Plinio Corrêa de Oliveira

 

HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO


1936


Colégio Universitário

anexo à Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo

 

 

 

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Parte VII

Os hebreus

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é cópia ipsis litteris das apostilas para o curso de "História da Civilização". Portanto, os erros de ortografia, falta de palavras, eventuais acréscimos ou omissões são da responsabilidade de quem taquigrafou e datilografou ditas apostilas. Texto não revisto pelo Prof. Plinio.

O estudo da história hebraica apresenta múltiplo interesse:

1) sob o ponto de vista religioso, ele nos apresenta a vida de um povo predestinado a conservar o culto do Deus verdadeiro e à prática da verdadeira moral, dentro do oceano pagão da humanidade, até a vinda do Messias;

2) ainda sob o ponto de vista religioso, a vida dos personagens da história hebraica, que são prefiguras do Salvador e da Igreja, constitui estudo de importância capital para a elucidação da mais importante das questões de que a História se ocupa, que é a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo;

3) sob o ponto de vista histórico, traz esclarecimentos preciosos sobre os mais remotos acontecimentos da História da humanidade;

4) sob o ponto de vista histórico ainda, apresenta-nos o desenvolvimento de um pequeno povo, descrito com admirável precisão, desde a tribo nômade até o grande Estado organizado em poderosa monarquia.

A Palestina - É uma região abrangendo aproximadamente 25.000 Km2. Ficava situada entre a Síria, ao norte, e o Egito, ao sul. Essa região se comprime entre o Mediterrâneo e o Jordão. Nela se distinguem três zonas:

1) o litoral, que termina ao norte pelo que marca o limite Monte Carmelo com a Fenícia;

2) o planalto;

3) o vale do Rio Jordão.

O litoral era habitado pelos filisteus. O planalto era ocupado, antes da invasão hebraica, pelos cananeus e amalecitas. A leste, para além do vale do Rio Jordão, no deserto, viviam os amonitas e os moabitas. Esses povos aparecem frequentemente na Bíblia, como inimigos dos judeus.

Sob o ponto de vista geográfico, oferece muito interesse o Mar Morto, que fica situado cerca de 400 metros acima do nível do Mediterrâneo, e cujas águas, em que se encontra muito sal e betume, são venenosas. Nessas águas, bem como no litoral do Mar Morto, não há vida vegetal ou animal. Daí o nome que recebeu. Vestígios de convulsões de terreno fazem supor que tenham existido aí as cidades de Sodoma e Gomorra.

O povo - Era de raça semítica. Por muito tempo, vivera em estado nômade, como as tribos nômades da África em nossos dias. Os hebreus eram pastores, e levavam seus rebanhos de lugar em lugar, mudando de pastagem à medida que elas se esgotassem.

A religião - A grande característica desse povo era a sua religião. Vivendo em tribos sob o regime patriarcal, não tinham verdadeira unidade política. Suas migrações habituais, da Mesopotâmia ao Egito, tornavam-lhe impossível ter um território fixo. O grande laço de unidade nacional, que mantinha coeso os hebreus, era sua religião.

Enquanto todos os povos da antiguidade adoravam muitos deuses, os hebreus adoravam um só Deus. Ao contrário dos demais povos da antiguidade, os hebreus concebiam Deus como um ser espiritual, e não material. Esse ser não tem as fraquezas humanas, as paixões e as imperfeições que caracterizam o homem. Onipotente, onisciente, infinitamente justo e infinitamente misericordioso, o Deus verdadeiro, que os hebreus conheciam, nenhum traço de semelhança apresentava com os ídolos grosseiros, os animais ou os seres mitológicos profundamente corruptos e viciados, que a generalidade dos povos antigos adoravam.

É certo que muitos outros pensadores antigos conheceram a unicidade de Deus. Sem mencionar os gregos, sabe-se com certeza que outros povos antigos adoravam um só Deus, tendo depois descambado para o politeísmo.

Ao lado dessa altíssima concepção de Deus, os hebreus tinham uma altíssima moral, revelada por Deus a Moisés: o Decálogo. Até hoje o Decálogo é a base da civilização, por constituir um código moral perfeito, infinitamente superior às concepções morais dos demais povos antigos.

Profundamente apegados a esse culto e a essa moral, os hebreus se sentiam muito distantes, no terreno ideológico, de todos os povos da antiguidade. Daí o extraordinário sentimento de unidade nacional, que manteve coesas as tribos hebraicas em todas as migrações, bem como no cativeiro egípcio.

