“Catolicismo“, N° 471 – Março de 1990, Ano XL, pag. 4-15 [*]
I – Descontentamento, incêndio que desagrega o mundo soviético
As reformas perestroikianas na Rússia soviética, os movimentos políticos centrífugos que há dias quase levaram à guerra civil o Azerbaidjão e os respectivos enclaves armênios, agitam também a Lituânia, a Letônia e a Estônia, às margens do Báltico, como, mais ao sul, a Polônia, a Alemanha Oriental e, ainda, a Chescoslováquia, a Hungria, a Romênia, a Bulgária e a Yugoslávia. Acrescidos da espetacular derrubada do muro de Berlim e da cortina de ferro, esses abalos constituem, em seu conjunto, um movimento ciclópico como maior não se viu desde as duas conflagrações mundiais, ou talvez as guerras de Napoleão.
Toda esta contemporânea movimentação do mapa europeu se reveste, aqui e acolá, de circunstâncias e significados diversos. Mas a todos estes sobrepaira um significado genérico, que os engloba e a todos penetra como um grande impulso comum: é o Descontentamento.
– Descontentamento com “D” maiúsculo
Escrevemos esta última palavra com “D” maiúsculo, porque é um descontentamento para o qual convergem todos os descontentamentos regionais e nacionais, os econômicos e os culturais, por muitas e muitas décadas acumulados no mundo soviético, sob a forma de apatia indolente e trágica, de quem não concorda com nada, mas está impedido fisicamente de falar, de se mover, de se levantar, em suma, de externar um desacordo eficaz. Era o descontentamento total, mas por assim dizer mudo e paralítico, de cada indivíduo na sua casa, no seu tugúrio ou na sua choça, onde a família não existe mais, tendo sido tantas vezes substituído o casamento pelo concubinato. Descontentamento porque os filhos foram subtraídos ao “lar” e entregues compulsoriamente ao Estado, só deste recebendo a totalidade da educação. Descontentamento nos locais de trabalho, em que a preguiça, a inação e o tédio invadiram boa parte do horário, e os salários medíocres chegam apenas para a compra de gêneros e artigos insuficientes e de má qualidade, produtos típicos da indústria estatalizada por força do regime de capitalismo de Estado. Ao longo das filas formadas junto aos estabelecimentos comerciais, em cujas prateleiras quase vazias se deixa ver desavergonhadamente a miséria, o que se comenta aos sussurros é a completa carência qualitativa e quantitativa de tudo.
É o conjunto destes males que penaliza ainda mais do que a mera consideração de cada um em particular. Em uma palavra, se contra este ou aquele aspecto da realidade soviética se enunciam queixas, contra o conjunto dessa realidade, os fatos mais recentes tornam evidente que lavra um incêndio de verdadeiro furor. Furor que, pelo próprio fato de atingir o conjunto, atinge o regime, e põe em fogo todas as capacidades de indignação da pessoa humana: um descontentamento global contra o regime comunista, contra o capitalismo de Estado, contra o ateísmo despótico e policialesco, contra tudo, enfim, que resulta da ideologia marxista, e da respectiva aplicação a todos os países agora em convulsão.
É bem o caso de se falar, pois, em Descontentamento. Provavelmente o mais abrangente e total descontentamento que a História conheça.
– Medrosas e mal-humoradas concessões de Moscou
Vê-se claramente que é para evitar a transformação geral desses descontentamentos em revoluções e guerras civis, que Moscou vem fazendo lá e acolá medrosas e mal-humoradas concessões.
Mas os fatos também deixam notar que o alcance de tais concessões é dos mais duvidosos. Pois, se parecem aquietar um pouco os ânimos, entretanto dão aos Descontentes uma redobrada consciência de sua força, bem como da fraqueza do adversário moscovita, o qual ainda ontem lhes parecia onipotente. De onde decorre que os apaziguamentos de hoje bem podem estar sendo aproveitados pelos Descontentes para a aglutinação de crescentes massas de adeptos, e a preparação destas para grandes movimentos reivindicatórios, a estourarem, já amanhã quiçá, ainda mais reivindicatórios e prementes do que ontem.
Assim, de passo em passo, poderá desenrolar-se o característico processo de ascensão dos movimentos insurrecionais que caminham para o êxito, o qual se desenvolve contemporaneamente com o declínio dos establishments de governos obsoletos e putrefatos.
– O maior brado de indignação da História
Se se desenrolarem desse modo os acontecimentos no mundo soviético, sem encontrarem em seu curso obstáculos de maior monta, o observador político não precisa ser muito penetrante para perceber o ponto terminal a que chegará. Ou seja, a derrubada do poder soviético em todo o imenso império até há pouco cercado pela cortina de ferro, e a exalação, do fundo das ruínas que assim se amontoarem, de um só, de um imenso, de um tonitruante brado de indignação dos povos escravizados e opressos.
II – Interpelação aos responsáveis diretos por desgraça tão imensa: os supremos dirigentes da Rússia soviética e das nações cativas
Esse brado se dirigirá, antes de tudo, contra os responsáveis diretos por tanta dor acumulada ao longo de tanto tempo, em tão imensas vastidões, sobre uma tão impressionante massa de vítimas.
E, a menos que a lógica tenha desertado totalmente dos acontecimentos humanos (deserção trágica, que a História tem registrado, mais de uma vez, nas épocas de completa decadência, como a deste fim de século e de milênio), as vítimas de tantas calamidades unirão seu ulular para exigir do mundo um grande ato de justiça para com os responsáveis.
