Plinio Corrêa de Oliveira

 

HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO


1936


Colégio Universitário

anexo à Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo

 

 

 

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Parte XII

Os povos bárbaros

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é cópia ipsis litteris das apostilas para o curso de "História da Civilização". Portanto, os erros de ortografia, falta de palavras, eventuais acréscimos ou omissões são da responsabilidade de quem taquigrafou e datilografou ditas apostilas. Texto não revisto pelo Prof. Plinio.

Os bárbaros se infiltram no Império

Os gregos e romanos davam o nome de bárbaros a todos os estrangeiros. Na História, porém, ficou este nome especialmente para designar as tribos selvagens ou semi-selvagens que, fora das fronteiras romanas, viviam uma vida extremamente rude e primitiva, e que fizeram diversas tentativas para vencer o 1º Império ou a república, apoderando-se de seus tesouros e conquistando a zona de clima ameno em que Roma estava estabelecida.

A primeira grande invasão dos bárbaros se deu ao tempo de Mário. Os invasores [cimbros], depois de terem invadido a Itália, só não venceram Roma graças aos prodígios de valor militar dos romanos, que fizeram recuar os bárbaros até além do Reno e Danúbio, e estender até esses rios os limites do Império. Mas, mesmo derrotados, os bárbaros constituíam um permanente perigo. Os romanos nunca conseguiram estabelecer duravelmente seu poderio além das margens desses rios, e frequentemente eram rechaçados, sendo invadidas pelos bárbaros as margens renanas ou danubianas pertencentes aos romanos.

Roma, porém, absoluta na fruição de seu luxo e de seus prazeres, não percebia o perigo. Acumulou erros sobre erros. Ela foi, muito mais do que uma vítima dos bárbaros, uma vítima de sua própria incúria. O primeiro erro que cometeu consistiu em colocar o trono imperial à disposição das legiões, que o conquistavam à força ou o vendiam em leilão. De uma só feita, chegou a haver dezesseis candidatos à púrpura imperial. Para vencerem os seus concorrentes, os candidatos ao trono imperial estabeleciam alianças com os povos bárbaros, fazendo-os combater lado a lado dos legionários contra os demais candidatos. Assim os bárbaros foram aprendendo a tática de guerra dos romanos, e se infiltrando no seu exército.

Por outro lado, os romanos e italianos, descendentes dos heroicos soldados que haviam construído a grandeza de Roma, já não queriam mais combater. Por isto foi concedida a isenção de recrutamento à Itália, e os exércitos romanos começaram a se constituir, não mais de cidadãos altivos, patrióticos e livres, mas de escravos, gladiadores e bárbaros. É fácil compreender que esses elementos não tinham interesse em se sacrificar até a última gota de sangue, para defender a riqueza romana. Por cúmulo de erro, os romanos chegaram a confiar até os próprios cargos de general aos bárbaros. Finalmente, até imperadores havia, em cujas veias corria o sangue bárbaro. Muito antes de os bárbaros terem invadido o Império com as armas nas mãos, eles já tinham realizado uma imensa infiltração, desde o trono imperial até os ínfimos graus da hierarquia militar. De romano o exército só tinha o nome.

As invasões bárbaras

Em meados do século IV, quando houve outra invasão de povos bárbaros, o imperador Valentiniano cometeu o erro supremo, abrindo-lhes as portas do Império.

Na Ásia tinha havido uma grande série de guerras. Os chineses se chocaram com os topas, e os fizeram recuar. O recuo dos topas atirou-os sobre os tártaros orientais. Acuados pelos topas, os tártaros orientais vieram a se chocar com os hunos, que invadiram a Europa. Os hunos, por sua vez, atacaram pela retaguarda os povos bárbaros. Estes então, chefiados pelo bispo Úlfilas, pediram ao imperador autorização para penetrar no território do Império. Dada a autorização aos godos, eles atravessaram o Danúbio em número superior a um milhão, e vieram a se estabelecer na Trácia. Aí começaram a cultivar terras etc. Não tardou que os godos entrassem em choque com os romanos. Terríveis represálias de parte a parte pioraram a situação. Os inúmeros godos semi-latinizados, do exército romano, simpatizaram com os godos recém-vindos. O perigo era imenso.

