Plinio Corrêa de Oliveira

 

Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana

 

Apêndice à edição Norte-Americana

Setembro de 1993

 

ESTADOS UNIDOS: NAÇÃO ARISTOCRÁTICA NUM ESTADO DEMOCRÁTICO

 

 

Capítulo VI

 

REVOLUÇÃO AMERICANA, INDEPENDÊNCIA E CONSTITUIÇÃO

 

1. Elites coloniais no período revolucionário (1763-1781)

 

A Revolução Americana — ou seja, o movimento revolucionário que resultou na luta armada contra a Inglaterra, pela independência das treze colônias inglesas na América do Norte (Guerra da Independência) — teve causas diversas. É difícil explicá-la somente pelas idéias políticas radicais dos whigs1 ingleses. Ou apenas pela influência da filosofia de John Locke, e de outros filósofos do iluminismo, sobre amplos setores das classes cultas da América do Norte. Na verdade, múltiplas causas convergiram para dar origem à Revolução Americana.

1 – Whig era a designação de um dos maiores partidos da Inglaterra nos séculos XVIII e XIX. Os whigs lutavam para limitar a autoridade real e aumentar o poder do Parlamento; estavam geralmente ligados aos grupos religiosos dissidentes.

Gordon Wood, em sua famosa obra sobre a Revolução Americana, refere-se a elas quando declara: "Inspirando-se nas repúblicas da antiguidade e no próprio passado constitucional inglês, como lhes foi transmitido pela tradição radical whig, os americanos procuraram formular uma ciência política da História, que explicaria o que estava acontecendo à Inglaterra e a eles próprios. Uma explicação que, quando reunida a uma complicada mistura de noções tomadas ao iluminismo, ao racionalismo e à teologia puritana da aliança, tinha implicações revolucionárias". (Gordon Wood Creation of the American Republic, p. 17)

Porém, ao considerar a complexidade de fatores que levaram à independência norte-americana, uma coisa é certa: a lenda popular de um povo amável, virtuoso e livre, levado à revolta pela tirania de um monarca implacável, não corresponde à realidade.

É ainda Gordon Wood quem afirma: "Nada havia daquela lendária tirania, que tantas vezes na História levara povos desesperados à rebelião. Os americanos não eram um povo oprimido, nele não havia algemas imperialistas para serem arrancadas.... A realidade social objetiva dificilmente seria capaz de explicar uma revolução". (Gordon Wood, Creation of the American Republic, pp. 3-4). De fato, ele indica que os norte-americanos, em seu conjunto, provavelmente tinham mais direitos que a maioria dos povos daquela época.

Estudos históricos modernos questionaram este mito do povo oprimido por uma tirania. Pois mostraram que o movimento que levou à guerra pela independência — ao contrário de uma mera disputa por questões concretas de ordem política ou econômica — teve um caráter ideológico, nitidamente revolucionário, semelhante ao que sucederia na França. Seu efeito sobre a vida das elites tradicionais americanas, embora menos imediato e extremado, foi entretanto profundo.

É fato que havia conflitos de interesses entre a metrópole e as colônias. A década que precedeu a Revolução foi caracterizada por um crescente esforço da Coroa Inglesa para implantar uma política imperialista padronizada nas colônias. Por seu lado, o Parlamento procurava promover uma política mercantilista, de efeitos nocivos para os interesses das elites coloniais, que se opuseram com firmeza a tais pretensões da Coroa e do Parlamento, contrárias aos seus direitos e costumes tradicionais.

Normalmente tais diferenças teriam sido resolvidas por meios pacíficos. Porém, as chamas da controvérsia foram mantidas acesas por elementos radicais, que orientaram o descontentamento para prosseguir no desafio à política britânica: "O prosseguimento da agitação após 1770 foi devido aos radicais, que visavam reformar as relações com a Inglaterra e as próprias relações domésticas". (Homer C. Hockett, The Political and Social Growth of the American People, - New York, MacMillan, 1940, p. 180)

O ímpeto da ofensiva ideológica a favor do movimento pela independência foi obra dos elementos mais radicais. Isto manifestou-se com toda evidência na retórica revolucionária, que varreu o país para modificar os princípios, as opiniões, os sentimentos e as apetências do povo.

a. Do ressentimento pessoal ao desejo de uma república aristocrática

Nesse período de crescente intervenção da Coroa e do Parlamento nas colônias, houve um tipo de descontentamento em relação ao governo inglês, de natureza muito mais pessoal que política. Entre os numerosos whigs moderados existentes nas elites coloniais, houve ressentimentos contra favoritismos e indicações reais em detrimento de suas pessoas.

Eles se queixavam constantemente "do abuso da autoridade real ao criar distinções políticas, e conseqüentemente sociais; das manipulações de indicações oficiais, que permitiam a certas pessoas, por meio de ligações poderosas e de bajulações.... passar à frente daqueles igualmente ou mais qualificados para preencher posições lucrativas, de poder e de prestígio". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, pp. 79-80)

Porém, apesar desse descontentamento, eles não tinham a intenção de destruir a hierarquia social com a introdução da república. Aquelas elites eram "agudamente conscientes de graus e posições, sensíveis ao menor insulto de natureza social". Esquecidas do inevitável efeito nivelador do republicanismo revolucionário, elas esperavam ver destruídos apenas "os parasitas bajuladores da Coroa". (Gordon Wood, Creation of the American Republic, pp. 71-72)

Aderindo ao apelo revolucionário para construir uma nova sociedade baseada numa "igualdade natural", governada por uma "aristocracia natural", as elites coloniais pretendiam ocupar as altas camadas da escala social, livres de "distinções artificiais" concedidas arbitrariamente pela Coroa, ou resultantes de privilégios não ligados ao mérito.