Tais responsáveis foram, por excelência, os dirigentes máximos do Partido Comunista russo que, na escala de poderes da Rússia soviética, sempre exerceram a mais alta autoridade, superando até à do governo comunista. E, pari passu, os chefes de PCs e de governos das nações cativas.
Pois eles não podiam ignorar a desgraça e a miséria sem nome em que a doutrina e o regime comunistas estavam afundando as massas. E, contudo, não titubearam em difundir essa doutrina e impor esse sistema.
III – Interpelação aos ingênuos, aos moles, aos colaboracionistas, voluntários ou não, do comunismo, no Ocidente
Mas – sempre a conjecturar nas trilhas da lógica – não é só contra eles que tantos homens, famílias, etnias e nações pedirão justiça.
– Historiadores otimistas e superficiais amorteceram a reação dos povos livres contra as tramas do comunismo internacional
Em um segundo movimento, eles se dirigirão aos múltiplos historiadores ocidentais que, durante esse largo período de dominação soviética, narraram de modo otimista e superficial o que se passou no mundo comunista, e lhes perguntarão por que, em suas obras de síntese, lidas e festejadas por certa mídia no mundo inteiro, se contentaram em dizer tão pouca coisa sobre desgraças tão imensas. O que teve por efeito amortecer a justa e necessária reação dos povos livres contra a infiltração e as tramas do comunismo internacional.
– Os homens públicos do Ocidente pouco fizeram para libertar as vítimas da escravidão soviética
E, por fim, os mesmos Descontentes se voltarão para os homens públicos dos países ricos do Ocidente e lhes perguntarão por que fizeram tão pouco para libertar da noite espessa e infinda da escravidão soviética esse número incontável de vítimas.
Bem sabemos que, nesta hora, tais homens públicos, sempre sorridentes, bem dormidos, bem lavados e bem nutridos, lhes responderão jovialmente: “Mas como! A nós, logo a nós que enviamos a vossos governos tanto dinheiro, que lhes franqueamos tantos créditos, que aceitamos como boas tantas mercadorias avariadas fornecidas por vossas péssimas fábricas, e tudo isso para atenuar um pouco vossa fome, logo a nós… é que dirigis esta censura insensata!” E acrescentarão: “Ide à ONU; ide à UNESCO, e a tantas outras instituições ciosas dos direitos humanos, e vede quantas proclamações sonoras e finamente cuidadas, do ponto de vista literário, distribuímos em todo o Ocidente, protestando contra a situação em que vos acháveis… Nada disso vos bastou?”
Se esses amáveis potentados do Ocidente imaginam estancar assim as objeções de que irremediavelmente serão alvo, enganam-se.
– As subvenções do Ocidente prolongaram a ação dos carrascos
Pois a realidade não é tão simples, em sua configuração concreta e palpável, nem tão fácil de ser entendida e descrita, como eles aparentemente imaginam. Pois as massas levedadas pelo Descontentamento lhes responderão forçosamente: “Imaginai milhares, milhões de indivíduos, sujeitos simultaneamente a tormentos, em salas tão amplas quanto países. Este era o quadro do mundo de além cortina de ferro. As subvenções enviadas pelo Ocidente foram entregues, o mais das vezes, não diretamente aos pobres supliciados, mas aos carrascos, a quem tocava governar estas salas de tortura de dimensões nacionais. Ou seja, aos governos que, sob a feroz direção de Moscou, mantinham sob o jugo da servidão as nações `soberanas’ e `aliadas’ de além cortina de ferro, como a Polônia, a Alemanha Oriental, a Checoslováquia, a Hungria e tantas outras, e ainda as Repúblicas Socialistas Soviéticas `unidas’ a Moscou e outras circunscrições territoriais mais clara e oficialmente dependentes dos déspotas do Kremlin. Esses governos-carrascos é que, o mais das vezes, recebiam as benesses do Ocidente”.
Mas a esta altura do tema é que aparecem as dúvidas que os Descontentes não deixarão de agitar. E, a essas dúvidas, não será nada fácil dar resposta.
Com efeito, não é negável que um pouco desses recursos recebidos pelos governos títeres de além cortina de ferro acabaram por ir ter às respectivas vítimas, aliviando-lhes algum tanto o infortúnio, ou mesmo evitando que algumas tantas dentre elas morressem de fome. Porém, das próprias fileiras dos Descontentes, ainda antes da atual convulsão, partiram a tal respeito objeções embaraçosas.
Assim – já ponderavam os mais sofridos e indignados dentre estes – na própria medida em que o Ocidente dava aos carrascos recursos que abrandassem as carências das vítimas, lhes proporcionavam meios para atenuar a indignação geral, e prolongar desse modo a vigência da dominação dos mesmos carrascos.
Neste caso, não teria sido mais útil aos povos subjugados que do Ocidente não lhes viessem esses recursos, de sorte que o dia da explosão do Descontentamento chegasse logo, e com ele a libertação final e completa dos desditosos subjugados?
– Cooperadores suicidas para a difusão do comunismo
Confessamos que, a nós, da TFP, a pergunta nos deixa perplexos… tanto mais que nunca ouvimos dizer que a concessão de tais recursos fosse condicionada, da parte dos benfeitores ocidentais, ao direito de exercerem severa vigilância para impedir que os ditos recursos fossem utilizados para a compra ou o fabrico de armamentos e munições que mantivessem sob jugo os povos cativos. Ou que, no caso de uma guerra contra o Ocidente, fossem utilizados contra as mesmas nações ocidentais doadoras.