Finalmente travou-se uma batalha em Adrianópolis, em 376, em que o exército romano sofreu uma tremenda derrota. Dois generais, Estilicão e Rufino, ambos bárbaros, ainda tinham elementos para resistir. Rufino era general e tutor de Arcádio, Imperador do Oriente. Estilicão era tutor e general de Honório, imperador do Ocidente. Ambos os imperadores, muito jovens, eram meros "fantoches" nas mãos dos respectivos generais. Rufino e Estilicão eram rivais. Para se vingar de Estilicão, Rufino cruzou os braços e permitiu que os bárbaros invadissem a Itália e atacassem Roma. Em 410, ela caiu pela primeira vez em poder dos bárbaros. O mundo inteiro teve um grito de horror diante deste espetáculo.

Quando os hunos caminharam contra Roma, Teodósio II, imperador do Oriente, celebrou com eles um tratado e se manteve inerte. Na tremenda batalha de Châlons, em que os romanos venceram Átila, os vencedores tiveram medo dos vencidos, e por isto não lhes tolheram o caminho de Roma, onde finalmente Átila chegou. Embora tolhido no seu caminho pelo Papa, Átila era o vencedor. Quando ele morreu, o mundo romano estava destroçado.

Um importantíssimo fator da vitória alcançada pelos bárbaros sobre Roma foi a crueldade para com as províncias conquistadas. Roma taxava o mundo inteiro com impostos, para alimentar seu luxo. Cobrava impostos por cabeça. Os pais não podiam, muitas vezes, pagar a quantia exigida, por isto vendiam seus filhos como escravos e entregavam as filhas aos lupanares. Um historiador disse que, quando chegava o momento da cobrança dos impostos, o mundo romano inteiro se enchia de lágrimas e de prantos. Um dia apareceu um cobrador de impostos honesto. Era o pai do imperador Vespasiano. As cidades da Ásia lhe ergueram, por isto, um monumento com a inscrição "ao publicano honrado", a tal ponto os publicanos eram ladrões. Nem os deuses escapavam. Muitas vezes, a título de impostos, cobravam-se os próprios deuses, que eram carregados para Roma, e os templos ficavam vazios. Compreende-se, pois, o fraco empenho dos habitantes dessas províncias em defender Roma contra as invasões bárbaras.

Átila morreu em 453. Enquanto isto, os bárbaros assolavam as províncias do Império e se apoderavam delas. Os alanos, vândalos e suevos tomaram a Espanha, onde lutavam uns contra os outros. A Lusitânia foi conquistada pelos alanos, e depois arrebatada a estes pelos suevos. Os vândalos invadiram depois o norte da África, então florescente, onde praticaram crueldades até hoje famosas. Mais tarde entraram na Espanha os visigodos. Os bretões estavam em guerra com os anglo-saxões. Os hérulos criaram uma monarquia na Itália. Rômulo Augusto teve uma pensão concedida por Odoacro, rei dos hérulos, e morreu em uma prisão. Os francos, os gauleses, os borguinhões, dividiram a França. Por toda parte, cenas de sangue e de crueldade alucinantes ensanguentavam a Europa. Desse dilúvio ia sair o mundo moderno.

Costumes dos bárbaros

Quais eram os costumes desses bárbaros? Em geral altos, musculosos, de olhos azuis injetados de sangue, longos cabelos e barba que chegava ao peito, saltando como cobras e pintando-se como animais e feras, davam uma impressão tremenda. Em cima dos capacetes, colocavam ainda cabeças de animais selvagens. Em geral, só se "enfeitavam" para aterrorizar o inimigo. Os arios combatiam com os corpos pintados de preto e vermelho. Os getas e sármatas atiravam flechas embebidas em veneno de cobra. Os catas usavam longas cabeleiras, envolvendo completamente os rostos. E só descobriam o rosto depois de ter morto um inimigo, pois só então se sentiam dignos de mostrar a cara à luz do sol. Os que eram tímidos passavam a vida inteira com a cara coberta pelo cabelo. Muitos bebiam água em crânios humanos, e colecionavam os crânios dos adversários como os caçadores de hoje colecionam as cabeças de veado ou peles de tigres. Os moços eram instruídos no roubo. No momento do combate, davam urros tremendos e clamores infernais, atirando-se então sobre os inimigos.

