Plinio Corrêa de Oliveira
HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO
anexo à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
|
|
Parte II PRÉ-HISTÓRIA
A D V E R T Ê N C I A O presente texto é cópia ipsis litteris das apostilas para o curso de "História da Civilização". Portanto, os erros de ortografia, falta de palavras, eventuais acréscimos ou omissões são da responsabilidade de quem taquigrafou e datilografou ditas apostilas. Texto não revisto pelo Prof. Plinio. |
|
Definição de pré-história Alguns autores dizem ser a pré-história uma ciência à parte da História. Dever-se-ia chamar proto-história, em vez de pré-história. A origem da vida O problema da origem do gênero humano foi largamente debatido no século passado, e consiste em saber como apareceu o homem. Se não admitimos que ele se originou na evolução de seres de escala inferior, será difícil, senão impossível, recusar a versão bíblica, segundo a qual foi ele criado por Deus. A origem do gênero humano se relaciona com a origem da vida, e mais remotamente com a própria origem dos seres inanimados. Com o intuito de combater os argumentos que demonstram a existência de Deus, originou-se a doutrina da geração espontânea, segundo a qual da matéria inerte pode originar-se a vida. Fracassada a teoria da geração espontânea, em virtude das experiências de Pasteur, caiu em descrédito completo a hipótese de que em nossos dias se possa verificar a geração espontânea. Certos cientistas pretenderam então que essa geração se tenha realizado em tempos remotíssimos, quando todas as condições do globo eram diversas. Com a perfeição própria às experiências de laboratório modernos, foram criadas as mais variadas condições de temperatura, pressão etc., sem que a matéria inerte tenha adquirido vida. Acresce que, evidentemente, para se calcular o tempo necessário para a primeira célula viva evoluir e se transformar numa planta, por exemplo, seria necessário um número muito grande de séculos. E é positivo que a esse tempo a vida não seria possível no universo, dadas as condições então existentes. Sentindo, pois, a inviabilidade dessa hipótese, houve evolucionistas que apelaram para a hipótese da chuva microbiana, vinda de outro planeta que por esse tempo estivesse muito próximo do nosso atual globo terrestre. A hipótese evolucionista de Darwin Também a origem do gênero humano foi objeto de acalorada discussão no século XIX, pelas mesmas razões de ordem filosófica e religiosa que se fizeram notar no tocante à discussão do problema anterior. Foi Darwin o autor da hipótese científica segundo a qual o homem não seria senão um animal evoluído. Reduz-se a três princípios a sua doutrina: 1) na luta pela vida as espécies animais adaptadas suprimem as outras por concorrência vital; 2) a concorrência vital produz por seleção natural a sobrevivência das espécies mais aptas; 3) a função sexual é exercida de modo a proporcionar a procriação dos tipos mais vantajosos para a espécie. O pitecantropo que não foi encontrado Haeckel, aceitando com fervor a hipótese de Darwin, pretendeu que os símios fossem o antepassado do homem. E em 1873 o Congresso Francês para o Progresso da Ciência ouviu o relatório de dois cientistas, que pela primeira vez lançaram a hipótese da existência de um ser intermediário entre o homem e o símio, ao qual deram o nome de pitecantropo, o que significa homem-símio, ou seja, o ser intermediário entre o homem e o macaco. Dezessete anos após essa data foram encontrados indícios do primeiro ser apontado como intermediário entre o homem e o macaco. Um médico militar holandês, pertencente a uma expedição da Holanda à ilha de Java, procedeu a escavações na localidade chamada Trinil, obtendo considerável quantidade de ossos de elefantes, rinocerontes etc. Além disso, encontrou três ossos de macaco. O primeiro, obtido em setembro de 1891, era um dente; outro dente foi encontrado em outubro do mesmo ano, a um metro do lugar em que fora achado o primeiro. Finalmente, em 1892, a 13 metros do lugar onde estivera o dente, foi encontrado um fêmur. Estudando esses vestígios, Dubois reconstruiu todo esse bisavô do homem. Servido por uma imaginação fértil, não hesitou em fazer a reprodução do pitecantropo, que foi exposta com grande