Consideremos as coisas até o fundo. Se Moscou dispôs de ouro para minar, com suas redes de propagandistas e de conspiradores, todas as nações da Terra, é bem certo que, nas faraônicas despesas utilizadas para tal, não entraram parcelas consideráveis das quantias fornecidas, a este ou aquele título, pelos doadores ocidentais?
Neste último caso, a par de benfeitores das vítimas do comunismo, não terão sido eles cúmplices involuntários – concedamo-lo – dos verdugos e, ao mesmo tempo, cooperadores suicidas de um ataque contra o próprio Ocidente, além de parceiros da difusão do erro comunista em todas as nações?
– A cruzada que não houve
Não sabemos se essas nações cativas chegarão algum dia a ser realmente livres, antes de sobrevirem as catástrofes punitivas e saneadoras previstas por Nossa Senhora nas aparições de Fátima (cfr. Antonio Augusto Borelli Machado, As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã Lúcia, Vera Cruz, São Paulo, 26a. ed., 1989, pp. 44-46).
O que sabemos é que, quando algum dia essas nações forem livres, o Descontentamento cobrará estritas contas, por tudo isso, aos “benfeitores” das nações cativas. E estes serão obrigados, para a salvação de seu renome, a revolverem muitos arquivos e tirarem da poeira muitas contas… se é que não preferirão trancar tudo isto, e fazer com que o silêncio baixe mais uma vez sobre tais questões.
Na verdade, as belas declarações de ONUs, UNESCOs e congêneres, as deixaram indiferentes, como deixariam indiferentes as vítimas, os sorrisos polidos, de saudação e solidariedade, partidos de pessoas que assistissem de braços cruzados aos tormentos que elas estivessem sofrendo.
“Nós precisávamos de uma cruzada que nos libertasse – exclamarão elas – e vós nos enviastes tão-só um pouco de pão que nos ajudasse a ir aguentando por tempo indefinido o nosso cativeiro. Ignoráveis porventura que, para o cativo, a grande solução não é apenas o pão, mas sim, e sobretudo, a liberdade?”
Talvez haja argumentos válidos a opor a essas queixas dos cativos. Convenhamos, entretanto, que não será fácil encontrá-los.
– Uma vitória dos “duros” só agravaria a exasperação e os queixumes
A imprensa de todo o mundo ocidental não tem deixado de notar que a vitória desse gigantesco Descontentamento ainda não é indiscutível. Pois ninguém pode garantir que o esmagamento da rebelião, realizado com tanto êxito e presteza na Praça da Paz Celestial (!) em Pequim, e repetido nestes últimos dias, com êxito ao menos aparente, na cidade de Baku, capital do Azerbaidjão, não possa reeditar-se ainda várias vezes em outros focos do Descontentamento. Admitamos, por fim, que esses sucessivos esmagamentos cheguem a impor ao Descontentamento uma caricata máscara de paz. Da paz cadavérica dos que já não possuem vida.
Um tal desfecho produziria, por certo, efeitos múltiplos globais, a maior parte dos quais ainda não são previsíveis neste momento. Contudo, do ponto de vista do Descontentamento, ele só agravaria a exasperação e os queixumes, principalmente no tocante ao Ocidente. Pois, no fundo de seus calabouços, os Descontentes acrescentariam ainda algumas imprecações à já vasta lista das que até aqui acumularam contra nós, do Ocidente.
Eles alegarão forçosamente contra o Ocidente: “Até 1989-1990, ainda não tínhamos enchido os ares do mundo inteiro com nossos bramidos. Em 1989-1990, tivemos ensejo de o fazer. Desde então, não restou nem o mais tênue véu para servir de paravento entre vós e nós. Vistes tudo, ouvistes tudo e, não obstante, ao que de insuficiente fazíeis em nosso favor, pouco acrescentastes”.
Mais uma vez, ser-nos-á difícil e embaraçoso responder.
IV – Interpelação aos dirigentes dos diversos PCs disseminados pelo mundo
Contudo, não nos iludamos pensando que, em matéria de increpações e de chamados às contas, só se pode encarar como possível a polêmica travada, de um lado, entre as vítimas que bradam através das fendas do imenso calabouço soviético, que por todas as partes vai rachando, e de outro, seus algozes; ou, então, entre as mesmas vítimas e os sorridentes e parcimoniosos benfeitores que, em favor delas, se manifestarem de quando em vez no Ocidente, ao longo das novas etapas de servidão, que só Deus sabe quando vão terminar. Tudo isso depende de como transcorrer um futuro, para nós ainda enigmático.
Com efeito, há que encarar também como plausível ainda outra polêmica. É a das populações dos países do Ocidente contra os líderes dos diversos partidos comunistas que o prestígio da pretensa modernidade ideológica e tecnológica do comunismo, somado por vezes à força persuasiva do ouro e à eficácia das táticas de propaganda comunistas, instalou larga e confortavelmente em todas as nações não comunistas do globo.
– Nada viram?
Durante décadas a fio, os líderes comunistas dos diversos países mantiveram constante e multiforme contacto com Moscou, e ali estiveram, mais de uma vez, recebidos normalmente como comparsas e amigos.
– Nada contaram?
E sempre que chegavam de volta aos seus países tomavam imediato contato com os respectivos PCs, onde todos lhes perguntavam sofregamente o que haviam visto e ouvido nesta verdadeira Meca do comunismo internacional que é Moscou.
– Nada haviam indagado?