Desprezavam a instrução. Os reis godos, que eram os mais cultos entre os reis selvagens, nem sabiam ler.

Os hunos, ao passarem pela Gália, incendiaram setenta cidades, degolando os respectivos habitantes. Na batalha de Châlons o sangue corria com tanta profusão, que os feridos saciavam a sede nos riachos ensanguentados. Os hunos, embora cavalheirescos, eram mais cruéis do que os demais bárbaros. Quando morreu Átila, em sinal de pesar os guerreiros hunos apunhalaram as próprias faces, em honra ao defunto.

A religião dos bárbaros

A religião dos bárbaros era pura e simplesmente uma série de superstições. Adoravam florestas, pássaros, águas, pedras sagradas, árvores sagradas, fontes sagradas etc. Prestavam juramento sobre a cabeça de algum boi ou javali, em lugar de o fazerem como nós, sobre um símbolo elevado como a Cruz.

As punições para quem tivesse cometido profanações contra os lugares sagrados eram tremendas. Quem roubasse um objeto sagrado era conduzido ao mar e abandonado lá na praia, ao fluxo e refluxo. Era castrado, cortavam-lhe as orelhas, era então imolado aos deuses. Os francos tiravam augúrios do espirro, do vôo dos pássaros, do modo de andar dos cavalos, da baba das vacas. Ou então um sacerdote cortava um galho de árvore em pequenos pedaços, colocava-os sobre uma toalha e atirava-os 3 vezes ao ar, vendo depois os desenhos que se tinham formado, e interpretando segundo eles os acontecimentos.

Havia mulheres — alrumen — que habitavam grutas afastadas e moradias subterrâneas, onde faziam predições. Também se dava o nome de alrumen a pequenos ídolos de madeira, feitos às vezes com raízes de certas plantas, e que representavam a parte inferior do corpo humano. Eram guardados em caixetas e tratados como crianças. Deitando-os sobre acolchoados macios, eram banhados, alimentados e vestidos com o máximo desvelo. Diz-se que às vezes falavam.

Havia também mágicos que curavam moléstias com palavras misteriosas, ou com talismãs suspensos ao pescoço. Havia bruxas que se encontravam no alto das montanhas, e que realizavam banquetes com carne humana, em torno de fogueiras acesas. Depois faziam bebidas venenosas, para esterilizar as mulheres, perturbar a inteligência ou debilitar o corpo. Nas festas do deus da guerra, eram regados os altares com sangue animal ou humano. Um texto antigo nos conta de uma princesa, nora do rei franco Sigmund. O filho do rei Siegfried, marido da princesa, foi queimado depois de morto. A princesa resolveu também morrer. e por isto matou-se e fez-se queimar juntamente com dois escravos e dois falcões.

As leis bárbaras

Os povos bárbaros — os francos, por exemplo — já conheciam certos processos selvagens usados na Idade Média, como as torturas para apurar a culpabilidade, o duelo judiciário etc. Às vezes era o acusado atirado a um recipiente cheio de água, com a mão direita atada ao pé esquerdo; quando sobrenadava, era inocente. Outras vezes era forçado a procurar argolas de ferro entre brasas ardentes. Ou então devia carregar um ferro em brasa, por certo tempo, ou andar sobre ferro em brasa.

Quando alguém era morto, seu herdeiro tinha a obrigação de por sua vez vingá-lo. E quem recusasse isto tinha que romper eternamente com todos os seus parentes. Quando aceitava o encargo de fazer a vingança, havia uma verdadeira declaração de guerra à família do outro, do agressor. Quando a vítima era finalmente apanhada, era morta com crueldade e infamada, pendurando-se sua cabeça no alto de estacas, mutilando-se o seu cadáver ou deixando-o aos corvos e às feras.