A Bíblia - "Bíblia" é uma palavra que provém de "byblion", que quer dizer, em grego, o "livro". A Bíblia é assim chamada por ser o livro por excelência. Ela se compõe de duas partes, cada uma contendo vários livros: o Antigo e Novo Testamento. No Antigo Testamento se encontra toda a história do povo hebraico, bem como a doutrina religiosa e moral desse povo.

Além do valor que a Bíblia tem sob o ponto de vista religioso, valor esse sobre o qual é supérfluo insistir, a Bíblia oferece um grande interesse histórico e literário.

Os grandes personagens de que se ocupa a Bíblia são os Patriarcas, os Juízes, os Reis e os Profetas.

Patriarcas - Eram os grandes chefes de tribo que dirigiram o povo hebreu nômade, nos primeiros períodos de sua história. O patriarca era, ao mesmo tempo, chefe de família, chefe político, chefe de guerra e chefe religioso. Como tal, tinha comunicação direta com Deus. Os grandes patriarcas foram Abraão, seu filho Isaac e o filho deste, Jacob.

Jacob foi pai de José, que, vendido aos egípcios, chegou a ser primeiro-ministro do faraó. José atraiu ao Egito os seus irmãos. E os hebreus se multiplicaram extraordinariamente no Egito. Mas as péssimas condições em que viviam, nesse país, fê-los desejar a libertação. Por isso, sob a direção de Moisés, retiraram-se à procura da Terra de Promissão. Depois de errarem pelo deserto durante quarenta anos, chegaram finalmente à Palestina, onde se estabeleceram na região ocupada pelos cananeus.

Moisés - Moisés não foi apenas o condutor de seu povo durante o "êxodo", isto é, a saída do Egito e a peregrinação pelo deserto. Ele foi também o organizador de seu povo, ao qual entregou o Decálogo, que lhe fora dado por Deus no alto do Monte Sinai.

O chefe do povo hebraico era Deus. Abaixo dele havia um juiz eletivo ou um rei hereditário. O povo era dividido em doze tribos, uma das quais, a tribo de Levi, era consagrada ao culto divino. O Conselho dos Anciãos era constituído pelos chefes de família. Em certos casos, o povo reunido em assembleia geral também exercia funções governamentais.

Os juízes - O estabelecimento do povo hebraico na terra da promissão não se fez sem lutas. Foi necessário rechaçar os povos que ocupavam a região invadida, e resistir aos contra-ataques por eles desferidos contra os invasores. Deus suscitou nesse período os Juízes, isto é, varões que dirigiam as tribos atacadas pelos inimigos. O juiz não era comandante de todo o povo israelita, ou antes, de Israel, mas apenas da tribo atacada. O juiz era consagrado pelo profeta da tribo. Os principais juízes foram: Gedeão, Jefté, Sansão e Samuel.

Os reis - A tendência a imitar os demais povos, que habitavam em torno deles, levou os hebreus a quererem um rei. Atendendo às injunções do povo, Samuel, o último dos juízes, sagrou rei a Saul. É dessa sagração que se originou o hábito de serem sagrados pela Igreja os reis dos países ocidentais.

Saul prestou serviços ao povo hebraico, combatendo com sucesso os seus agressores. Entretanto, não quis submeter-se à autoridade espiritual de Samuel, a quem Deus manifestava seus desejos. Por isto foi derrotado em combate e morto. Seu sucessor foi Davi, o verdadeiro fundador da monarquia hebraica.

Apoderando-se de uma praça forte — Jebus, pertencente aos cananeus —, lá construiu a cidade de Jerusalém, cuja posição estratégica lhe dava facilidade para se impor aos seus súditos. Muito fortificada a cidade, Davi transportou para ela, em grande pompa, a Arca da Aliança, e fez de Jerusalém a sede da monarquia.

Dentro dos muros fortificados de Jerusalém estavam ao mesmo tempo o centro religioso (a Arca da Aliança, e futuramente o Templo), o centro político (Jerusalém era a sede e residência do rei) e o centro militar (era também a grande praça forte do país) do povo hebraico.

Davi foi o fundador do poderio hebraico, transformando seus patrícios, antigos montanheses indisciplinados, em súditos dóceis ao seu poder de monarca absoluto.

Para tornar efetivo o exercício de seus direitos de soberano, Davi organizou um exército permanente. Depois iniciou diversas guerras tendentes a quebrar definitivamente o poderio dos povos vizinhos, que incessantemente atacavam os hebreus. Tendo sido bem sucedido nessas guerras, Davi estendeu o seu império desde o Mar Vermelho ao Eufrates, e colocou o povo israelita à altura de uma grande monarquia, dotada de uma grande capital e de povos tributários, sobre os quais exercia seu poder.