Ora, segundo tudo indica, do que transparecia dos “jornais falados” desses visitantes para o grande público, dir-se-ia que, em nenhum momento dessas visitas, haviam eles procurado tomar conhecimento direto das condições em que viviam os russos e outros povos subjugados. Não haviam visto as filas intérminas que, pelas frias madrugadas afora, se formavam às portas de açougues, padarias e farmácias, à espera da mercadoria qualitativa e quantitativamente miserável, cuja aquisição disputavam como se fosse esmola. Não haviam percebido os andrajos nas costas dos pobres. Não haviam notado a total falta de liberdade que afligia todos os cidadãos. Não se haviam impressionado com o tristonho e geral silêncio da população, receosa até de falar, pois temia a brutalidade das suspeitas policialescas.
Não haviam esses supporters do comunismo, nas várias nações do mundo livre, perguntado aos donos do poder soviético por que tanto policiamento, se de fato o regime era popular? E se não o era, qual a razão dessa impopularidade de um regime que gastava verbas de propaganda imensas, para persuadir os ocidentais de que os russos tinham afinal encontrado a perfeita justiça social, no paraíso de uma abundância de recursos capaz de satisfazer a todos?
– Se conheciam o trágico fracasso do comunismo, por que o queriam para suas pátrias?
Se os chefes comunistas no mundo livre sabiam que o fruto do comunismo era o que agora o mundo inteiro vê, por que conspiravam para estender esse regime de miséria, escravidão e vergonha, a seus próprios países? Por que não poupavam dinheiro nem esforços com o fim de atrair, para a árdua faina de implantação do comunismo, as elites de todos os setores da população, a começar pela elite espiritual que é o clero, e a seguir as elites sociais, da alta e média burguesia, as elites culturais das Universidades e dos meios de comunicação social, as elites da vida pública, quer civil, quer militar, ademais dos sindicatos e organizações de classe de toda ordem, para atingir por fim a juventude e a própria infância, nos cursos de primeiro grau? Cegou-vos a paixão ideológica, a ponto de não perceberdes que a doutrina e o regime que pregavam para a nossa Pátria não poderiam deixar de produzir nela frutos de miséria e de desgraça iguais aos que produziram nas imensas longitudes do mundo soviético, desde as margens berlinenses do Spree, por exemplo, até Vladivostok?
– Quando uma grande voz disse a verdade: surpresa
Com tudo isto, da negra desdita em que se achavam e se acham os povos cativos, a opinião pública ocidental formava uma idéia tão vaga que, quando em 1984, um varão de relevante intrepidez apostólica teve a coragem de dar, em algumas fortes palavras, um quadro sumário, tudo se passou no Ocidente como se uma bomba tivesse feito ouvir seu estampido no mundo inteiro.
Quem foi esse varão? – Um teólogo de renome mundial, uma alta figura da vida da Igreja, em síntese o Cardeal alemão Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
E o que disse ele? Eis suas palavras: “Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem” (Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”, Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de agosto de l984, nº XI, 10).
Ele disse tudo isso, e só isso, e a opinião pública ocidental estremeceu. Anos depois, a gigantesca crise em que se acha o mundo soviético veio provar que não só o Purpurado tinha razão, mas que, ainda, suas valentes palavras não haviam sido senão um quadro sumário de todo o horror da realidade.
– A grande interpelação que virá
De momento, o que se vai passando no mundo soviético atrai de tal modo a atenção geral, que não há aqui espaço para reflexões, análises e interpelações mais profundas.
Mas para isso tudo chegará oportunamente o dia. E, nesse dia, a opinião pública perguntará mais agudamente aos chefes dos PCs, em todo o Ocidente, por que continuaram comunistas, apesar de saberem a que miséria o comunismo havia arrastado as nações juguladas por Moscou. Ela lhes exigirá que expliquem por que, conhecendo a situação miserável da Rússia e das nações cativas, consentiram em chefiar um partido político que não tinha outro objetivo senão arrastar para essa situação de penúria, escravidão e vergonha os próprios países do mundo livre, em que haviam nascido. Por que, enfim, haviam querido, com tanto afinco, esse resultado tenebroso, que não hesitaram em ocultar a seus próprios asseclas a verdade que a alguns – pelo menos – teria feito desertar, horrorizados, das fileiras vermelhas.
Esta atitude dos líderes comunistas das várias nações livres, conjurados com Moscou para desgraçarem cada qual a respectiva pátria, há de ser considerada, pela posteridade, um dos grandes enigmas da História.
Desde já esse enigma começa a espicaçar a curiosidade dos que têm a agudez de vistas suficiente para perceber o problema e debruçar-se interrogativamente sobre ele.
– A apressada caiação de fachada dos PCs não dá garantia de que os comunistas estejam mudando efetivamente de doutrina
O quadro, velho de sete décadas, que tantos líderes dos vários PCs disseminados pelo mundo não quiseram ou não puderam ver – e que é agora tão cruamente patenteado pelos dramáticos acontecimentos que vão agitando o mundo soviético – esse quadro, digamos, começa a projetar nestes dias visível mal-estar nos PCs de vários países. O próprio rótulo de “PC”, do qual tanto se ufanavam, já lhes vai parecendo, no terreno psicológico, inábil e, no terreno tático, vexatório.
Por isto, vários deles tendem a rotular-se agora de socialistas. Porém essa mudança não é só de rótulo – segundo dizem – mas pretende ser também de conteúdo.
