Plinio Corrêa de Oliveira

 

HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO


1936


Colégio Universitário

anexo à Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo

 

 

 

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Parte VI

Os fenícios

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é cópia ipsis litteris das apostilas para o curso de "História da Civilização". Portanto, os erros de ortografia, falta de palavras, eventuais acréscimos ou omissões são da responsabilidade de quem taquigrafou e datilografou ditas apostilas. Texto não revisto pelo Prof. Plinio.

Os persas, como já vimos, elaboraram uma civilização de síntese. Os fenícios não elaboraram civilização alguma. Eles eram um povo numericamente pequeno, que só teve valor na História pela sua navegação e pelo seu comércio.

Na antiga Fenícia houve cidades principais, que constituíram pequenas republiquetas autônomas, como o foram Tiro e Sidônia, e que se reuniam de vez em quando, sob a regência de uma delas, para fazerem frente aos outros povos. Comparativamente, deve-se notar que entre nós todas as cidades de São Paulo estão sob a dependência do governo do Estado. Com os fenícios não se dava isso, porque as cidades fenícias eram constituídas por pequenas republiquetas aristocráticas, em que havia populações de diversas procedências, que se sobrepunham umas às outras.

Em primeiro lugar vinham a aristocracia e a nobreza, que eram constituídas por indivíduos cujos ancestrais haviam invadido o país num período remoto, e que tinham reduzido ao cativeiro os povos que lá existiam.

Em segundo lugar vinha uma classe que não era propriamente aristocrática, mas que era, mais ou menos, o que foi antes da Revolução Francesa a burguesia. Esta classe era constituída pelos habitantes das cidades. Eram livres, podendo acumular fortuna, porém não podiam gerir os negócios públicos.

A terceira classe era formada por elementos recrutados entre os descendentes dos povos mais recentemente conquistados pelos fenícios. Eram mais ou menos o que são os plebeus de hoje. Tinham o direito à propriedade muito restringido.

A quarta e última classe social era a dos escravos, que viviam sob grande opressão das outras classes.

Como já tive ocasião de frisar, os senhores percebem quão errôneo era o critério que os povos da antiguidade usavam para dividir as classes. O racismo hitleriano não é, portanto, novidade: a raça vencedora, por ser mais forte, e só por essa razão, impõe o seu domínio às outras raças. Toda a hierarquia social era baseada nesse princípio.

Havia na antiga Fenícia, no concernente ao governo, três senados:

1) o grande senado, onde cada família tinha o seu representante;

2) o senado menor, onde cada tribo aristocrática tinha o seu representante;

3) o colégio dos 10 membros.

Por aí podem os senhores facilmente imaginar que um país onde havia três senados, obrigatoriamente devia ser um país com pouca direção nos negócios públicos. Havia necessidade de se fazer um governo forte, substituindo-se esta forma de governo por uma forma monárquica. É verdade que havia o rei, mas ele só tinha duas funções: era o chefe da esquadra e exercia o poder judiciário. Foi assim que, em última análise, se formou o regime político entre os fenícios. É necessário notar que este regime excluía do poder as classes populares.

O rei, vendo que a aristocracia roubava todos os seus poderes e atribuições, ligava-se muito frequentemente às classes populares, procurando atirar as classes populares contra a aristocracia, dando-se um fenômeno muito interessante na vida da Fenícia: muitas revoluções, acompanhadas de saque e morticínios, eram açuladas pelo próprio rei. O povo queria derrubar a aristocracia, mas não o rei. As revoluções populares atingiram na Fenícia uma grande intensidade, determinando mesmo a emigração em massa da classe derrotada.

Foi uma revolução popular que expulsou da Fenícia toda uma classe aristocrática da cidade de Tiro, tendo essa classe fugido até Cartago, aí fundando uma nova cidade. Os historiadores atribuem o ocaso de Tiro a esta emigração aristocrática.

O elemento popular era muito bronco, e não foi capaz de dar à Fenícia o governo inteligente que lhe dava a aristocracia. Quando passou Cartago a ser a maior potência do Mediterrâneo, a Fenícia entrou em decadência.

Havia lendas interessantes, como a de Pigmalion etc., que por falta de tempo não são mencionadas agora, mas que os senhores já devem saber.

Na política externa, que diretrizes seguia este povo? Queria tão somente um ganho monetário, ao fazer o comércio, sem a complicação causada pelas guerras. Por isso mesmo, eles frequentemente deixavam-se ficar na posição de povo tributário. Os egípcios e os caldeus foram sucessivamente povos soberanos dos fenícios. Quando os egípcios ficaram poderosos, os fenícios pagaram a este povo a fim de que lhes garantissem o litoral contra qualquer invasão. Depois foi com os caldeus, nas mesmas condições. Finalmente o império dos caldeus sucumbiu aos golpes dos persas.

