Capítulo XI
Prestar atenção é elemento da ação e da calma
Recolhimento é recolher, e recolher é juntar coisas, reconduzindo-as para o lugar de onde não deveriam ter saído. (Plinio Corrêa de Oliveira)84 |
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Neste capítulo Certa espiritualidade deturpada tornou o recolhimento uma pseudo-virtude desprezível. Para muitos que têm essa espiritualidade, o homem recolhido é o que está sorrindo com uma expressão beata, junto a uma imagem piedosa. Mas para Dr. Plinio, o recolhimento é a qualidade de alma pela qual a atenção do homem é universal, no conjunto das coisas que ele analisa e se fixa nelas na devida proporção, segundo mereçam. Para sugerir uma imagem verdadeira, ele não recua diante da perspectiva de buscar aspectos meramente humanos dessa qualidade em personalidades não tipicamente religiosas, como Bismarck, Adenauer e Churchill. Para ele, recolhimento vem de recolher, e recolher é juntar coisas que estão esparsas.
Da esq. à dir. Bismarck, Adenauer e Churchill Que é o recolhimento? O recolhimento é a qualidade da alma pela qual a atenção do homem, no conjunto das coisas que ele analisa, se volta e se fixa na devida proporção, segundo elas mereçam. É próprio do recolhimento perfeito, por exemplo, fazer com que o indivíduo preste mais atenção nas coisas sublimes do que nas banais; mais atenção na sua tarefa do que na dos outros; mais atenção no grave do que no agradável. Dar mais atenção a uma coisa do que a outra é um seletivo da atenção, é uma excelência da alma pela qual se é capaz de dar valor às coisas de acordo com sua ordem hierárquica e arquitetônica. O recolhimento é um elemento da seriedade, não é coisa distinta dela. É um seletivo da atenção e do esforço da inteligência, portanto um elemento integrante da seriedade. Outro aspecto do recolhimento consiste em, ao tratar das coisas inferiores, procurar relacioná-las com as superiores e ver as superiores nas inferiores. Dissipação, vício oposto ao recolhimento Recolher é juntar coisas que estão esparsas. Mais ainda, reconduzi-las para o lugar de onde não deveriam ter saído. Isto é propriamente recolher. Acontece que, por defeito da mente humana, um espírito não educado, não formado nessa virtude, tem o vício da dissipação, que é o oposto do recolhimento. Que é dissipação? Dissipar consiste em as coisas se espraiarem para fora do lugar que lhes é próprio. Dissipar o patrimônio, por exemplo, quer dizer que se joga o patrimônio pessoal para quem não é seu dono, colocando-o em mãos indevidas e perdendo-o para si mesmo. Poder-se-ia dizer de uma família que ela se dissipou ao longo dos séculos, ou seja, se desfez e perdeu o nexo com sua unidade primeira. Posso dizer que minha atenção é dissipada quando, por um mero jogo de curiosidade, ela não segue a linha do recolhimento e eu divago entre uma coisa e outra sem um propósito determinado. Um exemplo de raciocínio dissipado: eu vejo este candelabro de prata, e meu pensamento salta para prata; a prata me lembra as minas de Potosi; as minas de Potosi me lembram um sujeito que eu conheci, e que morava nessas minas; esse sujeito gostava de gravata azul. E assim, em poucos instantes, eu teria passado a pensar em gravata azul. É o tipo de pensamento dissipado, sem nenhum rumo, que perambula estupidamente de coisa em coisa. Recolher é tomar a coisa que se dissipou e prendê-la. Neste caso, exercer sobre nossa atenção naturalmente dissipada uma função de controle e recolhimento. A ideia que está no fundo é que, em virtude do pecado original, a mente humana é naturalmente dissipada. A virtude do recolhimento a recolhe e ordena no rumo que deve tomar. O espírito recolhido hierarquiza sua atenção A pessoa de espírito recolhido não é quem só presta atenção numa coisa. Ela presta atenção em todas, mas coloca-as na devida hierarquia. Vê