sucesso, dada a curiosidade popular, na famosa Exposição Mundial de Paris. A despeito da exiguidade do material obtido, Dubois havia reconstituído o pitecantropo nas mais íntimas minúcias. Entretanto, as objeções começaram a nascer. Em 1906, uma rica viúva alemã, em memória de seu marido, resolveu ordenar novas pesquisas no local em que Dubois encontrou os ossos mencionados. Esperava ela conseguir outros ossos do mesmo ser, a fim de reconstruir com plena objetividade o homem-símio. Suas pesquisas tiveram, entretanto, um resultado contraditório. Em torno do pequeno monumento erigido a Dubois, no local em que foram encontrados os restos do suposto pitecantropo, foram revolvidos dez mil metros cúbicos de terra, sem que se encontrasse qualquer osso que, mesmo com boa vontade, pudesse ser atribuído ao pitecantropo, e isso apesar da grande quantidade de ossos de outra natureza ali encontrados. A perplexidade originada por essa verificação se tornou mais aguda quando muitos cientistas, aliás propensos ao evolucionismo, chamaram a atenção geral para o fato de não serem ossos intermediários entre o homem e o macaco os que Dubois encontrou: enquanto o crânio e os dentes são tipicamente de um símio, o fêmur é de um homem. Ora, para que se considerasse como intermediário o pitecantropo, seria absolutamente necessário que em um só osso se encontrassem características simultâneas de um e outro ser. Finalmente, autores simpáticos ao evolucionismo fizeram notar que a parte de maior progresso na evolução de símio para homem deveria ser o crânio. Mas o pitecantropo tinha um crânio tão imperfeito, que dentro dele não poderia caber em funcionamento o cérebro humano dotado de inteligência. A unanimidade verificada entre os cientistas contra o pitecantropo foi tal, que em 1924 o próprio Dubois, falando perante a Academia Real de Amsterdã, reconheceu que o chamado pitecantropo não passava de um símio em grau de evolução ainda maior do que o de outros símios, e que, sem nada ter de humano, talvez fosse, dentre as diversas espécies de símios, aquela de que o homem se originou. Ulteriormente julgou-se ter encontrado vestígios do homem-símio em diversos ossos, sucessivamente provenientes de um terreno pré-histórico. Mas da veracidade de serem de um homem-símio esses ossos, não se sabe. O homem primitivo Dentro da exiguidade de tempo do ano letivo, não podemos fazer a análise completa do homem primitivo, quer sob o ponto de vista material, quer intelectual. Entretanto, a característica do homem que ao mesmo tempo o distingue dos outros seres e lhe confere uma realeza sobre todos eles é a inteligência. A aparência que têm certos vestígios humanos pré-históricos, e a condição extremamente rudimentar em que viveram os homens primitivos, causam-nos a impressão de que sua inteligência era muito escassa de recursos, e não lhes permitia a produção de progressos melhores e maiores do que os rudimentaríssimos utensílios que deles nos restam. Uma primeira verificação vem desde logo destruir essa falsa impressão. A inteligência do homem primitivo tem o mesmo valor que a do homem civilizado de hoje, e para comprová-lo basta verificar que as crianças das tribos selvagens de nossos dias, quando dotadas da instrução que comumente se ministra às crianças de hoje, e postas em contato com uma civilização, revelam uma surpreendente aptidão para aprender tudo o que se lhes ministra, e chegam sempre a se elevar ao nível cultural de qualquer homem civilizado comum. Por outro lado, há em nossos dias tribos selvagens, certamente tão primitivas quanto as mais remotas populações pré-históricas. Um segundo argumento vem corroborar essa última reflexão. Ninguém mede o talento de um povo, em determinada época, exclusivamente pelo grau de desenvolvimento em que ele se encontra, mas pelo esforço que ele é capaz de realizar a fim de progredir. Assim, por exemplo, as conquistas científicas do grande Euclides foram postas hoje em dia ao alcance da difusão do ensino. Entretanto, ninguém concluiu daí que Euclides tinha uma inteligência igual à dos estudantes de matemática de nossos dias. Euclides ainda é considerado um gênio imortal por todos os matemáticos de hoje, entretanto seus conhecimentos já foram de há muito superados. A