Havia uma espécie de contrato de forças armadas, como hoje tem a Inglaterra com suas colônias. O Canadá, por exemplo, é uma colônia que poderia separar-se muito bem da Inglaterra, porquanto está apto para isso. Mas não quer ficar independente, pois teria de manter uma grande esquadra para guardar as suas costas, que são muito extensas, e a Inglaterra dispõe da sua poderosa esquadra para defendê-las. Os ingleses são diplomatas de primeira ordem, e com isto os interesses do Canadá prosperam. O Canadá está quase tão desenvolvido como os Estados Unidos, apesar de não ser um país independente.

Os fenícios fizeram a mesma coisa com todos os povos poderosos da antiguidade com que entraram em contato. Verão mais tarde os senhores que os fenícios estabeleceram colônias em todo o litoral do Mediterrâneo, e que eles tinham atravessado o estreito de Gibraltar e foram até a Irlanda, tendo chegado até a América do Sul. Dizem que os fenícios deram a volta à África, no período de Amor.

A organização econômica dos fenícios foi muito interessante. Eles dispunham de riquezas monetárias muito pequenas, mas tinham muitas colônias. A colônia não era na antiguidade o que é hoje, como a Guiana Holandesa, que não tem nenhuma autonomia. Colônia, antigamente, não era isto. De acordo com os critérios deles, nós seríamos hoje colônia de Portugal, que tem a mesma língua, a mesma raça, a mesma religião que a nossa. Na antiguidade, isto era o que se chamava colônia. Tinham os fenícios muitas colônias, e por outro lado tinham o que se chama hoje em dia de concessões.

Certas potências de hoje têm concessões na China, Índia etc. Mas o que é uma concessão? Uma concessão é um quarteirão, ou pouco mais do que isso, numa cidade, mas não chegando a formar uma colônia. Eles tinham concessões em quase todas as costas do Mediterrâneo. Eram quase que fortalezas, e eram como pontos de apoio para o desenvolvimento do comércio dos fenícios. Nos países bárbaros eles construíam uma fortaleza, no centro da qual se achava um templo e, ao redor deste, estabelecimentos comerciais, havendo também um porto bem seguro. Eles faziam com os bárbaros o que os portugueses fizeram aqui com os nossos selvagens, isto é, trocavam coisas de pequenos valores, auferindo com isto grandes lucros. Submeteram-se de boa vontade à soberania destes povos, para se abrigar à sombra de seus exércitos.

Os fenícios punham em contato, por meio da navegação, povos que ainda não se conheciam, embora fossem civilizados. Tornavam-se fornecedores de artigos que só eles vendiam, tirando disto grandes lucros, como bem se pode avaliar, pois não tinham concorrência.

Além do mais, os fenícios foram grandes industriais, pois enquanto no Oriente, em geral, só havia pequena indústria, eles criaram a fábrica em que era empregado um grande número de operários, que fabricavam muitas coisas.

Foram os fenícios os inventores da letra de câmbio. Criaram uma grande rede de comércio terrestre. Havia entre eles vendedores ambulantes numerosos, havendo mesmo menção de um circo ambulante. Esses vendedores faziam o que os sírios em São Paulo fizeram, ainda há pouco tempo: saíam à procura de compradores, o que logicamente facilitava a venda dos produtos que eles queriam vender.

Havia ainda o comércio de escravos, que geralmente eram mulheres e crianças roubadas. Vê-se ainda aqui a opressão do mais fraco.

A religião era politeísta. Davam o nome de Baal ao deus principal de cada cidade. A religião fenícia se caracterizava pela horrenda corrupção e crueldade pavorosa. Partiam da ideia de que os sacrifícios são necessários, porém o sacrifício é tanto mais válido quanto mais valioso o objeto. Assim o sacrifício de crianças, cujo desaparecimento ocasionava muita dor (de preferência filhos únicos, com pai e mãe vivos), era muito válido. As crianças eram queimadas vivas, sem anestésico (que ainda não existia), e seus ossos eram guardados no templo. Às vezes as crianças eram oferecidas espontaneamente. Assim, certa vez em Cartago foram oferecidas 300 crianças. Às vezes eram sacrificados adultos, porém muito raramente.