Gordon Wood assim descreve como tais elites coloniais revolucionárias concebiam uma "aristocracia natural": "Era algo muito mais sutil que a mera posse de riqueza. Era um sentimento social mais profundo, um senso de estar socialmente estabelecido, de possuir atributos — família, educação, refinamento — que faltavam aos outros. E, acima de tudo, de ser aceito e de ser capaz de circular livremente entre aqueles que se consideravam respeitáveis e cultos". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, p. 497)

"O ideal, especialmente nas colônias do sul, era a criação e a manutenção de uma aristocracia verdadeiramente natural, baseada na virtude, temperança, independência e dedicação ao bem comum". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, p. 71)

"Os revolucionários estavam geralmente confiantes de que existia na comunidade uma parte senatorial — uma elite natural, social e intelectual — a qual.... encontraria seu lugar de direito nas câmaras altas dos legislativos". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, p. 209) Nesta ordem republicana, sem dúvida, o plantador do sul ou o advogado gentilhomem de Nova Inglaterra almejava uma posição de destaque.

b. A Revolução Americana: obra de elites

O que havia começado como uma inconformidade contra imposições do Parlamento e da Coroa sobre as colônias, dentro de uma década eclodiu como um genuíno movimento revolucionário.

A Revolução Americana foi definidamente um fenômeno de elites. A caminhada rumo à Independência tornou-se possível pela solidariedade nos setores da classe alta de todas as colônias. Os aristocratas que a planejaram, em suas mansões às margens do Potomac, do James, do Hudson e de outros rios, "eram deístas e livres pensadores. Obras de Voltaire, Hume, Gibbon e Thomas Paine poderiam ser encontradas em suas estantes". (Clement Eaton, The Growth of Southern Civilization - Harper and Row, p. 13)

Segundo von Borch, foi uma elite aristocrática colonial, adepta de princípios republicanos, que articulou a revolta contra a Inglaterra: "Temos aqui, talvez, o mais enraizado paradoxo no emergir dos Estados Unidos como nação independente. A ‘dinastia da Virginia’, dos primeiros presidentes do Estado federal independente.... veio precisamente da aristocracia dos plantadores. Dentro dessa aristocracia desenvolviam-se os poderes e as idéias que tornaram as colônias independentes da Inglaterra, e lhes deram um regime doméstico liberal, mas ainda um tanto conservador. A revolução contra a Inglaterra foi planejada nas senhoriais propriedades das margens dos rios da Virginia.... Os auto-confiantes senhores de plantações, vivendo seu estilo de vida, foram os líderes de uma revolta contra a Inglaterra". (Herbert von Borch, The Unfinished Society, pp. 216-217)

No coração desse homem de elite revolucionário havia uma dicotomia entre seus hábitos aristocráticos e suas idéias republicanas: "Um advogado da Nova Inglaterra e um plantador da Virginia poderiam encher seus diários com a narração de suas lutas internas, entre as atrações e as repulsas do mundo do prestígio e do refinamento social. Esta forma de tensão e de ambivalência de atitude, bem difundida, criou uma dolorosa disjunção de valores e uma situação social muito instável". (Gordon Wood, idem, p. 75). Tornou-se desde então uma característica das elites norte-americanas.

Resumindo os efeitos sociais, políticos e econômicos do movimento revolucionário, Edward Pessen declara: "A Revolução Americana não solapou o sistema de classes sociais, nem debilitou as barreiras existentes entre elas, que haviam sido formadas durante a era colonial. Indubitavelmente, uma nova ordem política mais democrática emergiu em nível nacional e estadual.... O verdadeiro poder político continuou a ser principalmente concentrado nas mãos de poucos, eles mesmos subordinados aos homens ricos em seus estados e localidades. Na medida em que a riqueza é uma indicação de classe social, ela tornou-se mais desigualmente distribuída após a Revolução do que fora antes. Os novos ricos de então não vieram substituir os ricos de épocas anteriores, mas sim engrossar as suas fileiras". (Edward Pessen, Making America, p. 275)

c. A divisão da sociedade colonial em face da Revolução

A sociedade colonial, incluindo os grupos de elite, ficou dividida em duas facções: os whigs, liberais e reformistas, controlados por uma minoria de elementos radicais que desejavam a independência em relação à Inglaterra; e os loyalists, formando uma maioria — ora ativa, ora passiva — favoráveis a queixas contra a Inglaterra, mas rejeitando a separação, e desejando o retorno ao prévio status quo e a reconciliação; eram também conhecidos como tories.

"Nenhum líder, nem mesmo o mais declarado patriota americano, era anti-britânico, quando teve início a longa evolução de acontecimentos que culminaram com a Revolução", diz Pauline Maier, da Universidade de Massachusetts. (Pauline Maier, From Resistance to Revolution, - New York, Random House, Vintage Books, 1974, p. XI).

Antes de 1775, poucos americanos se davam conta do alcance da resistência colonial. Os líderes radicais tiveram de vencer a força da corrente loyalist no público, moderando o que escreviam. Em 1774, Thomas Jefferson confessou que o caminho de transição para a independência "ainda era muito longo, para a massa dos nossos cidadãos". (Cfr. Merrill D. Peterson, Thomas Jefferson and the New Nation, p. 71)

Confirmando que os loyalists constituíam a maioria, Claude H. Van Tyne escreveu que "a lealdade à Coroa era uma condição normal na colônia". E observa que eram os whigs radicais que necessitavam mudar a opinião dos habitantes, para que estes seguissem a nova ordem revolucionária, desejada por eles para as colônias. (Claude H. Van Tyme, The Loyalists in the American Revolution, p. 23)

No norte, entre os loyalists, havia numerosos negociantes da Nova Inglaterra, de Nova York e da Pennsylvania. No sul os plantadores, em seu conjunto, constituíam uma classe de whigs moderados, dominados por líderes radicais; porém, numerosos pequenos fazendeiros das regiões da fronteira tendiam fortemente para os loyalists.