inteligência de Euclides se mede, portanto, pelo que ele foi capaz de fazer de original. Medindo-se através desse critério a inteligência do homem primitivo, chegaremos à conclusão de que ela foi muito potente, não tendo faltado autores que afirmaram ter sido ela mais potente do que a do homem contemporâneo, chamando o homem primitivo de "homo faber" (homem engenhoso), tal o número de invenções então realizadas. Raças Não há unanimidade entre os autores a respeito do critério a ser adotado para a classificação das raças humanas. A classificação corrente baseada na diferença de cores, além de não poder abranger em categorias nítidas todos os povos têm o inconveniente de repousar sobre uma característica de importância intrínseca relativamente secundária. A fragilidade dessa classificação se revela por vezes pela grande variedade de características importantes que podem existir dentro de uma mesma raça. Essas diferenças fazem com que às vezes pessoas pertencentes a raças diversas apresentem entre si tipos mais ou menos analógicos, coisa que não acontece com outros tipos da mesma raça. Muitos historiadores têm procurado classificar as raças atuais segundo o critério evolucionista, procurando primeiramente estabelecer uma hierarquia de valores entre as raças contemporâneas, para deduzir daí quais as mais antigas. Procedendo de uma série de afirmações apriorísticas ainda muito discutíveis, chegaram eles à convicção de que na raça branca coincidem todas as características de superioridade, desde a primeira, intelectual, até a perfeição do vigor físico e da beleza. Assim, a raça mais diferente desta seria necessariamente a menos perfeita de todas. E, em consequência, a raça seria inferior. Esta afirmação, que não tem fundamento científico positivo, levou certos evolucionistas a afirmar que a mais antiga das raças é a negra, da qual descenderiam por via direta as demais raças, inclusive a branca. E, dentro da branca, a ariana, a qual, por ser a mais perfeita, seria necessariamente a mais nova. Entretanto, está provado hoje em dia que a raça negra é muito mais recente do que outras. Os estudos de pré-história provam a existência de raças pré-históricas profundamente diversas entre si, conforme os vários períodos. A diversidade existente entre tais raças se prova pela notável diferença de caracteres dos diversos vestígios humanos, não faltando quem afirme que as diferenças de raça na pré-história são ao menos tão grandes quanto nos tempos históricos. Civilizações paleolíticas e neolíticas Paleolítico inferior - Os diversos períodos da pré-história são caracterizados pelos nomes das localidades em que foram feitas as primeiras escavações a respeito de cada período. Assim, a era paleolítica, cujo mais antigo período costuma ser denominado chelense, por causa da localidade de Chelles, na França, onde pela primeira vez se fizeram escavações referentes a tal período. Por outro lado, cada um destes períodos conheceu a existência de uma raça diversa, geralmente designada pelo nome da localidade onde pela primeira vez foram encontrados ossos humanos daquele período. A raça humana que viveu no período chelense é a mais antiga das raças conhecidas, e é chamada raça de Mauer. Nesse período o clima era uniforme e temperado. O homem habitava de preferência os planaltos e as margens dos rios, e em pequenas habitações muito fáceis de serem construídas. Os animais então existentes eram sobretudo as hienas, os hipopótamos, os leões, os ursos etc. O instrumento frequente nesse período era a pedra lascada, amigdalóide, ou seja, em forma de amêndoa, que servia principalmente para cortar carne, pelo dos animais pequenos e lascas de madeira. O homem desse período já conhecia o uso do fogo. No período seguinte, que é o período chelense, a raça humana existente era a de Piltdown. Nesse período a temperatura caía cada vez mais, o que explica o aparecimento do mamute. O homem, entretanto, ainda suporta a habitação ao ar livre. Os objetos denotam perfeição muito maior na indústria pré-histórica, quer quanto ao seu acabamento, quer quanto à sua maior variedade. A esse período segue-se o musteriense, durante o qual viveu a raça de Neanderthal. O clima, já muito frio, obriga o homem a se transportar para cavernas, algumas