Tais mudanças, sugerem naturalmente algumas reflexões:
1º) O que os PCs façam no futuro não pode servir, só por si, para justificar o que fizeram ou deixaram de fazer até agora. Por exemplo, sua mudança de título de nenhum modo explica porque, até o momento apoiaram tudo que se fazia no mundo soviético, nem o inteiro silencio dos PCs do mundo livre sobre a terrível miséria reinante na Rússia e nas nações cativas. Isto posto, as perguntas e interpelações que acima enunciamos continuam intactas.
2º) As mudanças em curso só poderão ser tomadas a sério caso os PCs anunciarem claramente:
- a) o que tenham mudado em suas doutrinas filosóficas, sócio-econômicas etc.;
- b) porque operaram tal mudança, e que relação essa mudança tem com a perestroika.
3º) Além disso, é preciso que os PCs esclareçam em concreto:
- a) como enunciam, hoje em dia, suas posições face à liberdade da Igreja Católica e,mutatis mutandis, das demais religiões;
- b) de que modo tenham passado a conceber a liberdade dos partidos políticos, bem como das diferentes correntes filosóficas, políticas e culturais etc., constante dos direitos assegurados à pessoa humana no Decálogo;
- c) se mudaram – e no que – suas doutrinas e seus projetos legislativos, no tocante às instituições da família, da propriedade e da livre iniciativa;
- d) e, por fim, se consideram esse seu new look como uma ordem de coisas dotada de razoável estabilidade, ou como mera etapa de um processo evolutivo tendendo a outras posições;
- e) neste último caso, quais são essas posições?
Sem esses esclarecimentos, a apressada caiação da fachada dos PCs com cores socialistas não dá a menor garantia de que os comunistas mudaram efetivamente de doutrina.
V – Por que combatiam implacavelmente os anticomunistas, os quais erguiam barreiras contra a penetração da desgraça soviética em seus países?
Entretanto, havia ainda mais grave. Por que esses líderes comunistas disseminados pelo mundo somaram à enganosa patranha do silêncio organizado sobre o “paraíso” soviético, também a detração sistemática e infatigável, durante sete décadas a fio, contra todos os que – indivíduos, grupos ou correntes – se empenhavam dedicadamente em evitar para suas pátrias a desdita soviética, abrindo para esta os olhos da opinião pública?
– As redes internas a serviço do adversário moscovita
Nessa difamação, de torrencialidade e continuidade diluvianas, os PCs tiveram a agilidade de montar a seu serviço redes inteiras de auxiliares que, instalados em categorias sociais insuspeitas de favorecerem o comunismo, entretanto tinham em suas fileiras considerável número de inocentes úteis, de destros executores da tática do ceder para não perder etc. Tudo concebido e resolvido em cada país com os matizes peculiares às circunstâncias locais.
– Inocentes úteis: clérigos, burgueses e políticos que não atacavam o comunismo, mas mantinham um incessante dilúvio de difamações contra as organizações anticomunistas
Os inocentes úteis eram adestrados em apagar a noção da nocividade do comunismo, e de sua importância como perigo próximo para cada país. Inocente útil era de preferência um clérigo de aparência conservadora, um pacato e despreocupado burguês, um político que se diria absorvido inteiramente nas tricas, micas e moxinifadas a-ideológicas da politicagem. E assim por diante. Nenhum deles via, na mídia, nem sequer o pouco que esta veio difundindo sobre as mazelas internas do regime comunista. Nem percebia o avanço da ofensiva vermelha, na vida interna do país. Não temia para o dia de amanhã um golpe comunista e, menos ainda, uma vitória comunista. Vivia tranqüilo, e espargia em torno de si a despreocupação.
Tudo isto importava em que criassem em torno do anticomunismo um clima de prevenção e desdém, simétrico e oposto ao clima de simpatia e confiança que sua própria inocência, tão raramente sincera, constituiu em benefício do comunismo.
O comunismo jamais se absteve de aproveitar também a colaboração de estultos, dos quais diz a Escritura que “infinitus est numerus” (Eccles. 1,15) na Humanidade, e “quorum parvus est numerus” nas fileiras vermelhas.
Note-se bem que, o mais das vezes, os inocentes úteis não tomavam a iniciativa de falar contra as personalidades ou grupos anticomunistas, porque preferiam ignorá-los sistematicamente.
Porém, quando, em alguma roda, alguém relatava algum fato desairoso, atribuindo-o a este ou àquele personagem ou grupo anticomunista, o inocente útil era o que mais pressurosamente acreditava no fato, mais se indignava com ele, mais frequentemente tinha algum pormenor (verossímil ou inverossímil) para “confirmá-lo”.
Pelo contrário, se alguém, na mesma roda, contasse algum fato desabonador de um personagem ou grupo comunista, o inocente útil, munido das dúvidas sistemáticas de um método de análise benevolente, imediatamente se punha a pleitear circunstâncias atenuantes em favor da inocência do incriminado, se desolava com o risco de que investigações policiais descabidas abalassem a tranqüilidade das famílias das pessoas assim visadas etc. etc. No que, tudo, poderia haver certa dose de eqüidade e bom senso. Mas, sobretudo, de velhaca e bem disfarçada parcialidade em favor do comunista. O que se evidencia tomando em consideração que todos estes dulçurosos ademanes, o inocente útil só os tinha em favor de personagens e grupos de esquerda. E nunca jamais em favor de personagens de direita.
Em toda esta conduta, o habilidoso inocente útil jamais tinha uma palavra em prol do comunismo. O que era indispensável à sua ação. Pois se elogiasse em algo o comunismo, despertaria suspeitas, deixaria de parecer inocente e, em conseqüência, deixaria de ser útil.
– Tarefa de outros inocentes úteis
Outros inocentes úteis desenvolviam um trabalho tático peculiar.