"Os loyalists eram numerosos e constituíam a posição dominante, mas concordavam entre si apenas no temor de que a resistência à Inglaterra poderia ser levada longe demais. A falta de um programa positivo reduziu seu peso a um mínimo. Os whigs, por seu lado, eram ativos e bem unidos. Seus comitês locais impediam a manifestação das opiniões loyalists". (Homer C. Hockett, op. cit., pp. 190-191). Comitês revolucionários introduziam a Revolução em cada casa, conseguindo adesões mediante ameaças de ostracismo, difamação ou violência física.

No decurso da Revolução, que tomou aspectos claros de guerra civil, com violentos combates entre as duas facções acima mencionadas, muitos dos loyalists de todas as classes sociais se exilaram na Inglaterra ou no Canadá: "A Revolução foi uma das grandes sublevações neste continente. Ela levou 80.000 pessoas ao exílio, de uma população de dois milhões". (Hereward Senior, The Loyalists of Québec – Montréal, Price-Patterson Ltd. 1989, p. 3)

Este fato é narrado também por Schlesinger: "Quando eclodiu o conflito armado, milhares de homens e mulheres, considerados partidários dos tories, foram forçados a fugir para a terra dos seus antepassados, muitos se estabelecendo como colonizadores no Canadá.... Suas propriedades e fortunas foram confiscadas pelos governos revolucionários, e decretos de proscrição foram emitidos contra seu possível retorno.... Porém, outros membros da classe alta, como a aristocracia rural do sul e alguns dos grandes negociantes quakers, jogaram seu destino com os revolucionários, embora muitos deles desaprovassem as doutrinas extremistas advogadas pelos líderes populares". Arthur Schlesinger, New Viewpoints in American History, p. 77)

2. A Declaração de Independência (1776)

Em maio de 1775 o Congresso Continental reuniu-se pela segunda vez, em Filadelfia. Este congresso era uma assembléia de representantes das colônias, para expor reivindicações contra a política colonial inglesa. Em fins do mesmo ano havia pouca esperança de reconciliação. A facção radical pressionava cada vez mais, no sentido de uma ruptura, não apenas com o Parlamento Inglês, mas com a própria Coroa, para a formação de 13 estados republicanos independentes.

Em 1776, a exigência de uma Declaração de Independência tornara-se o traço característico dos radicais". (Cfr. Pauline Maier, From Resistance to Revolution, p. 266)

Em 2 de Julho daquele ano, após uma pressão frenética exercida pelos patriotas radicais", o passo final e definitivo da independência total foi dado quando o Congresso Continental aprovou a Declaração de Independência, escrita pelo plantador aristocrata e democrata radical Thomas Jefferson. "A Declaração de Independência, formulada pelo Congresso Continental, foi realmente uma Declaração dos ‘treze Estados Unidos da América’ proclamando que, como ‘Estados livres e independentes, eles têm o pleno poder para declarar guerra, negociar a paz, contrair alianças, estabelecer comércio, e realizar qualquer outro ato que Estados independentes têm o direito de realizar’". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, p. 356)

Assim, impelida por princípios filosóficos liberais, a facção radical deu um passo sem precedentes: fundar uma nova nação, inspirada nesses mesmos princípios.

"Em 1776, um empreendimento colonial foi transformado numa sociedade livre e independente, por um ato de vontade deliberado e bem ponderado. E porque isto não se deu de modo natural, mas foi implantado artificialmente, o país que daí resultou, mais que qualquer outro na História, pode ser identificado com uma filosofia particular. A utopia que os Founding Fathers desejavam realizar para sempre em solo norte-americano.... [foi inspirada] numa fusão de idéias e sentimentos, conhecidos na história da Filosofia como iluminismo, racionalismo, otimismo e deísmo". (Herbert von Borch, The Unfinished Society, p. 12)

A Declaração também adotou para o governo e a sociedade os princípios da democracia liberal, realizando assim uma ruptura com as tradições políticas e religiosas de seu passado colonial.

"Sua mensagem é a mensagem do século XVIII sobre a ilimitada capacidade do homem, como um ser livre, para criar seu próprio sistema social, e para recriá-lo tantas vezes quantas ele falhar em satisfazer os dois valores que Jefferson considerava supremos — Liberdade e Felicidade". (Herbert von Borch, The Unfinished Society, p. 13)

Ao adotar a Declaração de Independência como sua Carta fundamental, as elites coloniais do Congresso Continental uniram a filosofia liberal revolucionária à revolta colonial e transformaram uma rebelião dentro do Império num símbolo de libertação para toda a humanidade.

Uma minuciosa ponderação dos elementos contidos na Declaração de Independência torna manifesta a presença simultânea de duas ações distintas:

1 - A ruptura das treze colônias com a Coroa inglesa. Esta ruptura, considerada em si mesma, não operaria senão o nascimento político de treze pequenas nações, independentes não só da antiga metrópole, como também independentes entre si;

2 - A formação de um liame entre essas treze unidades. Este liame as unia como um feixe, em face de todo o mundo, para efeitos de paz ou de guerra com Inglaterra, aliança com a França, e eventuais negociações pacíficas com outros povos.

A coordenação da ação simultânea dessas treze unidades aliadas tocava evidentemente ao Congresso Continental (ou seja, uma assembléia pan-norte-americana).

A descrição total do passo então dado deve fazer menção de outros elementos que, sem serem propriamente políticos, são entretanto do maior realce, e ricos em impulsos dinâmicos.

Um deles consiste em que nos treze estados se professe oficialmente que um mesmo conjunto de princípios de filosofia política, proclamados como verdades evidentes (self-evident truths), que devem nortear a vida do povo em todos os estados, constituem a filosofia oficial da coligação das treze ex-colônias. Este conjunto de princípios iria substituir, em nível meramente filosófico e deísta, o estado confessional da era anterior; e, em nível mais universal, faria do novo país um modelo paradigmático, a ser imitado por todas as nações do mundo. A difusão desse modelo daria um caráter missionário à recém-fundada república.