das quais muito espaçosas. O estudo do solo dessas cavernas mostra que o homem pré-histórico era indiferente à limpeza e ao decoro de sua habitação. Por toda parte, indistintamente encontram-se restos de comida, vestígios de fogueira, pedaços de utensílios partidos. Durante o verão, sempre muito curto, os habitantes das cavernas, inclusive mulheres e crianças, saíam para a caça. As hienas penetravam então nas residências abandonadas, alimentando-se com os detritos e sujando-as copiosamente. Quando as famílias regressavam, está provado que não limpavam o lugar. Em geral só se encontravam ali ossos do crânio e dos membros de locomoção dos animais, o que faz supor que as presas das caçadas eram esquartejadas, e só as partes mencionadas eram aproveitadas para a alimentação. A indústria musteriense produzia frequentemente instrumentos mal acabados, conquanto por certas minúcias se pudesse notar a grande perícia de seus autores. A razão disto está no hábito que esses homens tinham de fabricar instrumentos em grande quantidade. Em uma só gruta foram encontrados milhares de instrumentos desses. Dada a relativa frequência das migrações, não lhes era conveniente fazer o transporte constante de tais instrumentos, pelo que eram eles sumariamente fabricados em cada lugar. A indústria musteriense se destaca pela perfeição e variedade dos instrumentos, bem como pela sua grande especialização. O período musteriense é o primeiro em que se nota de modo positivo o culto aos mortos. Nos períodos anteriores, os vestígios deixados não são suficientes para que se possa ajuizar qualquer coisa a esse respeito. Paleolítico superior - A primeira época é a aurignacense, assim chamada por causa do Aurignac. O homem desse período é da raça de Grimaldi. Esse período acusa o aparecimento da arte. É muito digno de nota que o homem desse período revelou, nas suas primeiras manifestações artísticas, um senso estético notabilíssimo, datando desse período as mais antigas estatuetas conhecidas. Além da escultura, começou a ser praticada a pintura e a gravura. Começa o aproveitamento do osso, do marfim e do chifre para objetos de uso pessoal. Os homens se pintavam com ocre e grande variedade de minerais corantes. Os adornos eram em geral de conchas ou dentes de animais. O osso permitiu pela primeira vez o fabrico de frascos para carregar tintas, de flautas, de assobios e de estátuas. O clima extremamente frio só permitia caçadas durante dois ou três meses por ano, sendo consumida em geral carne de cavalo ou carne de rena. Nesse período também se nota o culto dos mortos, os cadáveres coloridos e enterrados como os selvagens da América, com um grande número de objetos. A segunda fase desse período é a de cromagnon. A temperatura continua fria. Conquanto certos animais como o mamute, o rinoceronte e o cavalo diminuíam muito de número, a rena se multiplica extraordinariamente. A indústria dessa época produzia objetos muito mais leves, delicados e artísticos do que em épocas anteriores. É característico dessa indústria o objeto comumente chamado folha de louro, trabalho de extraordinária habilidade. Algumas dessas folhas, feitas em cristal, parecem ter servido como joias. Entretanto, a pintura, a escultura e a gravação não parecem ter sofrido progressos nesse período. No período seguinte, magdaleniense, com a raça de chancelade, a fauna e a flora continuam características das regiões polares, pela temperatura sempre fria e mais seca que então se notava. As renas continuam numerosas. O uso generalizado do osso faz decair a indústria do sílex. Datam desse período as primeiras lâmpadas de calcário, flechas, arpões para caça e pesca, anzóis etc. O período aziliense apresenta, quando analisado à primeira vista, uma inferioridade tão grande em relação aos períodos anteriores, que não faltou quem supusesse que as raças paleolíticas emigraram da Europa no período aziliense, tendo sido substituídas por uma raça inferior em progresso, e da qual nos restariam os vestígios característicos desse período. Essa conjetura parece destituída de fundamento, uma vez que sob muitos aspectos o período aziliense apresenta, ao par de certos retrocessos, importantes índices de progresso. A agricultura começa a aparecer. Por outro