tudo e nota tudo, mas conferindo a cada coisa seu grau de importância. É uma qualidade varonil e altamente simpática. À força de recolhimento, superam-se certos conhecimentos, pois já sabemos deles o que é suficiente e podemos concentrar nossa atenção em outros. Acaba sendo que, a partir de certa idade, o homem já dá por visto tudo o que é secundário e fixa sua atenção quase que exclusivamente em algumas pistas principais. O resto ele vê, mas como se não visse. Andando pela rua, dificilmente prestarei atenção numa formiga, por exemplo, pois sobre formiga eu já sei o que me compete saber. Ela já está vista e analisada, e para mim está superada, mas houve tempo em que prestei atenção nela e nas mil coisas que cito em Ambientes, Costumes, Civilizações.85 Se sou capaz de citar, é porque prestei atenção nelas. Tenho horror a um tipo de homens que são mutiladores da realidade, da mesma forma que os pulmões têm horror ao ar confinado. Nossa cabeça foi feita para o grande ar da realidade total, com todos os seus sopros. O recolhimento em pessoas com vocações especiais Alguns santos tiveram a vocação especial de meditar exclusivamente sobre as coisas do Céu. Há um santo que entrou no fundo de um poço para passar a vida inteira rezando lá. É uma vocação especial, não é a vocação comum de todos os homens. O que caracteriza as vocações muito especiais é que elas são sublimes nos casos individuais, mas conduziriam à insânia se fossem tendências coletivas. Se a Igreja fosse promover uma civilização em que todos os homens entrassem em poços para meditar, isso causaria horror. Causaria horror também se todos tivessem a comunidade de bens própria às Ordens Religiosas. Por quê? Porque são exemplos excepcionais, e a transformação da mais sublime das exceções em algo de comum resulta no monstruoso. Exemplos de recolhimento: Bismarck,86 Adenauer,87 Churchill88 Certa espiritualidade deturpada tornou o recolhimento uma pseudo-virtude abjeta, a tal ponto que, para procurarmos a imagem verdadeira, temos que buscá-la em fisionomias de personagens não religiosos. Bismarck, um revolucionário horroroso, era altamente recolhido. Adenauer era recolhido, realizou sua perfeição à força de recolhimento. Seu olhão, de tipo mongoloide, arredondou-se de tanto ele ser recolhido. Churchill, para mim, é a obra prima do recolhimento laico, um espírito muito mais universal do que Bismarck e Adenauer. Era homem que, passando por uma rua, poderia se divertir com o salto do sapato de uma velha, depois entreter-se com um gato, depois achar interessante tal pormenor de um carregador das docas. A vida inteira ia passando pela cabeça de Churchill enquanto ele meditava. Isso para mim é o nec plus ultra do recolhimento. Espírito arquitetônico89 em alto grau.
O paradigma medieval Nunca houve tanta atividade, tanta luta, tanta aventura como quando houve os calmos remansos90 da Idade Média. Nas cidades, as ruas eram repletas, borbulhando de atividade. Os andares térreos das casas tinham comércios e seus anúncios. Gente gritando para vender mercadorias, falando alto, discutindo. Ruas movimentadíssimas, mas nas casas de um lado e de outro, logo na primeira sala se estava psicologicamente a mil léguas da rua. Não era como a casa de hoje, com um janelão que dá para fora, e no quarto de dormir a pessoa se sente na rua. As casas eram de paredes grossas - o que exerce um efeito psicológico tremendo - com janelas de peitoril larguíssimo, tendo banquinho de um lado e de outro. Creio que era feito para se colocar almofadas e ficarem sentados, de modo a aproveitar a luz que entra para ler um livrão. Ainda no peitoril da janela, um jarrozinho de flor, umas tulipas. E a rua, a léguas... Os vidros eram aqueles fundos de garrafa, de maneira tal que o ambiente da casa já ressumava intimidade a poucos centímetros da rua, onde estava