Também eles jamais deveriam dizer uma palavra explícita em favor do comunismo. Sua tarefa essencial consistia em “esquentar” o esquerdismo de todos quantos ainda não fossem comunistas, levando-os, em conseqüência, a colaborarem, se bem que só em parte, com o PC respectivo. Por exemplo, em uma roda de fazendeiros algum tanto indolentemente contrários à Reforma Agrária, este tipo de inocente útil devia tão-só lamentar a improdutividade de certos latifúndios, e mover a uma atuação antilatifundiária os que com ele concordem. Portanto, a uma ação agro-reformista que realize, pelo menos em parte, o plano de Reforma Agrária integral, que é a meta visada pelo comunismo.
Assim, os comunistas e os inocentes úteis passariam a agir em frente única em favor de uma Reforma Agrária moderada.
Esta era só a primeira etapa.
Porém, nesse grupo “moderado”, o mesmo inocente útil inicial “esquentaria” alguns em favor de um fracionamento confiscatório, também de propriedades de tamanho médio, e não só do latifúndio. Era um convite implícito para que, obtido mais este resultado, todos os esquerdistas rumassem com ele, em frente única, em direção a nova etapa, isto é, a reforma confiscatória de todas as propriedades rurais, grandes ou pequenas.
Ficava assim atingida a meta agrária última do comunismo.
– Outros cooperadores do comunismo
E, assim por diante, se poderia falar dos que aplicam a tática do ceder para não perder etc. etc. Mas isto não faria senão alongar excessivamente o presente trabalho.
Para se ter um quadro geral do que seja a avançada do comunismo em um país, é preciso ter em vista, pelo menos, o que aqui acaba de ser descrito.
O sinistro deste quadro está, sem dúvida, e de maneira principal, no próprio sinistro do destino comunista preparado para o país em foco.
– A tentativa de demolição pela calúnia: a inocuidade dos estrondos publicitários contra a TFP brasileira
Mas ele consiste também na requintada injustiça com que, a serviço do avanço do inimigo, se procura cobrir de calúnias cochichadas e de fonte anônima, e assim arrastar pelas águas sujas da difamação, aqueles que tinham e têm por “culpa inexpiável” defender o país contra os que lhe querem impor o terrível destino sob o qual se contorce, uiva e se revolta um número crescente de nações ou etnias cativas.
E, às vezes, essas investidas do inimigo não se têm restringido a calúnias cochichadas, mas se têm avolumado a ponto de tomar as proporções de verdadeiros estrondos publicitários promovidos com grande estardalhaço contra a TFP brasileira nos últimos 24 anos. São ao todo doze estrondos, cada um dos quais se ergue como um tufão devastador, ao qual a TFP parece que não resistirá.
Este tufão encontra desde logo o apoio de todos os clãs de inocentes úteis disseminados pelo país, com suas diversificadas e infatigáveis equipes de detratores especialmente afeitos a operar no recintos das famílias, das sacristias, dos clubes e dos grupos profissionais.
Enquanto tudo cochicha, tudo ferve, tudo berra, a TFP prepara tranqüilamente sua réplica. E quando esta afinal sai a lume, sempre serena, cortês, mas implacavelmente lógica, a argumentação de nossa entidade vai fazendo calar o adversário. Este quase nunca treplica, e se vai recolhendo a sua toca. O mesmo fazem seus supporters de todo estilo e gênero. Gradualmente, todo mundo vai “esquecendo” tudo: o inimigo bate em retirada, sem que, na generalidade dos casos, a TFP tenha perdido um só sócio, cooperador ou correspondente, um só benfeitor, amigo ou simpatizante.
E se bem que esses “estrondos” procurem, tanto quanto possível, se expandir por toda a terra, nada tem impedido que a grande família de TFPs coirmãs e autônomas – o maior conjunto de organizações declaradamente anticomunistas constituídas exclusivamente de católicos, no mundo hodierno – continue a crescer. E isso de tal modo, que existem presentemente TFPs em todos os continentes.
* * *
Entrementes, vieram os dias de Gorbatchev, os quais desfecharam no que se vê. E agora a verdade dos fatos na Rússia soviética e no imenso conjunto de nações subjugadas está patente aos olhos de todos.
As TFPs têm o direito de consignar de público estas reflexões, e de interpelar especialmente os seus opositores mais diretos, os líderes comunistas do Ocidente.
VI – A grande cruz: luta com os irmãos na Fé
Porém, por mais que se alonguem estas reflexões, por força da complexidade do tema sobre o qual versam, não poderiam elas omitir um ponto capital.
É o longo desentendimento – a tantos e tantos títulos doloroso – com grande número de irmãos na Fé.
– De Pio IX a João Paulo II
Já nos dias sofridos e gloriosos do pontificado de Pio IX (1846-1878), a coletânea dos documentos pontifícios deixa ver a oposição radical e insanável entre a doutrina tradicional da Igreja, de um lado, e de outro lado, os devaneios sentimentalóides do comunismo utópico, bem como o assalto rancoroso e pedante do comunismo científico, ou marxista.
Esta incompatibilidade não fez senão vincar-se no decurso do pontificado posterior, como demonstra, por exemplo, a afirmação lapidar de Pio XI, contida na Encíclica Quadragésimo Anno de 1931: “O socialismo (…) funda-se (…) numa concepção da sociedade humana que lhe é própria e inconciliável com o verdadeiro cristianismo. Socialismo religioso, socialismo cristão são termos que uivam de se encontrar juntos: ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e dizer-se verdadeiro socialista” (Acta Apostolicae Sedis, vol. XXIII, p. 216). E, ainda mais notadamente, o famoso decreto de 1949, da Sagrada Congregação do Santo Ofício, promulgado por ordem de Pio XII, vedando a todos os católicos, sob pena de excomunhão, qualquer forma de colaboração com o comunismo.