lado, também surgem os primeiros indícios do uso dos caracteres gráficos, indícios esses que existem em pedras polidas pela ação da correnteza fluvial, e decoradas com letras dos alfabetos latino, grego, fenício, e até da ilha de Chipre. Neolítico - O período neolítico se divide em duas fases: antiga e recente. Na fase antiga continua a grande umidade, e a fauna é quase igual à de hoje. Os instrumentos são em pedras polidas, apresentando grande variedade. Os mais importantes vestígios desse período foram encontrados em Kjoekkoumedding (Restos de Cozinha), na Dinamarca. Nesse período o homem já conhecia o uso dos animais domésticos, sendo certo que entre estes estavam o cão, o boi, o carneiro e o porco. No período neolítico recente aparecem machados feitos em pedras polidas de valor, como por exemplo o jade, que eram verdadeiros objetos de luxo. Conhecem-se desse período maravilhosos vasos de pedra, procedentes do Egito. O fabrico de punhais e pontas de lança atingiu uma notável perfeição. O sílex passou a ser extraído de grandes profundidades, encontrando-se escavações até com 12 metros de profundidade. Nesse período já eram fabricados tecidos, e o comércio tomou apreciáveis proporções, quer por terra, quer por mar, sendo grande o número de estradas comerciais na época. As habitações eram campos fortificados e cercados por um valo de água, ou as famosas habitações lacustres. Chamam-se monumentos megalíticos certos monumentos de pedra datando do período neolítico. Mega quer dizer grande, e lithos quer dizer pedra. Entre esses monumentos destacam-se o dolmen, ou pequena câmara funerária feita com grandes pedras justapostas e contendo um orifício para a introdução de alimentos para as refeições fúnebres, e os manhirs, ou grandes pedras isoladas ou dispostas em fileiras, cujo significado é desconhecido. Civilizações orientais Aquisições recentes da História e pré-história nesse período - As civilizações orientais compreendem as civilizações do Egito, da Fenícia, dos Hebreus, da Caldéia, da Pérsia, da Índia, da China e do Japão, sem falar em outras civilizações de grande interesse, porém ainda menos estudadas, que floresceram na Ásia Menor, na Indochina etc. Pelos conhecimentos recentemente adquiridos, e graças ainda ao apoio das potências ocidentais e à tolerância mais ou menos espontânea dos povos do Oriente, o estudo da História e da pré-história tem feito grandes progressos. Formas de governo - A quase totalidade das civilizações orientais se regeu pela forma monárquica. O soberano, geralmente hereditário, era considerado na quase totalidade dos casos como descendente de deuses, e dotado por isso mesmo de uma natureza quase divina. Cercado de fausto, vivia em geral como os antigos imperadores russos — ao menos até Pedro, o Grande —, fechado em seus palácios, cujos pátios imensos contendo grande número de edifícios constituíam pequenas cidades fortificadas, em cujo interior se acumulavam todas as maravilhas de riquezas e de arte. A China teve durante muito tempo uma monarquia eletiva. E no Egito, se bem que a monarquia fosse hereditária, o faraó só poderia subir ao trono depois de submetido a um exame perante uma banca de sacerdotes, para verificar sua competência para o governo. O único país que parece ter conhecido a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário de um modo claro foi o Egito. Os sacerdotes do Egito exerciam o poder legislativo, os faraós exerciam o executivo. O poder judiciário era exercido em cada município por um tribunal popular. As pessoas que não se conformassem com o julgamento popular conservavam o direito de apelar para o supremo tribunal dos sacerdotes, de cuja decisão não havia recurso. O tipo clássico da monarquia absoluta, na qual não havia limite para a autoridade do rei, era a monarquia caldaica, como existiu em Assur, Nínive ou Babilônia. Classes sociais - Na maior parte dos países, a autoridade real era limitada pela existência de poderosas aristocracias. No Egito e no Japão existiu o regime feudal, muito análogo ao da Europa medieval. As classes sociais na antiguidade se diferenciaram muito nitidamente, não somente pela desigualdade dos direitos políticos e pelas obrigações financeiras em matéria de impostos, como ainda sob o ponto