A velhice de Davi foi entristecida pela revolta malograda de seu filho Absalão. No fim de sua vida Davi tornou-se poeta, e compôs os salmos que trazem seu nome, e que são uma verdadeira obra-prima no gênero.

A Davi sucedeu seu filho Salomão. Dotado de uma sabedoria que o tornou célebre, Salomão foi o organizador da monarquia legada por seu pai. Cercou-se de todo o esplendor exigido pela dignidade de um grande monarca, dividiu administrativamente o reino, assegurou a manutenção das finanças, regulamentou o funcionamento público e demais encargos de Estado. Por outro lado, exerceu o comércio e a navegação em larga escala, de sorte que se tornou muito rico.

A maior obra de Salomão foi o Templo, construído por especialistas fenícios com materiais preciosos de diversas procedências. Nesse Templo os judeus ofereciam seus sacrifícios, que consistiam em animais e frutas, ao Deus verdadeiro. Os sacerdotes mantinham o culto e presidiam às cerimônias religiosas. O Templo, encerrado dentro de um grande recinto, se compunha de diversos compartimentos. Em um deles, o Santo dos Santos, estava a Arca da Aliança. O Sumo Sacerdote penetrava nele uma vez ao ano.

Depois de Salomão os judeus se dividiram. Duas tribos, conservando Jerusalém como capital, se mantiveram fiéis a Roboão, herdeiro legítimo. As outras dez, que tiveram posteriormente a capital em Samaria, aclamaram outro rei. Religiosamente, os habitantes do reino de Israel — assim se chamava o reino das dez tribos separadas de Jerusalém — foi cismático, isto é, revoltou-se contra a legítima autoridade religiosa. Esse reino foi várias vezes subvertido por revoluções. Os assírios, sob Sargão, apoderaram-se desse reino, cujos habitantes foram reduzidos ao cativeiro, no que os judeus viram com razão um castigo de Deus.

Enquanto o reino de Israel decaía de sua grandeza, pela violação de seus deveres religiosos, no pequeno reino que se conservara fiel a Deus o culto divino continuava a ser professado oficialmente. Esse reino, que conservou como capital Jerusalém, e que abrangia apenas duas das doze tribos hebraicas, deixou-se entretanto seduzir, por mais de uma vez, pelo prestígio do politeísmo professado pelas nações vizinhas. Mais de uma vez os próprios reis renunciaram ao culto do Deus verdadeiro, importando deuses falsos e seus respectivos sacerdotes. Entretanto, até o advento de Jesus Cristo, o Deus verdadeiro teve adeptos entre os hebreus, e no Templo se lhe prestou a devida adoração.

Profetas - Os profetas eram homens inspirados por Deus, que se lhes manifestava diretamente. Nas grandes ocasiões, eles anunciavam ao povo de Deus o futuro, predizendo o castigo que seus pecados mereciam, e que sobreviria brevemente, ou o perdão que o seu arrependimento havia conseguido, e que se traduziria em futuras recompensas. Eles predisseram também a vinda do Salvador do Mundo.

Seu heroísmo era extraordinário. Frequentemente, o denodo com que estigmatizavam os pecados do povo e dos reis lhes custava até a vida. Nada, porém, os demovia do enérgico desempenho de sua missão. Os mais importantes dentre eles foram: Isaías, Jeremias, Elias, Amós, Ezequiel e Daniel.

A vida dos judeus - Enquanto os reis viviam com grande largueza, as classes pobres viviam em situações muito modestas.

Características da civilização hebraica - Conquanto Davi e Salomão tenham chegado a elevar o povo hebraico à grandeza de uma monarquia forte, é inegável que a civilização hebraica não merecia grande lugar na História, tanto sob o ponto de vista material, no qual se lhe avantajaram os egípcios, assírios e persas, quanto sob o ponto de vista político, pois que os hebreus, mesmo no seu apogeu, nunca tiveram um império grande como os dos povos acima mencionados.

