na Idade Média o princípio do diálogo interior entre várias personalidades dava-se conforme as classes sociais. Esse processo de deterioração começou com os mais ricos e poderosos. O fenômeno é mais evidente nas cortes reais, e mesmo em certas cortes principescas tão altas quanto as cortes de reis. Começa-se então uma vida de extravagância. A metástase, à maneira de câncer, foi se dando, de "proche en proche" (paulatinamente, n.d.c.), para as demais classes sociais. A corte corrompe a média nobreza, que por sua vez corrompe a pequena. A alta burguesia, sempre a primeira a corromper-se com os reis, deteriora a média burguesia e a pequena. Este processo é lento, mas terrivelmente eficaz. Houve tempo, na Idade Média, em que se nota muito claramente este fenômeno de corrupção nos altíssimos letrados, nos altos aristocratas, nos altíssimos argentários, e mesmo no mais alto clero. * Os centros naturais de resistência Há, no entanto, correntes de opinião e umas tantas classes sociais que constituem centros naturais de resistência. É o que se passou com o movimento humanista e renascentista, que tanto floresceu entre os altos intelectuais, mas que encontrou focos de resistência nas universidades, a tal ponto que estas durante muito tempo ficaram à margem do movimento novo, apegadas às fórmulas antigas. Entre as camadas inferiores do povo, a corrupção é muito mais lenta, havendo muita resistência. No tempo de Luís XIV, o povo era ainda tão ingênuo que ia ver o Rei passear com as “três rainhas”: Maria Tereza de Áustria, a Duquesa de La Vallière e a Marquesa de Montespan. Mal se davam conta da imoralidade pavorosa do fato. Olhavam, ingenuamente, um rei tão poderoso, com três rainhas! É o caso também, no tempo de Luís XIV, das festas e diversões populares, em que tudo era feito numa atmosfera de Idade Média. A perversão demorou muito para penetrar nas camadas inferiores da sociedade. Mas esta resistência sofre um processo de degradação que se delineia mais ou menos da seguinte maneira: inicialmente há uma indignação e resistência profunda à deterioração; a seguir uma contemporização, apesar da não adesão e até da resistência; por fim tolerância indiferente seguida de admiração, inveja e adesão ao processo que já estava vitorioso há muito tempo, nas camadas superiores da sociedade. |