de vista honorífico. Cada classe social tinha não raramente o direito do uso de trajes próprios, direito a grandes reverências, cumprimentos profundos e outras manifestações de respeito por parte das classes inferiores. Na Caldéia e na China, se bem que houvesse uma certa diferença de classes sociais, essa diferença era, como em nossos dias, principalmente econômica e cultural. Sob o ponto de vista político, todos eram iguais perante o Estado, encarnado no rei. Critério diferenciador das classes sociais - Na maior parte dos povos antigos, as classes sociais se formaram do seguinte modo: 1 - um povo invasor penetrava em certa região, cujos habitantes eram reduzidos à servidão; 2 - sobre esse território existirão doravante duas classes nitidamente demarcadas: a) a dos conquistadores e seus descendentes, dotados da plenitude dos direitos civis e políticos; b) a dos povos conquistados, reduzidos à escravidão ou a uma situação de inferioridade legal sensível; 3 - por mais numerosos que transcorressem os séculos posteriormente à conquista, os dois povos se conservavam separados, e a distinção das classes continuava sempre vivaz. No Japão, na Índia, no Egito e na Fenícia os primitivos habitantes foram subjugados pelos povos invasores. Isto é, os povos que hoje denominamos japonês, hindu, egípcio, fenício, etc., ocuparam a mais alta camada social, enquanto que os outros, os verdadeiros povos que deveriam chamar-se hoje japonês, hindu, egípcio, fenício, etc., foram colocados nas mais baixas camadas da sociedade e escravizados. Frequentemente esse modo de divisão de classes tinha grande complexidade. Os persas, por exemplo, dominaram os medos e constituíram uma classe superior à desses últimos. Medos e persas dominaram em seguida os bactrianos, que vieram a constituir uma terceira classe, ficando os medos como classe intermediária. E assim foram sendo incorporados sucessivamente ao império persa diversos povos, o último dos quais vinha a constituir uma classe inferior ao penúltimo. Havia, finalmente, o que se poderia chamar rés-do-chão do império, a classe social a que pertenciam os povos mortalmente inimigos dos persas, e que tinham sido conquistados à viva força, e sem depor armas. A organização das classes na Fenícia, bem como em Esparta, obedecia a esse mesmo critério. Em Esparta, além da classe social dos espartanos, que eram descendentes das aristocracias invasoras e dominadoras, e que tinham nas mãos a plenitude dos poderes, havia os periecos, que eram a segunda classe do lugar, composta por pequenos agricultores livres, que habitavam a periferia do estado espartano; e os ilotas, classe miserável, privada de todos os direitos de vida, e cujos membros eram caçados e mortos pelas ruas da cidade, como animais, em certos dias do ano. Os ilotas e periecos eram descendentes de dois povos diversos, ambos dominados pelos espartanos. A desigualdade de tratamento entre ambos deriva da desigualdade de condições em que se renderam. Em todos os municípios da Grécia e de Roma prevaleceu o mesmo critério, até às revoluções sociais que alteraram a situação. A nobreza em Roma descendia das tribos que tinham invadido o lugar e fundado a cidade. A plebe descendia de aventureiros ou criminosos fugitivos, que lentamente se agregavam ao município. Os propriamente descendentes de estrangeiro, por mais remota que fosse a descendência, eram tratados sempre como estrangeiros. As leis não existiam para eles, e protegiam apenas os descendentes da nobreza. Essa total ausência de direitos da plebe, bem como as transformações que acarretaram para a sociedade, trouxeram na Grécia e em Roma as revoluções sociais que estudaremos. Assim, pois, as classes sociais não conquistavam sua preeminência pelo valor moral ou intelectual, ou pelo requinte da educação, mas pela imposição de um povo sobre outro pela força. Na divisão das classes sociais, duas notas eram características: 1) a enorme desproporção dos direitos entre as várias classes, concentrando-se todas as vantagens em benefício de um pequeno número de pessoas; 2) o fato de essa diferença social ter a sua única origem na força. Escravos - A expressão mais característica do domínio da força era a escravatura. Todos os povos antigos, com exceção da China durante