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Plinio Corrêa de Oliveira
Projeto
de Constituição angustia o País
1987 |
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Ao leitor - A repetição, no Brasil, de uma experiência malograda atrás
da cortina de ferro – a “vergonha de nosso tempo”
A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade – TFP tem por certo que, desde a
Independência em 1822, o País jamais atravessou crise tão carregada de
riscos quanto a presente. Ao fazer esta afirmação, a
entidade tem em vista também a gravíssima situação econômica e
financeira do País. Porém, não apenas esta, nem principalmente esta.
Pois a TFP dedica especial e merecida atenção à crise ideológica e
moral – com profundas repercussões religiosas e sócio-econômicas –
que de há tempos vem minando o Brasil, e atinge o seu clímax ao longo do
confuso e borrascoso processo de elaboração constitucional a que todos
os brasileiros vêm assistindo, entre perplexos e angustiados. Em 1986, o povo brasileiro foi convocado para
escolher, nas eleições do dia 15 de novembro, uma Assembléia Nacional
Constituinte, que funcionaria concomitantemente como Congresso nacional (Câmara
e Senado). No mesmo dia 15 de novembro, o eleitorado devia ainda escolher
os governadores de Estados e os componentes das Assembléias estaduais. Essa concomitância da eleição para vários
cargos públicos, alguns dos quais forçosamente atrairiam mais a atenção
do eleitorado (como é o caso da disputa para o cargo de governador),
aliada a vários outros fatores, entre os quais o desinteresse, muito
disseminado na população, pela classe política em geral (que uma
propaganda eleitoral sem idéias não teve obviamente condições de
eliminar), conduziu à formação de uma Assembléia Nacional Constituinte
carente de representatividade da Nação brasileira. Essa carência de autenticidade, em nada melhorou
o funcionamento da Constituinte, anômalo a diversos títulos, desde sua
instalação, até o momento presente, em que ela entra na fase decisiva
de seus trabalhos. Assim, a priori se poderia recear que o
texto constitucional que resultasse dessa Constituinte carente de
autenticidade não representaria os verdadeiros anseios do povo
brasileiro. Na verdade, a julgar pelo Projeto da Comissão de
Sistematização, da autoria do deputado Bernardo Cabral, em sua atual
redação (Substitutivo Cabral 2), como por todos os fatores ponderáveis
e imponderáveis que vêm a lume quotidianamente nos noticiários da
imprensa falada e escrita, é muito provável que, votada e promulgada a
Constituição, o Brasil inicie, bom grado, mau grado, uma nova etapa de
sua História, na qual a caminhada para a esquerda se tornará compulsória,
acelerada e queira Deus que não irreversível. Com efeito, uma análise minuciosa do Substitutivo
Cabral 2, mostra que, se aprovados diversos de seus dispositivos, resultará
gravemente golpeada a instituição cristã da família, bem como
profundamente danificadas, em muitas de suas características mais
essenciais, a propriedade privada e a livre iniciativa. * *
* Tanto esta última quanto aquela constituem condições
indispensáveis da sanidade de qualquer sistema social ou econômico. E, a
quem contestasse a presente afirmação, bastaria lembrar, simplesmente, a
trágica experiência comunista das nações detrás da cortina de
ferro. Ora, diversificam-se estas
como que ao infinito, na imensa área de 22.400.000 km2 da
chamada “União das Repúblicas Socialistas Soviéticas” (URSS), a
qual abrange condições geográficas e climatéricas que vão de um frio
implacável até um calor difícil de suportar. Ademais, nestas vastidões
se radicam povos com raças, religiões, hábitos e idiomas dos mais
diversos. E, como se sabe, tal diversidade de circunstâncias é fator
propício a todas as experiências. Pois o que não der resultado favorável
aqui ou lá, bem pode dá-lo acolá. Acresce que as autoridades comunistas dispuseram
constantemente, para a execução dessa experiência ideal, de todos os
meios de mando... excetuada a força moral. Tiveram elas ao seu alcance
todos os recursos de uma burocracia onipotente e onipresente, da força
persuasiva da totalidade dos estabelecimentos de ensino primários, secundários
e universitários, de todas as formas de propaganda escrita e falada, e, horresco
referens, de todos os meios da intimidação policialesca. Nesta matéria,
nada lhes faltou. As câmaras de tortura das repartições policiais, a
residência com trabalhos forçados nas geleiras infindas da Sibéria, a
detenção em prisões com sevícias, maus tratos, subnutrição e tudo
mais que possa danificar física e mentalmente o homem, tudo tem sido
utilizado pela tirania soviética contra um número incontável de desgraçados.