Tais atos pontifícios visavam, de um lado, coibir o vazamento de católicos para as fileiras do comunismo. Mas também a infiltração dos comunistas nos meios católicos, sob pretexto de uma colaboração entre uns e outros para a solução de certos problemas sócio-econômicos.
Este ponto era particularmente importante, pois, estendendo a mão aos católicos (“politica da mão estendida”) para essa falaciosa colaboração, os comunistas declarados e notadamente os inocentes úteis de todos os matizes entravam numa convivência familiar e assídua com os católicos, criando clima propício a seduzir, para o pensamento e a ação marxistas, considerável número de filhos da Igreja.
– A era da Ostpolitik vaticana
Ao longo de toda a imensa máquina de propaganda do comunismo internacional, desde o Kremlin até a mais apagada célula comunista de vilarejo, começou a se registrar, no mundo inteiro, uma série de atitudes um tanto distensivas, quer em relação ao conjunto das nações livres do Ocidente, quer em relação às diversas igrejas, e notadamente em relação à Santa Igreja Católica.
Daí uma nova atitude daquelas e desta em relação ao mundo de além cortina de ferro. Tal mudança começou a se tornar mais patente em 1969, na Alemanha Ocidental, com a Ostpolitik do Chanceler Willy Brandt, e se estendeu – rotulada de Ostpolitik vaticana – à própria Santa Sé. Essa tendência, entretanto, já se tornara visível antes disso, no pontificado do sucessor imediato de Pio XII, o Papa João XXIII (1958-1963). E se foi prolongando até nossos dias, em que culminou com a recente visita de Gorbatchev a João Paulo II.
Evidentemente, de Pio XII a João Paulo II, houve uma imensa modificação na linha diplomática do Vaticano, relativamente ao mundo comunista. Esta matéria envolve, sem dúvida, aspectos doutrinários, que dependem do Magistério Supremo do Romano Pontífice. Mas, essencialmente, a matéria é diplomática e, em seus aspectos estritamente tais, pode ser objeto de apreciações diversas da parte dos fiéis.
Assim, não temos dúvida em afirmar que as vantagens obtidas pela causa comunista com a Ostpolitik vaticana não foram apenas grandes, mas literalmente incalculáveis. É exemplo disso o ocorrido no Concílio Vaticano II (1962-1965).
De fato, foi na atmosfera da incipiente Ostpolitik vaticana que foram convidados representantes da Igreja greco-cismática (“Ortodoxa”) russa para acompanharem, na qualidade de observadores oficiais, as sessões daquele Concílio. Vantagens da Santa Igreja nisto? Segundo até o momento se sabe, magérrimas, esqueléticas. Desvantagens? Mencione-se uma só.
Sob a presidência de João XXIII e depois de Paulo VI, reuniu-se o Concílio Ecumênico mais numeroso da História da Igreja. Nele estava assente que iriam ser tratados todos os mais importantes assuntos da atualidade, referentes à causa católica. Entre esses assuntos não poderia deixar de figurar – absolutamente não poderia! – a atitude da Igreja face ao seu maior adversário naqueles dias. Adversário tão poderoso, tão brutal, tão ardiloso como outro igual a Igreja não encontrara na sua História então já quase bimilenar. Tratar dos problemas contemporâneos da religião sem tratar do comunismo, seria algo de tão falho quanto reunir hoje em dia um congresso mundial de médicos para estudar as principais doenças da época, e omitir do programa qualquer referência à AIDS…
Pois foi o que a Ostpolitik vaticana aceitou da parte do Kremlin. Esse declarou que se, nas sessões do Concílio, se debatesse o problema comunista, os observadores eclesiásticos da igreja greco-cismática russa se retirariam definitivamente da magna assembléia. Estrepitosa ruptura de relações que fazia estremecer de compaixão muitas almas sensíveis, pois tudo fazia temer, a partir daí, um recrudescimento das bárbaras perseguições religiosas para além da cortina de ferro. E, em atenção a esta possível ruptura, o Concílio não tratou da AIDS comunista!
A mão estendida era coberta por uma bela luva: a luva aveludada da cordialidade. Mas, por dentro da luva, a mão era de ferro. Sentiam-no as mais altas autoridades da Igreja. Mas isto não impediu que prosseguissem na Ostpolitik. O que foi levando crescente número de católicos a tomar em relação ao comunismo uma atitude interior equivalente a uma verdadeira “queda de barreiras ideológicas”. E, no terreno da ação concreta, a colaborar cada vez mais com as esquerdas na ofensiva contra o capitalismo privado, e em favor do capitalismo de Estado, na ilusão de que o primeiro era oposto à “opção preferencial pelos pobres”, ao passo que o segundo tinha várias afinidades (ou até mais do que só isto) com tal opção tão preconizada pelo atual Pontífice. Oh que cruel desmentido lhes infligiu o capitalismo de Estado!