um certo período, conheceram a escravidão. O escravo era em geral prisioneiro de guerra, e a condição de servil transmitia-se dele para todos os seus descendentes, indefinidamente. Na fase expressiva do direito romano, o escravo era considerado um objeto inanimado, do qual o senhor poderia dispor à vontade. Nem o povo vencedor poderia deixar de escravizar todo o povo vencido. O escravo não tinha direito à vida nem à propriedade. Nem a família era reconhecida ao escravo. Os assírios costumavam cegar os escravos em grande quantidade, empregando-os depois nos trabalhos públicos. Os fenícios empregavam os seus escravos muito frequentemente nas galeras, onde remavam a vida inteira, submetidos a um trato desumano. Em geral, todos os grandes monumentos da antiguidade foram construídos por meio de escravos. Um gênero de comércio muito desenvolvido era o de escravos nos mercados, onde eram expostas as famílias aos compradores. O pai poderia ser comprado para trabalhos na construção de um monumento na Caldéia. A mãe seria comprada para ser perfumista de uma senhora aristocrática em Roma. Dos filhos, um iria para Cartago e outro para o Egito, de sorte que a família se dispersava, certa de que seus membros nunca mais se veriam. Os golpes — que chegavam até a efusão do sangue, e muitas vezes até a morte —, os maus tratos, a fome, as injúrias e o trabalho esmagador seriam definitivamente o seu destino. Não é possível compreender o funcionamento da democracia em Atenas e em Roma, mas sobretudo em Atenas, sem o conhecimento da função de escravo nas sociedades humanas anteriores a Jesus Cristo. Enquanto um pequeno número de homens livres discorria quase diariamente na praça pública sobre os direitos do povo, e se permitia o luxo de ouvir os melhores oradores da antiguidade, uma população de escravos duas ou três vezes mais numerosa labutava na cidade e nos campos. Vida econômica - A distribuição da riqueza na sociedade antiga constituía um índice expressivo do que acabamos de afirmar. Na generalidade dos casos, à medida que o comércio e a indústria aumentavam a riqueza de um povo, os costumes perdiam a sua simplicidade patriarcal. O luxo se desenvolvia, e nas classes ricas se tornava cada vez mais pronunciado. Ao cabo de certo tempo, em geral a oposição entre as classes sociais se definia claramente: de um lado uma classe riquíssima, vivendo na exuberância de todos os bens materiais; de outro lado uma multidão paupérrima, vivendo de um trabalho exaustivo, e com os mais insignificantes recursos com que uma pessoa possa subsistir. Religiões pagãs - A despeito da imensa variedade dos cultos praticados pelos povos anteriores a Cristo, certos traços comuns podem ser apontados em todos eles. Cada país tinha sua religião e seus deuses, que eram adorados pelos nacionais. Entretanto essas religiões em geral não se consideravam reciprocamente falsas, como hoje ocorre. Efetivamente, um romano podia crer, por exemplo, na existência de deuses tutelares do Egito, além dos deuses próprios, bem como um egípcio podia crer nos deuses romanos. Mas os deuses de cada país eram privativos do respectivo povo. Os romanos acreditavam que, enquanto dois países combatiam, os respectivos deuses também entravam em luta. Sempre bons políticos, procuravam eles obter a traição desses deuses, e lhes prometiam que, em caso de vitória das armas romanas, seriam eles transferidos para Roma, o que os romanos consideravam um prêmio invejável pelos próprios deuses. Por isso também, muitos povos, receosos de traição, se dirigiam aos deuses antes dos combates, ameaçando-os de apedrejamento caso a cidade não fosse vitoriosa, e amarrando-os, por via das dúvidas, com fortes cordas. Quanto à moral, sem dúvida certas religiões antigas prescreviam normas de conduta, algumas delas muito elevadas, outras francamente imorais. Mesmo dentro das mais elevadas, tais religiões pactuavam com grandes imoralidades e prescreviam regras infames. A escravidão, por exemplo, que continha em si todas as imoralidades possíveis, era permitida por todas elas, com o que pactuavam todas com esse grande crime social. Ao lado disso, mesmo nas civilizações mais adiantadas, misturava-se na religião uma série de práticas infantis. No Japão, afugentavam-se os