Ao proclamar tais princípios filosóficos como seus, aquele "feixe" de estados assume algo do timbre de voz de um arauto que deseja "converter" todos os povos a um novus ordo seculorum.

Em tudo isso se nota que, já no berço, a coligação apresenta tendências que se transformam em cartilha de pensamento e programa de ação. Disso resultou a formação de um Estado que se tornaria forte, embora oficialmente federativo, que se erigiu em dado momento na maior potência da terra; e que abarcou em seu seio todas as treze ex-colônias inglesas, às quais foram progressivamente acrescentados novos territórios, até chegar aos cinqüenta estados de hoje, da bandeira das estrelas e listas.

Por outro lado, a prevalência dos princípios filosófico-religiosos — ou melhor, laico-filosóficos — do ato de Independência, permaneceu até o presente, com matizes ora mais carregados ora menos.

Tais princípios conferiram à nova nação um sentido missionário laico-filosófico-democrático, de significado internacional; o qual, por sua vez, deu origem a uma das mais importantes controvérsias de nossa história: isolacionismo vs. expansionismo.

3. Os anos que se seguiram à independência (1781-1787)

Ao final das hostilidades, em outubro de 1781, as 13 colônias recém-independentes constituíram um frouxo governo central, regulado pelos Artigos da Confederação, elaborados pelo Congresso Continental.

Este exercia um limitado poder central, especialmente nos assuntos de política exterior, decidindo questões sobre guerra e paz, comércio exterior, etc. Porém tinha pouca autoridade para agir no interior de cada Estado. Não havia chefe de Estado com poderes executivos, nem um poder judiciário comum.

Imediatamente após a independência, teve início no âmbito legislativo dos governos estaduais um movimento destinado a eliminar os privilégios sociais e atingir — em prazo médio ou longo — o maior nivelamento possível, também no campo econômico. Este movimento tinha por finalidade solapar as bases econômicas das elites aristocráticas e diminuir, ou até mesmo impedir, seu predomínio enquanto tal, na sociedade.

Assim, já nos primeiros 15 anos, a primogenitura e o morgadio foram eliminados em todos os estados: "Eles eliminaram os direitos legais da primogenitura e do morgadio, os quais, antes da guerra, haviam ajudado a manter a aristocracia rural pela transferência integral da propriedade ao filho mais velho, e pela preservação dessa propriedade intacta de geração a geração". (Williams, Current, Freidel, A History of the United States, p. 143)

A Revolução Americana foi o primeiro passo para a eliminação gradual das grandes propriedades rurais, base econômica das famílias patrícias da era colonial. Terras pertencentes à Coroa, aos donatários e aos loyalists foram desapropriadas ou confiscadas, e divididas em pequenas fazendas.

No decurso das gerações subseqüentes, as grandes propriedades remanescentes foram também divididas, em virtude da aplicação das leis contra a primogenitura e o morgadio. "Exceto no sul, — diz von Borch, — a classe alta começou a cortar seus laços com o solo e assumir a liderança de uma sociedade econômica, industrial e financista". (Herbert von Borch, The Unfinished Society, p. 217)

A formação de uma confederação de estados americanos no fim da Guerra da Independência, não trouxe paz nem harmonia social: "No outono de 1786, muitos passaram a ver os Artigos da Confederação mais como um plano de anarquia que de governo". (Minor Meyer jr., Liberty without Anarchy – Charlottesville, University Press of Virginia, 1983, p. 70)

Em todos os estados, da Nova Inglaterra à Carolina do Sul, a atmosfera igualitária espalhada pela retórica da Revolução fez com que todas as superioridades, devidas a circunstâncias várias que não fossem o mérito, se tornassem insuportáveis. Ao mesmo tempo, a aversão republicana às desigualdades herdadas estava sendo ampliada, numa denúncia geral contra todas as diferenças, fossem elas de ordem econômica, social, intelectual ou profissional. Republicanos radicais atacavam qualquer manifestação de superioridade ou refinamento social, como sendo contrária ao espírito e aos princípios da Revolução. Até mesmo simples referências a graus de respeitabilidade tinham uma sonoridade aristocrática para os mais igualitários. (Cfr. Gordon Wood, op. cit., pp. 399, 400, 482)

Nas mais altas posições da vida política, novas figuras passaram a preencher o vazio deixado pelos loyalists que se exilaram. Em muitos estados uma nova elite política e econômica, desconhecida uma década antes, ocupava suas assembléias: "O mais assinalado efeito social da Revolução não foi a harmonia ou a estabilidade, mas o súbito aparecimento de novos homens por toda a parte, na política e nos negócios.... Homens que não eram respeitáveis — nem pela sua propriedade, nem pela sua virtude, nem pelas suas capacidades — estavam tomando a direção dos assuntos públicos". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, pp. 476-477)

John Jay, uma figura destacada das elites tradicionais de Nova York, queixava-se de que "se concedia posição e importância aos homens a quem a Sabedoria haveria deixado na obscuridade". O mesmo juízo era feito pelo futuro presidente James Madison, para quem os legislativos estaduais "estavam sendo ocupados, e anualmente reocupados, por fisionomias diferentes, freqüentemente por homens sem leitura, experiência ou princípios". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic,, p. 477)

Muitos esperavam, especialmente no sul, que a Revolução viesse minorar a instabilidade social. Ora, o que ocorreu foi exatamente o contrário: "A igualdade não estava criando harmonia e contentamento. O que se notava é que ela se havia tornado a própria causa dos males que estava destinada a eliminar". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, pp. 398-399)

Durante este período de elaboração das constituições estaduais, prevaleceu o princípio revolucionário de transferência da soberania para "o povo". Isso teve como conseqüência uma convulsão na vida política de vários dos novos estados. Arruaças, comícios eleitorais, convenções populares para manifestar a vontade do "povo" nos menores aspectos da vida pública, tornaram-se generalizados.