– A TFP na tormenta
Todo esse suceder de fatos verdadeiramente dramáticos não podia deixar de sobressaltar a fundo (não fosse a confiança na Santíssima Virgem, melhor seria dizer “angustiar de modo atroz”) os componentes da TFP brasileira. Por isso, logo na poluída e sombria “madrugada” desta crise, o pugilo de católicos do qual nasceria de futuro nossa entidade, deu a voz de alerta (cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Em defesa da Ação Católica, 1943, prefácio do Cardeal Bento Aloisi Masella, então Núncio Apostólico no Brasil. – A obra foi objeto de expressiva carta de louvor, escrita em nome do Papa Pio XII, pelo Substituto da Secretaria de Estado da Santa Sé, Mons. J. B. Montini, mais tarde Paulo VI). Incontinenti partiu daí uma geral saraivada de contra-ataques, que iam desfechando em que grande número de meios católicos – pepineira de futuros comunistas nas agitações dos anos 1963-1964 – se cerrassem à nossa ação. Assim, ecumênicos com tudo e com todos, e notadamente com os esquerdistas, os católicos de esquerda se manifestavam desde então inquisitoriais em relação a nós!
Engajou-se assim a parte mais dolorida de nossa luta. Esta luta, antigamente a traváramos contra o lobo devorador. Agora, nossa própria fidelidade à Igreja levava-nos a travá-la contra ovelhas do mesmo rebanho. E, oh dor das dores! até com pastores deste ou daquele rebanho bendito de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Toda essa luta, tão longa e gotejante de lágrimas, de suor e do sangue das decepções, a TFP a historiou em dois livros, um deles recente (Meio século de epopéia anticomunista, 1980; Um homem, uma obra, uma gesta, 1989). Estão eles ao alcance de qualquer interessado, no endereço abaixo. Desnecessário é resumi-los aqui.
Diga-se simplesmente que, com o apoio das valentes e brilhantes TFPs então existentes, respectivamente na Argentina, Bolívia, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos, Uruguai e Venezuela, foi lançado o documento intitulado A política de distensão do Vaticano com os governos comunistas – Para a TFP: omitir-se? ou resistir?, em que todas as nossas entidades coirmãs e autônomas se declaravam em estado de respeitosa resistência à Ostpolitik vaticana. O espírito que as levou a isso – e que hoje anima igualmente as TFPs e Bureaux depois constituídos em 22 países – se pode resumir nesta apóstrofe da mesma declaração: “Neste ato filial, dizemos ao Pastor dos Pastores: Nossa alma é Vossa, nossa vida é Vossa. Mandai-nos o que quiserdes. Só não nos mandeis que cruzemos os braços diante do lobo vermelho que investe. A isto nossa consciência se opõe”.
– Interpelação? – Não: apelo fraterno
A vós, diletos irmãos na Fé, a cuja vigilância a falácia comunista transviou ou está em vias de transviar, não faremos uma só interpelação. De nosso coração sempre sereno parte, rumo a vós, um apelo repassado de ardoroso afeto in Christo Domino: diante do quadro terrível que nestes dias se esboça a vossos olhos, reconhecei, pelo menos hoje, que fostes ludibriados. Queimai o que ajudáveis a vencer. E combatei ao lado daqueles que ainda hoje ajudais a “queimar”.
Sinceramente, categoricamente, sem ambiguidades tendenciosas, mas com a franqueza tão enormemente respeitável que é inerente à contrição humilde, voltai vossas costas para os que cruelmente vos têm enganado. E ponde em nós vosso olhar, serenado e fraterno, de irmãos na Fé.
Este é o apelo que vos fazemos hoje. Ele exprime nossas disposições de sempre, as de ontem como as de amanhã.
Nas palavras finais deste documento, nossa voz se carrega de emoção, a veneração as embarga, nossos olhos filiais e reverentes se levantam agora a Vós, ó pastores veneráveis que dissentistes de nós. Onde encontrar as palavras de afeto e de respeito próprias a depositar em vossas mãos – em vossos corações – em um momento como este?
Melhores não as podemos encontrar senão, mutatis mutandis, nas próprias palavras que, em 1974, dirigimos ao hoje falecido Paulo VI.
Pronunciamo-las genuflexos, pedindo vossas bençãos e vossas orações.
Temos dito.
* * *
As várias interpelações enunciadas nos itens II a V e o apelo aos católicos de esquerda (item VI), fá-los a TFP, por sua conta e risco, no presente documento, publicado com a aprovação unânime dos membros do seu Conselho Nacional.
Como é óbvio, assiste a qualquer dos interpelados – ou àqueles a quem se dirige o apelo – o direito de responder.
E, pelo óbvio motivo da proximidade, tal resposta constitui não apenas um direito, mas um dever, para os líderes comunistas do Ocidente e os da esquerda católica.
A eles, pois, nossa pergunta final: calar-vos-eis ou falareis?
A palavra está convosco.
São Paulo, 11 de fevereiro de 1990
Festa de Nossa Senhora de Lourdes
Plinio Corrêa de Oliveira
Presidente do Conselho Nacional
NOTAS
[*] Publicado na “Folha de S. Paulo” (14-2-1990), “Wall Street Journal” (27-2-1990), “Corriere della Sera” (7-3-1990), num total de 50 jornais e/ou revistas do Ocidente.
“Em fevereiro de 1990, diante da espetacular derrubada do muro de Berlim e da cortina de ferro, e dos abalos políticos que se sucediam nos diversos países do bloco comunista, redigi o manifesto intitulado Comunismo e anticomunismo na orla da última década deste milênio , em que analiso o Descontentamento (assim grafado com inicial maiúscula) que lavrava naquelas nações e que logo depois teria como resultado o esfacelamento do império soviético. O manifesto foi publicado pelas diversas TFPs” (cfr. Auto-retrato filosófico).