havendo toda aquela barulheira. Depois, noites calmas e muito recolhidas. Os bandidos prestavam um serviço: todos tinham medo de sair, por falta de iluminação e por causa deles. Fora rugia o perigo, mas dentro as casas tinham portas com trancas aferrolhadas. A pessoa ouve lá fora o correr dos bandidos, e a guarda que vai correndo atrás. Mas dentro sente-se aconchegado, com uma carapuça e bebendo um chá de losna. As pantufas ficam junto à lareira, que está acesa e as aquece. Um lê a história dos antepassados, o que era comum mesmo nas famílias plebeias. Outro lê o Evangelho e a vida dos Santos. Aquela sensação de tranquilidade, o silêncio da noite e o guarda que canta canções religiosas para avisar a todos que está perto. Quando era criança, aprendi uma cantiga alemã assim: “Ouvi, senhor, e permiti que vos cante. Nosso relógio deu doze horas. Meia noite. Doze apóstolos no mundo. Ó homem, quanta vigilância isto representa para teu coração”. Até dez minutos depois, ouvem-se os últimos ecos da canção. Tudo isto, no isolamento da casa onde mora muita gente, todos intimamente imbricados pela solidariedade familiar. Uma atmosfera de aconchego, calor, placidez, que é propriamente o “remanso” dentro da vida familiar. Mas um “remanso” que é de vida, não de morte.
O “remanso” das cidades e castelos medievais O aconchego da cidade é outro fator de “remanso”. Era cercada de muros, com grandes portas que se trancavam. Havia sentinelas, e o inimigo ficava do lado de fora. Num grande campo, o castelo também tinha o seu “remanso”. Junto a ele, como filhas medrosas em torno da mãe, as cabanas dos agricultores que durante o dia trabalham. Além do trabalho havia a guerra, tão frequente na Idade Média, e se havia ataque eles iam correndo para dentro do castelo. Nesse conjunto, o “remanso” fica delicioso, uma coisa cheia de calor humano e de aconchego. Não é feito para a vida inteira, mas é uma alternativa à luta, ao trabalho e à aventura. O contraste é que eles empreendiam também viagens enormes, cruzadas e aventuras de toda ordem. Ação, recolhimento e distância psíquica Nas ocasiões de remanso a sensação de perigo se afasta, o homem se distende inteiro, e nessa distensão as coisas retomam sua verdadeira hierarquia. Por exemplo, um comerciante passou o dia inteiro no seu comércio. À noite as atividades comerciais estão encerradas, e em casa ele penetra num ambiente tão diferente de sua casa comercial, que fica como que forçado a não pensar mais em negócios. O comércio cai, a hierarquia de valores se restabelece e ele é capaz de manter sua distância psíquica. Não tem distância psíquica quem não tem recolhimento, quem não tem “remanso”. Tudo isto é muito bonito e atraente, mostrando um equilíbrio, uma ordem, uma afinidade com a natureza humana. O recolhimento não é o contrário da ação, mas sua fonte. As grandes ações do homem se resolvem no recolhimento. Por outro lado, não é um convite à preguiça, mas restaura as forças para continuar a ação. A galinha é um símbolo de falso recolhimento. Quando se abre a porta do galinheiro e se entra, a galinha sai correndo estupidamente, na primeira direção que está diante do bico dela, e se esconde num lugar que não esconde nada. É a imagem mais frisante da falta idiota de recolhimento.91 Notas: 84. 29-4-1967. 85. “Ambientes, Costumes, Civilizações”: célebre seção publicada por Dr. Plinio no mensário “Catolicismo”. 86. Príncipe Otto von Bismarck, homem de Estado prussiano (1815-1898). 87. Konrad Adenauer, chanceler da Alemanha Ocidental (1876-1967). 88. Sir Winston Churchill, homem de estado inglês, um dos organizadores da vitória sobre Hitler na Segunda Guerra Mundial (1874-1965). 89. Arquitetônico: formando um sentido superior, uma como que arquitetura. 90. A respeito do conceito de “remanso”, vide capítulo 6, “A distância psíquica”. 91. 29-4-67. |