espíritos com flechas sibilantes. Na Pérsia, a religião vedava como pecado o fato de o homem cuspir dentro da água, ou enterrar os seus mortos. E o mais soberano remédio para os doentes gravemente enfermos consistia em aproximar deles um cão, cujo olhar teria a propriedade de afugentar os espíritos maus causadores da doença. Matar formigas era um insigne ato de virtude. Outra característica do aviltamento a que as religiões antigas reduziam o homem era a adoração de seres que lhes são inferiores. Daí a adoração pelos egípcios de bois, pássaros, crocodilos e até gatos. Daí também a adoração dos elefantes na Índia, e até de pulgas. Pior ainda do que isso era o culto prestado a seres inanimados. Certas religiões exerciam até uma ação malfazeja, pela imoralidade intrínseca de suas doutrinas. Se os deuses do Olimpo grego existissem, deveriam ser presos pela polícia, tal o número de incestos, de infanticídios, de parricídios e de roubos de que eram réus. A religião fenícia exigia sacrifícios humanos. Considerava ela que o homem deve oferecer à divindade aquilo que tem de mais precioso. Por isso os homens sacrificavam a sua virilidade aos deuses. Eles penetravam no templo em horas determinadas, enquanto a música executava ritmos fortes e repetidos. Próximo ao altar, certos indivíduos ligados à religião acompanhavam a música girando velozmente como piões, em torno de um ponto fixo. O ritmo da música alucinava e contagiava a multidão. Os homens do público que quisessem se sacrificar aproximavam-se então do altar, frenéticos pela dança coletiva, e com uma espada que ali se encontrava amputavam-se de modo a perder a virilidade. Banhados em sangue, saíam a correr pela cidade. E na primeira casa em que penetravam lhes era oferecido um traje feminino. Tais indivíduos passavam depois a residir junto do templo. Diariamente executavam eles a sua dança circular, e se flagelavam até escorrer sangue em abundância. As mulheres ofereciam a sua virgindade e suas promessas aos deuses. Tal oferecimento consistia em colocar-se no templo, à disposição de qualquer homem. Depois disso, decaíam elas para a mais infame das profissões, e percorriam o país praticando o seu abominável ofício, como holocausto à divindade. A religião greco-romana não era menos cruel nem menos depravada. Segundo o velho culto dos antepassados, professado pelos gregos e romanos, quando um chefe de família morria, estrangulavam-se alguns escravos sobre a sua sepultura, junto com alguns cavalos, para que ele fosse servido na outra vida. Os jogos de gladiadores, que assumiram em Roma terríveis proporções, eram também, na sua essência, solenidades religiosas. A velha religião romana considerava conveniente, além do sacrifício dos escravos, o sacrifício de algumas vidas para o apaziguamento dos mortos. Daí as lutas de gladiadores, nas quais o combatente derrotado era imolado em benefício da alma de algum morto. Posteriormente os combates passaram a ser diversões públicas, sem jamais perder o seu caráter religioso. Pelo que, em muitos combates, a solenidade começava pela matança de uma vítima inocente, aos pés do altar que se encontrava na arena. Um grande historiador chegou a dizer que os gregos e romanos, tão admiráveis por muitas de suas virtudes, perdiam completamente a moralidade quando se tratava de assuntos religiosos. A Grécia tinha inúmeros templos votados a Vênus, deusa do amor impuro. Entretanto, nenhum templo foi votado ao amor conjugal. A tal ponto a religião estava ligada à imoralidade, que, quando Atenas estava certa vez em grave perigo de ser conquistada pelo adversário, o governo da cidade recomendou seus destinos a Vênus. Tendo passado o perigo, mandou pintar no templo um desfile das mulheres mais infames da cidade, postas em atitude de prece, com a seguinte inscrição: "Estas, com as suas orações, salvaram Atenas". Não tardou que as mentalidades mais eminentes da Grécia e de Roma se insurgissem contra tal religião, reconhecendo-a como absurda e chegando à convicção de um só Deus e da falsidade dos deuses pagãos. Por ter pregado tais doutrinas às escondidas, Sócrates foi condenado à morte. E o grande Platão só sustentava a mesma convicção aos seus alunos sob impenetrável segredo, de medo que o mesmo lhe acontecesse. |