Mas as características dessa civilização estão nos princípios sobre os quais ela se alicerçou:

1) sua concepção elevadíssima de Deus, a qual não alcançaram, senão de forma muito imperfeita, os maiores pensadores da Grécia ou do Egito;

2) os perfeitíssimos princípios morais do Decálogo, que excedem de muito o que se encontra em todos os demais povos antigos;

3) a alta perfeição moral a que chegaram as grandes figuras da história judaica em geral, perfeição esta que os torna superiores, muito frequentemente, aos maiores heróis da antiguidade;

4) um conceito de fraternidade humana, decorrente da ideia de que Deus é o Pai de todos os homens. Esse conceito deu à civilização hebraica uma nota de brandura e benignidade que a antiguidade desconheceu inteiramente, ou que, se chegou a vislumbrar, fê-lo de modo incompleto, e nunca chegou a transformar em princípio fundamental da organização econômica e social.

Já vimos, no estudo dos outros povos, a crueldade com que os antigos tratavam os seus inimigos durante as guerras. Bastará, para isto, lembrar o que faziam os persas. A moral professada pelos hebraicos começava por proibir a guerra de conquista. Enquanto as guerras de conquista são, em geral, elogiadas como altos feitos pelos escritores da antiguidade, os hebreus as proibiam. O inimigo não devia ser tratado como tal, senão em legítima defesa. Por isto, deveriam ser feitas aos inimigos boas obras, e não atos maus: "Se encontras o boi de teu inimigo, ou seu asno errante, entrega-o ao dono". Em tempo de guerra não era permitido cortar as árvores no território inimigo, o que o reduziria à miséria.

O estrangeiro, que era tratado na maior parte dos países da antiguidade quase como um inimigo, isto é, como uma pessoa quase inteiramente desprotegida pelas leis e absolutamente inferior aos nacionais, era bem recebido pelos judeus. Por isto os estrangeiros, submetendo-se à circuncisão, podiam ser admitidos na comunidade hebraica. E o viajante faminto podia servir-se impunemente das espigas e outras frutas necessárias para o seu sustento.

A razão desse ideal de concórdia entre todos os povos estava na convicção de que Deus criou todos os homens de todas as nações, e não apenas os judeus. Na antiguidade, todos os deuses eram nacionais. Eram deuses que só se interessavam pelo seu povo, só se preocupavam com estes. O Deus verdadeiro, adorado pelos judeus, é o Deus de todos os homens e de todos os povos. É certo que prefere o povo hebraico, por ser o único que se conservou fiel ao seu culto. Mas ama e protege todos os povos da terra com dileção infinita.

Como Deus é Pai de todos os homens, eles são todos irmãos, e devem amar-se reciprocamente. Por isto as fortunas não devem ser tão grandes que prejudiquem a classe pobre. Cada família deve ter terras em quantidade suficiente para viver e atender razoavelmente as suas necessidades. Quando as circunstâncias econômicas desfavoráveis forçassem a família a vender a propriedade, essa venda seria meramente temporária, porque no ano do Jubileu a terra voltaria novamente à família.

Os judeus eram um povo de irmãos, e por isto era proibida a usura. Como eram um povo de irmãos, deveriam amar os escravos. O israelita que ficasse escravo de outro seria liberto dentro de seis anos, sem resgate, e o escravo israelita pertencente a um estrangeiro residente na Palestina deveria ficar livre no ano do Jubileu, além de poder ser resgatado a qualquer tempo. O escravo gozava do descanso do sábado, e perante os tribunais tinha os mesmos direitos de que qualquer cidadão.

Esta delicadeza de sentimentos era extensiva às demais criaturas de Deus. Por isto era proibido cozinhar o cordeiro no leite de sua mãe, destruir os ninhos de pássaros. No sábado, até os animais domésticos tinham direito ao repouso. E no ano sabático todos os animais selvagens tinham uma parte nos frutos do campo. 3.000 anos antes das sociedades protetoras dos animais, já havia tais preceitos!

Em cada 7 anos, um era ano "sabático". Neste ano os campos não eram trabalhados, e o povo vivia dos restos do ano anterior, o que era muito fácil naquela fertilíssima região. Os produtos espontâneos da terra, no ano sabático, pertenciam aos pobres, aos estrangeiros ou aos animais.

No ano do jubileu, que se festejava de 50 em 50 anos, eram remidas todas as escravidões, cessavam todas as dívidas, e todas as terras vendidas ou empenhadas eram restituídas. Com isto, o excesso de acúmulo de dinheiro era evitado.

Era proibida a mutilação do corpo do homem, que é sede de uma alma feita à semelhança de Deus. E eram proibidos os sacrifícios humanos.

Pode-se ver facilmente, por aí, a nobreza da civilização hebraica, e o extraordinário progresso em que ela estava sobre todas as demais da antiguidade. Cabia ao Cristianismo dar a tão elevados princípios todo o seu desenvolvimento, dando origem à Civilização Cristã na qual vivemos.

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