Segundo Gordon Wood, por todos os estados "um excessivo poder do povo estava conduzindo não apenas à licenciosidade, mas a uma nova espécie de tirania, exercida não por governantes, mas pelo próprio povo. Foi o que John Adams qualificou, em 1776, como uma contradição teórica, um despotismo democrático". (Gordon Wood, op.cit., p. 404)

Mais adiante o mesmo autor afirma: "Os americanos experimentaram assim, na década de 1780, não apenas uma crise de autoridade — a licenciosidade conduzindo à anarquia — o que era um abuso compreensível da liberdade republicana, mas também um sério abalo dos velhos métodos de examinar a política, e um questionamento fundamental do governo de maioria, que ameaçava sacudir as bases de sua experiência republicana". (Gordon Wood, idem, p. 411)

Em vez da formação de um governo exercido pela "aristocracia natural" — ou seja, por elites sociais não hereditárias — sobre um povo virtuoso e ponderado, como haviam desejado os teóricos do republicanismo, a Revolução parecia estar produzindo o efeito oposto, "ao permitir que homens socialmente insignificantes.... subissem a posições de mando, sem passar através dos diversos níveis sociais, e sem adquirir o status reconhecido para a liderança social". (Gordon Wood, op. cit., p. 481)

Ao fazer de uma pessoa desqualificada um líder, o povo alardeava seu poder, voltando-se contra toda a classe patrícia: "Os plantadores [no sul] se viram confrontados por desafios espalhados contra sua autoridade, os quais não poderiam ter sido previstos em 1776". (Gordon Wood, op. cit., p. 482)

Carentes de uma autoridade forte no poder executivo, e com os membros dos legislativos absorvidos em disputas paroquiais de seus eleitores, muitos estados mergulharam numa situação de turbulenta ingovernabilidade. Em alguns deles ocorreram violentas explosões populares, enquanto qualquer forma de um efetivo governo federal praticamente cessou de existir.

Todos estes fatores estavam rapidamente conduzindo ao pressentimento de que a experiência revolucionária havia falhado, e alguma forma de repressão social e de governo centralizado era necessária para resolver a crise.

O crescente radicalismo observado nos estados estava intimidando a classe dos proprietários, os quais começaram a sugerir que um governo federal forte e centralizado se tornava necessário para "assegurar a tranqüilidade doméstica", garantir "a forma republicana de governo" e proteger a propriedade contra a "violência interna". (Dye and Zeigler, The Irony of Democracy, p. 32)

Em suma: "Apesar da Declaração de Independência, — diz Edward Pessen — os líderes da sociedade colonial continuaram a pensar após a Revolução, como já antes dela pensavam, que somente os poucos dotados de um especial ou grande interesse pelo bem social, poderiam merecer a confiança para governar com responsabilidade". (Edward Pessen, Making America, p. 275)

4. A Constituição: seus autores e suas metas (1787-1788)

a. Os Founding Fathers: uma elite aristocrática nacional

Em 1787, representantes de 11 estados reuniram-se em Filadélfia, a fim de elaborar uma constituição federal para uma república federativa, que deveria substituir aquilo que fora até então uma livre confederação de 13 estados de recente independência.

Esta elite de homens de negócios, advogados e plantadores — que representava em boa medida o elemento aristocrático da sociedade norte-americana pós-revolucionária — encontrou-se a portas fechadas, para elaborar a Constituição. Significativamente, não participaram do encontro os líderes revolucionários mais radicais, alguns por estar no estrangeiro, outros recusando-se a comparecer.

Era um auto-selecionado grupo de homens, que tomou a si a tarefa de redigir uma constituição federal. Presididos por George Washington — "com suma distinção, nascida tanto do seu carisma pessoal, como do carisma de sua classe" (Digby Baltzell, Puritan Boston and Quaker Philadelphia, p. 187) — eles tinham a autoridade que lhes conferia sua classe social e seu passado familiar, representando o melhor da tradição colonial. Eles constituíram um grupo de aristocratas, sobre o qual a duradoura legenda dos Founding Fathers foi construída.2

2 - Seymour Martin Lipset indica como um dos fatores de legitimação do governo pós-revolucionário o carisma pessoal de seus líderes (Cfr. A sociedade Americana, p. 37)

Eis como Dye e Zeigler os descrevem: "Aqueles 55 homens que redigiram a Constituição dos Estados Unidos e fundaram uma nova nação eram uma elite verdadeiramente excepcional, não apenas ricos e bem nascidos, mas também educados, talentosos e capazes". Quando o democrata radical Thomas Jefferson, que então representava a nação perante a Corte de Versailles, viu a lista dos delegados à Convenção, escreveu ao seu amigo John Adams, então representante do país na Inglaterra: "É realmente uma assembléia de semi-deuses". (Dye and Zeigler, The Irony of Democracy, p. 27)

Foi esta assembléia de semi-deuses que dispôs o curso da república norte-americana para as gerações futuras. Nela estavam representadas elites de diversos níveis de prestígio e projeção, como constata Baltzell: "Esses 55 homens constituíam um clássico exemplo de liderança de homens, pertencentes a uma classe com autoridade há longo tempo estabelecida. Dois deles, Washington e Franklin, eram conhecidos internacionalmente; pouco mais de dez eram figuras de projeção nacional; os outros eram, pouco mais ou menos, líderes locais". (Digby Baltzell, Puritan Boston and Quaker Philadelphia, p. 186)

Os Founding Fathers impunham respeito e confiança, eram seguros de si e tinham aquela autoridade moral que só uma elite autêntica poderia manifestar: "Os 55 homens que se reuniram no verão de 1787, para estabelecer um novo governo nacional, constituíam o mais prestigioso, rico, educado e habilidoso grupo de "notáveis", jamais reunido na América para um encontro político. Os Founding Fathers eram verdadeiramente a elite das elites, tanto desejosa quanto capaz de agir com ousadia criativa, no estabelecimento de um governo para toda a nação.... Os Founding Fathers estavam conscientes de que as elites são mais eficientes nas negociações, compromissos e decisões quando operam em segredo.... Somente homens confiantes em seus próprios poderes e aptidões, homens de princípios e de propriedade, seriam capazes de proceder desta maneira audaz". (Dye and Zeigler, The Irony of Democracy, pp. 34-5)