Há ainda um outro fato curioso. Procuravam imolar de preferência filhos de nobres, porque achavam que estes valiam mais. Vê-se por aí o absurdo das idéias de nobreza, pois eles achavam que um nobre valia mais que uma pessoa do povo, como homem, assim como nós achamos que uma pera vale mais que uma banana, e neste caso um plebeu teria sido feito de matéria prima humana de quinta ordem. Há nisto toda uma filosofia da vida.

A religião, como já ficou dito, era fantasticamente corrupta. Achavam que o que a mulher tem de mais nobre é a virgindade, e o homem tem de mais nobre a virilidade. Então eles sacrificavam aos deuses a virgindade da mulher e a virilidade do homem. A mulher transformava-se em meretriz, e ficava à disposição dos peregrinos que a quisessem. Em um templo chegou a haver 6.000 prostitutas, e num outro 3.000. Às vezes elas saíam em passeio pelo país, a entregar-se a quem quisesse, e depois voltavam ao templo. Vê-se que isto tudo é uma grandíssima imbecilidade.

Quanto ao homem, havia certas cerimônias que começavam com música tocada numa flauta, e após esta música os homens entravam num furioso delírio, no qual passavam a mão em uma faca e se mutilavam. Depois saíam a correr, com os órgãos viris na mão, e na primeira casa em que entravam recebiam roupas de mulher, com que compareciam às cerimônias litúrgicas, ao passo que as mulheres apresentavam-se vestidas de homens.

Praticavam uma dança muito esquisita, pois ao mesmo tempo que giravam em torno de si, flagelavam-se furiosamente. Após isto, tinham direito a uma lauta refeição e ao sossego, de que gozavam até o dia seguinte, quando repetiam a mesma dança.

Há um fato muito curioso. Os fenícios, sendo vizinhos dos judeus e tendo o mesmo florescimento que eles, são separados dos judeus — que são também uma raça semítica — por um abismo moral formidável, pois os judeus mandavam não violar a castidade, enquanto entre os fenícios a corrupção era determinada pela própria religião.

Sob o ponto de vista intelectual, podemos dizer que os fenícios inventaram o alfabeto, o que é de valor inestimável. Porém há os que contestam isto. Temos pouquíssimas produções intelectuais dos fenícios, porque seu território foi muito varejado por outros povos. Temos alguns escritos em latim de escritos fenícios. Parece certo que eles nada fizeram de apreciável sob o ponto de vista artístico e intelectual.

Em suas viagens, chegaram até o Mar Negro. Tinham navios mercantes e navios de guerra. Estes possuíam um gancho, que fixavam à nau inimiga para facilitar a abordagem. Possuíam muitos mercados desconhecidos de outros povos, e que eles tudo faziam para conservar em segredo. Entre esses mercados, havia o do estanho, nas ilhas Cassitéridas. É conhecido o caso de um navio fenício cujo capitão, percebendo que estava sendo seguido por uma nave romana, encalhou em um banco de areia, para que os romanos não descobrissem para onde iam. Este comandante foi muito elogiado e recompensado pelo rei.

A religião tão imoral dos fenícios não chocava em absoluto os povos da antiguidade. Somente os hebreus, que obedeciam ao decálogo de Moisés, repugnavam esta religião. Os fenícios praticavam o seu culto com facilidade, pois, quer nas penínsulas itálicas e helênicas, quer no Egito, eles construíam os seus templos.

Comércio fenício

O Mediterrâneo - O Mediterrâneo desempenhou através dos tempos grande importância, na ligação entre o Ocidente e o Oriente. Assim, pode-se afirmar que a vida econômica da Europa esteve presa ao comércio neste mar, e que os povos que conseguiram tornar-se senhores deste comércio foram grandes potências sob o aspecto econômico. Um destes povos foi o fenício.

A Fenícia

A Fenícia era formada por estreita faixa de terra, compreendida entre o Mediterrâneo e os montes do Líbano. Havia pontos em que esta faixa não atingia 100 km de largura. A leste, ao norte e ao sul, estavam respectivamente populações assírias, persas e egípcias. Estavam pois os fenícios, quer politicamente, quer fisicamente, impossibilitados para uma expansão pela parte territorial. Faltava também unidade nacional. As cidades que aí se erguiam eram independentes entre si, não havendo portanto um "espírito nacional". As comunicações interiores eram dificultadas pela velocidade das águas que desciam dos montes do Líbano, de sorte que só poderia ser estabelecida por mar a comunicação entre as cidades.

O comércio - Duas escolas antagônicas procuram explicar a formação do comércio fenício:

1) a primeira é mais antiga, e é a escola alemã, chamada de determinismo geográfico. São seus defensores Ratzel, Ritter etc.