O direito penal era tremendo. Um assassino devia, segundo as leis dos bretões e escoceses, pagar 150 vacas. Um pé valia 1 marco; uma mão, 1 marco; 1 olho, meio marco; para ferimento no rosto, uma imagem de ouro. Mas um rei da Escócia valia 1.000 vacas. Por um conde ou filho de rei, 150 vacas; por um filho de conde, 100 vacas; para um "thane", 100 vacas, seu filho 66, e seu sobrinho 44 vacas; para um ser, 16 vacas. A mulher casada valia a terça parte do seu marido, ao menos (Henri Robert, Bani Macbeth, 220).

A esta altura posso antecipar-me um pouco sobre a exposição de matérias de que em breve trataremos, para deixar de uma vez abordado um assunto de capital importância para o estudo e compreensão da Idade Média.

Quando se entra em contato com a Idade Média, duas notas que impressionam muito desfavoravelmente são a crueldade das leis e o vigor das superstições. É isto um fato histórico incontestável para o qual chamo a atenção dos senhores, porque não quero ser, em relação à Idade Média, nem um detrator sistemático nem um apologista incondicional. Muito frequentemente, encontra-se um destes estados de espírito entre os escritores que se ocupam da Idade Média. Mas ambas estas tendências são extremadas e parciais. A verdade é que a Idade Média, ao par de coisas dignas do mais alto louvor, teve graves defeitos. Cumpre-nos estudar uns e outros, verificando no que consistiam, investigando suas causas e observando suas consequências.

A crueldade das leis e a propensão do espírito popular para aceitar as superstições eram muito salientes na Idade Média. Fazendo o estudo das leis penais de então, verificamos que, a princípio, elas eram extremamente rigorosas, e só com o curso do tempo se foram tornando mais benignas, sendo notável a melhoria verificada neste sentido nos últimos séculos da Idade Média.

Estudando as disposições cruéis do direito penal medieval, verificamos ser ele uma revivescência das leis penais extremamente desumanas dos bárbaros, sendo que grande número das penas que hoje nos parecem excessivas eram exatamente as mesmas que adotavam os bárbaros antes de se cristianizarem e de se civilizarem. De onde se chega à consequência de que a crueldade das leis penais na Idade Média era um fruto da influência bárbara, e não da influência cristã. A tal ponto é isto verdade que, à medida que a influência cristã, com o correr dos séculos, foi-se tornando mais profunda na Idade Média, as leis se foram tornando mais benignas. Era o paganismo que agonizava e o Cristianismo que crescia em influência.

O mesmo se deve observar quanto às superstições. As superstições medievais eram, muito frequentemente, velhas crenças anti-cristãs, datando do paganismo bárbaro. O hábito dos povos medievais, de praticarem durante séculos a fio uma religião supersticiosa em extremo, como era a que eles professavam antes de se cristianizarem, fez com que o Cristianismo tenha encontrado uma dificuldade imensa em desalojar do espírito dos homens da Idade Média a tendência para a superstição, tendência esta peculiar às religiões pagãs, e combatida constantemente pela Igreja. Conhecem-se inúmeras atas de concílios, realizados na Idade Média, em que todas as superstições são energicamente condenadas em nome da Igreja, afirmando-se serem vãos os velhos fantasmas da religião bárbara, seus amuletos e seus ritos grotescos, devendo o cristão crer tão somente na Religião Católica, que é incompatível com tais rebaixamentos do espírito humano.

Com isto, fica claramente estabelecido que, se bem que a Idade Média realmente mereça censura quanto aos dois pontos de que tratei, esta censura não se deve à influência cristã, mas aos restos de paganismo que, laboriosamente, a Igreja foi extirpando. Eram bem menores do que nos primeiros séculos que se seguiram às invasões dos bárbaros.

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