Louis Wright assim descreve a origem aristocrática destes líderes revolucionários: "Das fileiras dos homens que utilizaram seu tempo de lazer para cultivar seus espíritos saíram os líderes que deram forma aos destinos do país, em 1776 e 1787. A Constituição foi obra de gentlemen cônscios de seu dever de servir os mais altos interesses do Estado". (Louis B. Wright, The First Gentlemen of Virginia - Charlottesville, Virginia, Dominion Books, 1964, p. 350). "Os plantadores aristocratas governaram a Virginia por direito consuetudinário, e das fileiras de seus descendentes saíram os homens de Estado que ajudaram a reunir as treze colônias revoltadas numa só nação". (Louis B. Wright, The First Gentlemen of Virginia, p. 2)

Contradizendo o mito democrático das origens populares da república norte-americana, Dye e Zeigler afirmam: "A Constituição dos Estados Unidos não foi ‘ordenada e estabelecida’ pelo ‘povo’. Apenas uma pequena fração do ‘povo’ participou, de algum modo, na adoção da Constituição. Esta foi preparada em Filadélfia por uma pequena, educada, talentosa e rica elite, representativa de poderosos interesses econômicos — credores (dos governos revolucionários), investidores, negociantes, grandes proprietários e plantadores". (Dye and Zeigler, The Irony of Democracy, p. 56)

Assim, esta elite nativa, constituída por homens de família e de propriedade, reuniu-se em Filadélfia para elaborar uma Constituição que permitisse a sobrevivência da primeira experiência de um governo republicano nas Américas, baseada em princípios revolucionários. Um apoio maciço à Constituição foi manifestado pelas elites dos diversos estados, as quais se haviam retraído devido à turbulência social dos anos precedentes.

b. O passo atrás dado pela Constituição

Muitos líderes radicais daquela época, bem como historiadores liberais de épocas posteriores, viram uma fundamental incompatibilidade entre as idéias "democráticas", representadas na Declaração de Independência, e as estruturas políticas e sociais hierarquizadas, estabelecidas e protegidas pela Constituição. Para eles, existe "um conflito ideológico fundamental na história americana, entre o espírito da Declaração de Independência e a Constituição: uma devotada aos direitos do homem, e a outra aos direitos da propriedade; uma voltada para Jefferson, a outra para Hamilton".3

3 - (James L. Bugg Jr., Jacksonian Democracy, Myth or Reality? - New York, Holt, Rinehart and Winston, 1962, p. 34). Alexander Hamilton foi um líder federalista, Secretário do Tesouro no governo de George Washington. Foi um ativo defensor de um governo aristocrático, e até de uma monarquia constitucional para os Estados Unidos. Ele adornou o exercício da presidência com cerimoniais e etiquetas que faziam lembrar uma corte européia.

Dos delegados à Convenção de Filadélfia — embora em grande parte aristocratas, e alguns com sentimentos monárquicos — a maioria acreditava na forma republicana de governo, e fizeram o máximo para, por meio dela, estabilizar a ordem social que a Revolução havia subvertido. "Por ‘governo republicano’ eles queriam significar um governo representativo, responsável e não-hereditário. Mas também por ‘governo republicano’ eles certamente não queriam significar uma democracia de massa, com participação do povo nas tomadas de decisão.... As decisões deveriam ser tomadas por homens de fortuna, educação e comprovada capacidade de liderança". (Dye and Zeigler, The Irony of Democracy, p. 39)

Para os Founding Fathers, "igualdade não significava que os homens fossem iguais em nascimento, riqueza, inteligência, talento ou virtude. As desigualdades na sociedade eram aceitas, como um efeito natural da diversidade entre os homens. Definidamente, não era função do governo reduzir essas desigualdades. De fato, o ‘perigoso nivelamento’ era uma séria violação do direito do homem à propriedade, ao direito de usá-la e de dispor dos frutos de seu trabalho. Pelo contrário, era a função específica do governo proteger a propriedade, e evitar que a influência ‘niveladora’ reduzisse as naturais desigualdades de riqueza e poder". (Dye and Zeigler, The Irony of Democracy, pp. 38-39)

Vista sob este prisma, embora ideologicamente liberal, a Constituição era um documento favorável às desigualdades sociais, destinado a atenuar o impulso suscitado pela retórica democrática que atiçou as paixões populares na época da Revolução. Ela serviu como instrumento para restaurar e prolongar a tradicional influência das elites na política, a qual estava sendo solapada pelas transformações sociais, especialmente após a Revolução. "A Constituição era intrinsecamente um documento aristocrático, destinado a deter as tendências democráticas da época". (Gordon Wood, op. cit., p. 513)

A Constituição tinha por meta criar um governo nacional estável. Com esta finalidade os convencionais lutaram para "trazer a aristocracia natural de volta às suas funções, e conceder autoridade somente àqueles que — por natureza, educação e boas disposições — fossem qualificados para governar. Era este problema que a Constituição Federal desejava resolver". (Gordon Wood, op. cit., p. 510)

Numa perspectiva mais ampla, a Constituição pode ser vista como um documento político inspirado pelas forças sociais da época. Seus aspectos favorecedores de uma ordem social hierárquica, e o regime federativo que ela propunha, provocaram uma divisão dentro das próprias elites. Embora, em sua grande maioria, elas fossem favoráveis à forma republicana de governo, divergiam entre si a respeito da orientação política e social que a nova república deveria assumir.