Ao que cumpre acrescentar, como ápice da crueldade, o internamento
compulsório em “hospitais psiquiátricos”, nos quais se leva a
crueldade a ponto de destroçar a saúde mental dos seus “enfermos”,
sem lhes danificar diretamente a saúde física: modo atroz de prolongar
pobres existências humanas, em circunstâncias nas quais a vida não é
senão um intérmino sofrer. Reunidas durante sete décadas, isto é,
quase um século, todas essas condições de mando, de persuasão, de
compressão e de terror, tudo puderam os autocratas vermelhos. Tudo,
sim, exceto obter a adesão da maioria da população, bem como produzir
prosperidade em qualquer região ou grupo étnico postos sob sua férula. Implantado na Rússia o regime comunista, a desolação,
o desestímulo, a miséria se estenderam como um manto sobre essa nação-cárcere
– a maior de toda a História – cujos habitantes são condenados a
uma reclusão inflexível por detrás da cortina de ferro, tornada
peculiarmente efetiva pelas rajadas de metralhadora contra os que
tentassem fugir. E pela aplicação de penalidades sinistras aos
familiares dos trânsfugas, que estes tivessem sido forçados a deixar atrás
de si, quando da despedida pungente e apressada, rumo à aventura e à
libertação. E, por isto, em documento da Congregação para a
Doutrina da Fé, assinado pelo Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito daquele
Dicastério romano, e aprovado explicitamente por João Paulo II, lê-se:
“Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar
as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários
ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos,
exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta
vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se
nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem.
Aqueles que, talvez por inconsciência, se tornam cúmplices de
semelhantes escravidões, traem os pobres que eles quereriam servir”
(Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”,
6-8-84, XI, 10 – Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis,
1984, 2ª ed., vol. 203, p. 39). Referindo-se, com essas palavras, às condições
de escravidão sócio-econômica existentes no inferno soviético, o já
hoje mundialmente célebre documento não abriu exceção, em afirmação
tão genérica, para recanto algum em que os comunistas tivessem
conseguido a adesão de uma minoria consciente e informada, nem o
florescimento de um pouco de prosperidade, ou pelo menos de normalidade
econômica. Às terríveis incriminações seguiu-se muito ódio
e ranger de dentes, não porém qualquer refutação confiável. Contudo, quanto teria sido fácil demonstrar ao
mundo o infundado dessa inculpação, convidando o governo do Kremlin ao
Cardeal Ratzinger e outros egrégios integrantes da Congregação para a
Doutrina da Fé para visitar a Rússia e as nações satélites. Esses
ilustres Prelados poder-se-iam fazer acompanhar por uma delegação de
insuspeitas notabilidades ocidentais, a fim de tomarem, todos,
conhecimento direto de regiões rurais em que a agricultura e a pecuária
florescentes estariam a dar subsistência a populações bem nutridas e
alegres, e de cidades prósperas, nas quais – a par de parques
industriais em ascensão, bem como de bairros operários encantadoramente
urbanizados e cobertos de residências seguras, saudáveis e cômodas –
estivesse fixada espontaneamente uma população dotada de todos os
recursos higiênicos, escolares, recreativos e outros! Que vitória para o comunismo internacional se, de
regresso da Rússia, os Prelados da Congregação para a Doutrina da Fé,
ao mesmo tempo assessorados e controlados por ditas autoridades acidentais
insuspeitas, tivessem que reconhecer a magnificência de tudo quanto
haveriam visto. Em conferência ilustrada por slides, filmes e
aparelhos de som de toda ordem, e na presença do Sacro Colégio, de todo
o corpo diplomático acreditado junto ao Vaticano, e um número incontável
de repórteres da imprensa escrita e falada da Itália e do Mundo,
proclamariam eles assim, lealmente, o infundado de suas denúncias. Que
fonte de entusiasmo para os Frei Boff, os Frei Beto, e quantos congêneres
vicejam nos meios católicos de quase todo o mundo! Porém, esse desafio, nenhuma autoridade soviética