2) a segunda é a escola francesa, de Vidal de La Blanche, Valenne e outros. Segundo esta escola o comércio se deu como uma reação do homem contra o meio, em oposição à opinião alemã, que julga ter resultado o comércio fenício de uma inspiração do meio.

Rotas - Muitas foram as rotas seguidas pelos fenícios. É preciso, porém, não confundir comércio fenício com navegação fenícia, indiscutivelmente em campos diversos. Até há pouco dava-se ao comércio fenício uma extensão fabulosa: viam-se os fenícios no Mar Vermelho e Atlântico, e chegaram a afirmar a sua estadia no Brasil. Victor Bernard está entre estes apologistas dos fenícios.

Mas hoje, graças aos estudos realizados principalmente pelos alemães, pode-se afirmar que o comércio fenício se fez no Mediterrâneo, possuindo uma rota no Atlântico, aquela que, cortando a Gália, ia ter às ilhas Cassitéridas. Não se nega que os fenícios tenham navegado ao longo da costa africana de oeste nem no Mar Vermelho, pois vestígios seus foram encontrados no Senegal e nas fortalezas de Limpopo. Porém essas expedições fenícias não podem receber o nome de comércio, são antes expedições aventureiras.

As rotas fenícias podem ser divididas em rotas marítimas e terrestres.

Rotas marítimas - Como se sabe, o comércio foi desenvolvido por cidades, e não pela Fenícia propriamente dita. Daí ter ele passado por fases, que correspondem ao desenvolvimento das principais cidades. Tiro e Sidônia foram as sedes do comércio fenício, porquanto foram as duas mais importantes cidades da Fenícia. Houve diferenças entre as rotas de cada uma delas. Na época de Sidônia visava-se o norte, e partindo daí atingiram Chipre, Karia e Rodes; entraram no Egeu, visitando suas ilhas (Paros, Cítara e Creta); atingiram a Trácia, atravessaram os estreitos e chegaram ao Cáucaso.

Na época de Tiro estas comunicações com o norte continuaram, porém o comércio se fez de preferência no Ocidente, ou seja, atingiu a Grécia, foi à Itália, Sicília, Malta e Norte da África. Chegou à Sardenha, às Baleares e às Colunas de Hércules, fundando colônias. Entrou no Atlântico, costeando a Península Ibérica e a Gália, atingindo as Cassitéridas.

Rotas terrestres - Embora não apareça o estudo das rotas terrestres na maioria dos autores, é indiscutível a importância desses caminhos, pois foi graças a eles que o mundo ocidental foi posto em contato com o oriental. Da Fenícia partiam caravanas que atingiam a Mesopotâmia, a Pérsia, a Índia, e mesmo a Indochina. Desempenharam estas caravanas papel saliente na troca dos produtos orientais e ocidentais.

Mercadorias - Os fenícios praticavam de preferência as trocas de produtos, porém, de modo geral, não eram produtos próprios, eram comprados de outros povos. Praticavam o comércio em espécie, isto é, a troca sem dinheiro, porquanto só aparecem moedas depois das guerras médicas.

É notável a variedade de produtos com que negociavam. Poucos são fenícios, sendo destacáveis, no reino mineral, o sódio, potássio e pedras de construção; no reino vegetal os fenícios possuíam madeiras para construção (é real que pouco as vendiam, conservando-as para si) e exportavam frutas, que possuíam em grande quantidade. As costas fenícias possuíam o escaravelho, um animal do qual retiravam tintas com que coloriam os tecidos e fabricavam a púrpura. A maioria das mercadorias fenícias provinha de sua indústria: a púrpura, o vidro, trabalhos em ouro e prata, vasos com escultura em relevo.

O maior número de mercadorias que o comércio fenício punha em movimento eram, porém, trazidas de outros países. Da Índia e da Arábia recebiam perfumes, pedras preciosas, sedas, especiarias etc.; da Pérsia, tapetes, sedas, peles e tecidos em geral; da Abissínia, escravos; da Espanha, prata e estanho; das ilhas Cassitéridas, estanho e cobre; de Creta e Chipre, mármores e cobre; do Norte da África levavam sedas e cavalos das regiões hoje chamadas Sirenaica; da Sicília, madeiras para construções etc.

De todas as mercadorias fenícias, destacavam-se três: a púrpura, os escravos e o estanho. A púrpura é originária da própria Fenícia, e deu-lhes fabulosos haveres, sabendo-se que nesta época era obrigado o seu uso nos trajes sacerdotais e reais. Os escravos eram trazidos do Cáucaso, e eram também escravos os prisioneiros de alto mar. Possuíam grandes minas de estanho, que ficavam na Espanha.

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