5. Federalistas e anti-federalistas

Quando a Constituição entrou na fase de ratificação pelos estados, a vida política do país estava dividida: "Sendo a Constituição um programa elaborado pela velha classe dominante, a questão de sua ratificação produziu, pela primeira vez, uma divisão de amplitude nacional, segundo linhas de clivagem que, até então, haviam sido meramente locais". (Homer C. Hackett, Social and Political Growth of the American People, p. 298)

Aqueles que lhe eram favoráveis se auto-denominavam "federalistas", realçando a aspecto federativo do novo plano de governo, onde haveria um governo central dotado de autoridade suficiente para impedir a desagregação do país. Para os federalistas, diz Claude Bowers, "era impossível conceber um governo forte e capaz sem a direção da aristocracia". (Claude G. Bowers, Jefferson and Hamilton, the Struggle for Democracy in America - New York, Houghton Mifflin Company, 1925, p. 29)

Aqueles que se opunham a ela eram denominados "anti-federalistas", desfavoráveis a um governo central — por verem nele a manifestação aristocrática de uma elite dirigente — e adeptos do fortalecimento dos governos locais de índole populista. Na base dessa divisão estava a luta para formar o perfil cultural e político da nação.

"Tanto os proponentes como os oponentes da Constituição focalizaram, ao longo dos debates, um ponto essencial de sociologia política que, em última análise, deve ser utilizado para distinguir um federalista de um anti-federalista. Era fundamentalmente um debate entre aristocracia e democracia". (Gordon Wood, The Constitution, in: Gerald Grob and George Billias, eds., Interpretations of American History, - New York, Collier Macmillian, 1982, vol. 1, p. 175)

Homens pertencentes às diversas aristocracias locais eram encontrados em ambas as correntes políticas. Tal divisão, portanto, não foi uma luta entre as elites e as demais classes sociais, mas sim as próprias elites que se dividiram: uma facção adotou a marcha mais rápida da Revolução, e a outra a marcha mais lenta. (Plinio Corrêa de Oliveira, Revolution and Counter-Revolution - New Rochelle, Foundation for a Christian Civilization, 1980, p. 47)

Os anti-federalistas se opuseram à ratificação da Constituição, porque percebiam nela um plano aristocrático para solapar os princípios de governo popular, proclamados na Declaração de Independência, e para transferir o poder de muitos para poucos. (Cfr. Gordon Wood, op. cit., p. 516)

Os anti-federalistas se consideravam os verdadeiros campeões da luta pelos princípios revolucionários, democráticos e igualitários contra um governo formado pelas elites tradicionais do período colonial. De acordo com estes oponentes da Constituição, "ofenderia o gênio da democracia" instaurar um governo com poderes centrais, uma câmara alta dominada pela aristocracia na república, repudiando tudo aquilo pelo que se havia lutado em 1776. "Eles acusavam a nova Constituição de criar uma câmara alta aristocrática e uma presidência quase monárquica". (Thomas Dye and L. Zeigler, The Irony of Democracy, p. 54)

Os obstáculos à ratificação da Constituição, levantados pela poderosa facção antifederalista, foram efetivamente removidos quando a argumentação dos federalistas a favor de um governo central mais poderoso foi envolvida numa retórica e em princípios revolucionários, desmontando assim a oposição que lhe faziam os anti-federalistas; e permitindo que o pensamento federalista manifestado na Constituição parecesse a via mais razoável a ser seguida.

O desejo comum de impedir o fracasso da experiência republicana uniu temporariamente os principais líderes de ambas as facções em torno da Constituição, embora cada uma lhe desse sua própria interpretação.

Os federalistas, embora possuindo evidentes propensões aristocráticas e, em alguns, até monárquicas, afinal não voltaram as costas à república. Apesar dos aspectos anti-igualitários da Constituição, seus autores adotaram a retórica democrática da Revolução, ao considerar "o povo" como fonte exclusiva para "ordenar e estabelecer a Constituição para os Estados Unidos da América".

Neste sentido, o caminho estava aberto para uniformizar as bases do pensamento político e conduzir progressivamente a uma ideologia uniforme e dominante, democrática e liberal: "Os federalistas, em 1787, apressaram a destruição de qualquer chance ainda existente na América para o desenvolvimento de uma manifesta concepção aristocrática de política, e contribuíram assim para criar uma tradição liberal, dominante e abarcativa.... Ao tentar enfrentar e retardar o ímpeto da Revolução com a retórica da Revolução, os federalistas fixaram os termos para as futuras discussões da política americana. Eles assim levaram a ideologia da Revolução à sua plena realização, e criaram uma teoria política especificamente americana, mas à custa de um posterior empobrecimento do pensamento político americano". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, p. 562)

Ao adotar a retórica democrática da Revolução, a Constituição permitiu que as elites governassem a nova república sem romper abruptamente com o passado, e sem abandonar o cerne de suas doutrinas revolucionárias.

Os líderes federalistas que formularam a Constituição "não se viam a si mesmos repudiando a Revolução e o governo popular, mas salvando a ambos de seus excessos. Eles declararam repetidamente que, se a Constituição não tivesse sido promulgada, o republicanismo estaria arruinado e a grande experiência estaria perdida; a divisão da confederação, a monarquia ou até algo pior teria resultado". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, p. 517)

Assim, para estes mesmos líderes, "o movimento em direção ao novo governo centralizado tornou-se o último e supremo ato de toda a era revolucionária; foi tanto uma tentativa progressista para salvar a Revolução, em vista de seu iminente malogro, como um esforço reacionário para reprimir excessos". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, p. 475)

De fato, diante de um movimento no período pós-Independência, que tinha manifestações radicais espantosas, eles não contestaram doutrinariamente este radicalismo. Muitas disposições constitucionais inspiravam-se nos princípios revolucionários já presentes na Declaração de Independência. Porém, na ordem concreta, estabeleceram medidas conservadoras que preservavam os direitos inerentes às legítimas desigualdades sociais, à propriedade privada e à livre iniciativa.