o fez. E bem sabem elas, bem sabe o mundo inteiro por quê... Pelo contrário, presenciamos o mea culpa
do silêncio contrafeito e vexado das autoridades soviéticas, face ao
documento da Santa Sé. Confirmando involuntariamente esse documento,
partiu, não muito depois, do próprio secretário-geral do PC russo,
outro implícito mas espetacular mea culpa. Foi o lançamento –
por ele feito – da farfalhante “abertura” (glasnost), em que,
na qualidade de o mais credenciado expoente do aparelhamento político da
Rússia soviética, o “camarada” Gorbatchev denunciou a gravíssima
ineficácia, para não dizer contraproducência, do sistema sócio-econômico
até agora aplicado na Rússia, e deu início ao descongelamento do regime
marxista de capitalismo de Estado. * *
* Pois, no preciso momento em que, às repercussões
ainda vivas do documento da Congregação para a Doutrina da Fé, se
juntam as revelações espetaculares do camarada presidente do Soviete
supremo, é muito de recear que, com base no Projeto de Constituição
atualmente em debate, o Brasil seja arrastado a um regime sócio-econômico
comunistizante, o qual, se não desmantela a ordem de coisas até
aqui vigente – inegavelmente próspera – nosso País chegue a
apresentar um aspecto impressionantemente parecido ao da Rússia soviética. É para este desfecho sinistro que o Brasil da
nova Constituição ficará posto em marcha acelerada e irreversível, se
afinal o sobressalto patriótico e salutar dos srs. Constituintes e de
nossa opinião pública não frear com urgência o curso das coisas na
Assembléia de que aqueles participam. * *
* Com efeito, se de um lado o Substitutivo do
Projeto de Constituição apresentado pelo relator da Comissão de
Sistematização não for reformado a fundo pela clarividência e prudência
dos srs. Constituintes, a família brasileira terá dado um passo a mais
rumo ao estado de inteira aniquilação em que a pôs a Constituição
soviética. A Reforma Agrária socialista e confiscatória, já
hoje vigente em virtude da aplicação cumulativa do Estatuto da Terra e
do PNRA, se agravará do modo mais considerável. Está na ordem das coisas que a introdução da
Reforma Agrária ateie o incêndio da Reforma Urbana, representado pelas
invasões de terrenos urbanos, de que já se fez um vigoroso e ameaçador
ensaio nos primeiros meses do corrente ano, em vários pontos do País.
Seguir-se-á inevitavelmente o intento de Reforma da Empresa industrial ou
comercial, em favor da qual reivindicações já se fazem ouvir cá e acolá
(cfr. Parte IV, Caps. III, IV e V). Ademais, uma gigantesca Reforma da Saúde porá
nas mãos do Estado totalitário brasileiro toda a medicina no Brasil[1]. Além de tudo quanto vem escrevendo e difundindo
pelo Brasil afora, desde 1960, contra estas quatro injustas e catastróficas
reformas[2],
a TFP lançou a público, em agosto último, uma revelação própria a
influenciar a fundo os debates sobre a Reforma Agrária a serem travados
no Plenário da Constituinte: trata-se do livro Reforma Agrária:
“terra prometida”, favela rural ou “kolkhozes”? – Mistério que
a TFP desvenda, de autoria do sócio da TFP, o advogado Atílio
Guilherme Faoro (Editora Vera Cruz, São Paulo, 1987, 198 pp.) o qual
mostra que a Reforma Agrária, longe de beneficiar o trabalhador rural,
introduz no campo uma agricultura favelizadora e estatalizada, rumo à
autogestão, consoante o “ideal” transcomunista que a Constituição
soviética proclama como meta do regime de capitalismo de Estado[3]. * *
* Com o livro que o leitor tem em mãos, a TFP visa
apontar aos srs. Constituintes, sobrecarregados de outros estudos
atinentes ao nosso caudaloso Projeto de Constituição, os principais
pontos em que este último fere os princípios da civilização cristã. Desse dever, a entidade se desempenha com
franqueza inteira e patriótica angústia. Pois, implantadas a Reforma Agrária,
a Reforma Urbana e a Reforma da Saúde, será destruída em nosso País a
liberdade, como a ensina o Magistério tradicional da Igreja, e arrasada a
prosperidade nacional, hoje tão pujante, apesar de aleivosas detrações
em contrário.[4] * *
* Para a cabal compreensão da proposta que o autor
teve em vista apresentar, ao empreender a redação deste livro, importa