Imbuídos de hábitos aristocráticos, os Founding Fathers, ao aceitar os princípios da democracia liberal, deixaram o caminho livre para as futuras transformações, que seriam mais no sentido de uma evolução dentro daquilo que a Constituição já estabelecera, do que de mudanças de natureza revolucionária.

6. Tendências aristocráticas e monárquicas na época da Independência e da Constituição

Como já foi visto, no início do processo revolucionário que resultou na Independência das 13 colônias, a maioria da população não pensava em separar-se da Inglaterra, nem sequer em mudar sua própria forma de governo. Até quase o fim do processo que levou à revolução armada, os norte-americanos reivindicaram apenas aqueles direitos e liberdades que consideraram comuns a todos os ingleses, permanecendo como súditos fiéis da Coroa Britânica.

Por isso, para a maioria dos habitantes, inicialmente o problema não se punha em termos de passar de uma colônia monárquica para uma república independente. Para eles, "a independência não se identificava com a república.... No início da agitação os americanos não estavam empenhados em derrubar a autoridade do Rei". (Pauline Maier, From Resistence to Revolution, pp. 288, 161)

Porém, a radicalização do confronto em suas fases finais, a Declaração de Independência e as constituições dos diversos estados deixaram bem claro que o conflito não era apenas para assegurar as liberdades constitucionais de todos os súditos ingleses, em cujo nome a revolta das colônias tinha sido feita. O conflito havia adquirido então um novo conteúdo ideológico: ele se havia tornado uma revolução republicana, "sustentada por um credo poderoso e milenarista, segundo o qual os americanos se viam não mais apenas lutando pela proteção de liberdades particulares, mas no ponto de inaugurar uma nova era de liberdade". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, p. 44)

Até então, mesmo o conceito de república enquanto forma de governo não era claro para a opinião pública, nem mesmo para aqueles que a desejavam implantar. "O próprio nome [república] inspirava confusão, a tal ponto que John Adams, talvez o mais erudito estudioso de política no país, queixava-se de que ‘nunca entendera’ o que é um governo republicano, e acreditava que ‘ninguém jamais entendera ou viria a entender’". (Pauline Maier, From Resistence to Revolution, p. 287)

O êxodo maciço dos loyalists politicamente atuantes e a severa repressão de sentimentos e manifestações monarquistas em outros setores da população revelou a existência de tendências monárquicas, latentes ou declaradas, que os revolucionários republicanos eram obrigados a energicamente enfrentar e reprimir, contrariando seus próprios princípios liberais.

Essas tendências não se extinguiram com a Independência, mas permaneceram dinâmicas ao longo do primeiro e crucial período da vida nacional. Elas se mostraram particularmente pujantes nas forças armadas da nova nação, no Exército Continental (Ver: Ordem de Cincinnati, item 3,4,a). O próprio Washington "comentou que, em mais de uma ocasião, ele havia sido pressionado para tornar-se um monarca". (Minor Meyers Jr., Liberty Without Anarchy, p. 84)

Nos períodos de Washington e Adams a presidência estava cercada de um cerimonial que emulava aqueles da realeza européia. As sensibilidades revolucionárias ficavam particularmente eriçadas quando o Chefe de Estado era conduzido em uma elegante carruagem puxada por seis cavalos brancos, com postilhões e lacaios em libré. Mais ofensivo ainda aos ouvidos republicano-democratas foi a proposta apresentada no Senado, de conceder ao presidente o tratamente de "Sua Alteza, o Presidente dos Estados Unidos da América" (His Highness, the President of the United States of America).

Este cerimonial era realizado para satisfazer as tendências dominantes na sociedade: "O governo estava inevitavelmente impregnado com o tônus dominante na sociedade.... Adams, e muitos outros, pensavam que algo da pompa e majestade das cortes do Velho Mundo era necessário, para impressionar o povo com a majestade e a autoridade do novo governo. O aroma de uma corte, embora de uma corte republicana, estava por toda a parte". (Merrill D. Peterson, Thomas Jefferson and the New Nation (New York: Oxford Univ. Press, 1970), pp. 405-406)

Uma prova insuspeita da existência e da difusão desses sentimentos aristocráticos e tendências monárquicas é a correspondência particular de Thomas Jefferson, um líder republicano-democrata, inteiramente contrário a eles.

Ao retornar à capital norte-americana em 1790, para assumir o posto de Secretário de Estado no governo de George Washington, assim descreve o sentimento monárquico prevalente no governo federalista da época: "Encontrei um estado de coisas que não teria julgado possível. Voltando após prolongada ausência, eu era festejado em todos os lugares.... A Revolução que eu deixara [em França], e aquela que nós havíamos realizado há pouco com a mudança de nosso governo, eram temas comuns de conversação. Fiquei perplexo em constatar a geral predominância dos sentimentos monárquicos. Tanto assim que, ao manifestar meus sentimentos republicanos, eu os tinha que sustentar contra todos, raramente encontrando entre eles um companheiro na defesa de meus argumentos.... O mais longe que alguém poderia ir, em apoio aos aspectos republicanos de nosso novo governo, seria dizer que "a presente Constituição está bem como um início, a ela deve ser concedida a oportunidade para ver se dá bom resultado; mas ela é, de fato, apenas uma pedra de apoio para algo melhor". (Arthur Schlesinger Jr., New Viewpoints in American History, p. 82)

A existência de tais propensões monárquicas naquela época foi reconhecida pelo próprio Washington, que sentiu necessidade de atenuá-las: "Após dizer que a monarquia era contrária à psicologia norte-americana, Washington (em carta a Madison, de 31 de Março de 1787) fez uma observação espantosa: ‘Para mim também é claro que, mesmo admitindo a utilidade e até a necessidade da forma monárquica, ainda não chegou o tempo de adotá-la sem abalar o país até seus fundamentos’. Ou seja, as objeções de Washington referiam-se à oportunidade, e não à idéia da monarquia. A época para a monarquia simplesmente ‘ainda não havia chegado’". (Minor Meyers Jr., Liberty Without Anarchy, p. 85)