demonstrar – como se apontou de início – a carência de autenticidade
da Constituinte, quer em sua origem, nas eleições de 15 de novembro,
quer em sua instalação e funcionamento, a partir de 1º de
fevereiro do corrente ano. É o objeto, respectivamente, das Partes II e
III, do presente trabalho. O problema suscitado pela inautenticidade da
Constituinte conduziu naturalmente a um estudo prévio sobre a questão da
representatividade do regime democrático, que constitui o tema da Parte
I. A Parte IV é consagrada à análise do Projeto de
Constituição, em sua última redação (Substitutivo Cabral 2), ao
entrar este livro no prelo. * *
* Esta introdução foi redigida a 16 de julho,
festa de Nossa Senhora do Carmo, à qual tantos vínculos de piedade e de
tradição unem a TFP. Queira Ela tornar eficazes as presentes palavras,
para que os srs. Constituintes, seguidos pelo clamor majoritário dos
brasileiros, freiem a marcha de tantos males, e ainda cheguem a deter, nos
bordos do abismo, a perigosa caminhada do Brasil. [1] A propósito deste último tema, a Comissão de Estudos Médicos desta Sociedade vem publicando em diversos pontos do País a Carta aberta da TFP alertando os srs. Constituintes sobre a estatização da Medicina. O documento, que denuncia os dispositivos estatizantes contidos no Projeto elaborado pela Comissão de Sistematização, vem obtendo a mais viva repercussão nos meios médicos do País. [2] Quanto à nocividade da Reforma Agrária e seu caráter nitidamente de extrema-esquerda, cfr. os seguintes livros divulgados pela TFP: 1º) Reforma Agrária – Questão de Consciência, 1960, 520 pp., 4 edições, 30 mil exemplares; 2º) Declaração do Morro Alto, 1964, 32 pp., 22,5 mil exemplares; 3º) Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária?, 1981, 360 pp., 4 edições, 29 mil exemplares; 4º) A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, 1985, 174 pp., 2 edições, 16 mil exemplares; 5º) No Brasil: A Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade – A TFP informa, analisa, alerta, 1986, 72 pp., 4 edições, 55 mil exemplares. Na feitura desses livros, o autor deste trabalho contou com a colaboração, para o primeiro e o segundo, de D. Geraldo de Proença Sigaud, então Arcebispo de Diamantina, de D. Antônio de Castro Mayer, então bispo de Campos, e do economista Luiz Mendonça de Freitas; e para o terceiro e o quarto, com uma parte econômica do Master of Science em Economia Agrária, Prof. Carlos Patrício del Campo. Esses livros foram editados pela Editora Vera Cruz, Rua Dr. Martinico Prado 246, CEP 01224, São Paulo, telefone (011) 221-8755. [3] O livro do sr. Atílio Guilherme Faoro tem encontrado muito boa acolhida nos meios rurais, como aliás na generalidade do povo brasileiro. Pois nas praças e logradouros públicos em que vem sendo realizada a campanha de difusão da obra, foi vendido elevado número de exemplares, e já se encontra no prelo uma segunda edição. E tem recebido aplauso quase geral dos populares – o que bem demonstra o profundo enraizamento da propriedade privada e da livre iniciativa na opinião pública brasileira. “Quase geral”, acentue-se; pois não têm faltado, aqui e acolá, insultos e ameaças de pequenas minorias bem organizadas e carregadas de ódio, cuja inspiração ideológica não é difícil discernir. Seja dito de passagem que o óbvio intuito de tais minorias consiste em provocar, da parte dos tefepistas, uma reação proporcionada que redundasse em desordem e quiçá peleja. Sobreviria assim a interferência policial e o encerramento da campanha. Entretanto, o digno e impassível desdém dos tefepistas vem frustando invariavelmente essa tática. [4] A esse respeito, o Prof. Carlos Patrício del Campo publicou nos Estados Unidos a obra Is Brazil Sliding Toward the Extreme Left? – Notes on the Land Reform Program in South America’s Largest and Most Populous Country (Edição da TFP norte-americana, Pleasantville, NY, 1986, 163 pp.). Esse livro – que constitui, em termo de rigorosa objetividade científica, luminosa apologia de nosso País – desfaz documentadamente diversos mitos, disseminados pelas correntes de esquerda em todo o mundo, sobre a fome e a miséria negra em que estariam afundadas grossas camadas da população brasileira. |