Plinio Corrêa de Oliveira, com a beca de Professor universitário
Bem conhecemos o papel nefasto que teve a Renascença nesse plurissecular deperecimento da Civilização Cristã, que em nossos dias chegou à sua agonia. A Renascença foi um primeiro golpe desfechado contra a Cristandade, e, sob certo ângulo o poderíamos dizer, o mais carregado de malícia, pelo simples fato de ser o primeiro.
Doença de sintomas aparentemente menos extremados que os das três Revoluções que se lhe seguiram, primeira e profunda fenda, entretanto, no edifício arquitetônico da Idade Média, por onde penetraram os germens de destruição que operaram todo o restante, desde o Protestantismo, até o Comunismo. Nela estava já, como numa semente, todo o horror que se lhe seguiu.
Como se poderia esperar, a Renascença ocultou este veneno virulento que continha em seu bojo, e se apresentou com uma roupagem tentadora para os homens do ocaso da Idade Média. Era preciso para as forças do Mal encontrar um pretexto tentador, a Renascença haveria de ser uma ampla Revolução feita em nome da arte e da cultura.
* Os corifeus da Renascença tinham uma concepção toda peculiar de cultura: só a do classicismo greco-romano
Seus corifeus tinham, entretanto, uma concepção toda peculiar. Diziam eles que cultura havia uma só: a do classicismo greco-romano, a única a satisfazer plenamente os anelos da alma humana. Todas as outras que se pudessem imaginar, a egípcia, assíria, chinesa – que eles aliás conheciam muito vagamente – eram como que dialetos da cultura. Cultura por excelência, era a clássica. Uma vez que havia ela desaparecido, fazê-la renascer era dar nova vida a alguma coisa que havia morrido e que era o classicismo.
A Renascença era o renascer do mundo clássico; o renascer da Weltanschauung [concepção do universo, n.d.c.] dos clássicos, reputada verdadeira de modo absoluto para todos os tempos e para todos os lugares.
Aqui já se estabelece entre a Renascença e a maneira cristã de ver as coisas, uma espécie de dissonância profunda. Para nós, cultura é a expressão da alma de um povo, é a expressão de suas convicções e das condições em que ele vive.
Para nós, portanto, existem várias culturas. Pode-se falar numa cultura espanhola, como numa cultura japonesa, como numa cultura suíça. Existe, de fato, um ideal de perfeição humana. Mas esse ideal cada povo pode realizá-lo à sua maneira. E por isso mesmo afirmamos que, dentro de um só ideal genérico de cultura, cabem várias espécies diferentes.
Essas culturas não podem ser fabricadas de um modo completamente teórico. Elas nascem de circunstâncias históricas.
Dizer de uma cultura como a grega que em todos os tempos e em todos os lugares ela é a única verdadeira, constitui um absurdo que não podemos aceitar. Pois era sobre esse absurdo que estava construído o Renascentismo.
Os renascentistas, entretanto, iam ainda mais além, não se contentando com essa visão exclusivista de cultura. Como veremos pelos exemplos que passaremos a citar – e procuraremos aliás ilustrar todas as afirmações feitas nesta conferência com fatos históricos – teórica ou praticamente, os renascentistas agiam como se a cultura fosse o valor supremo.
* Os renascentistas agiam como se a cultura fosse o valor supremo, uma verdadeira adoração
Todos os exemplos que daremos ao longo desta explanação, ilustram, direta ou indiretamente, essa tese. Passo a citar alguns fatos especialmente significativos.
Pedro Aretino, pintado por Ticiano
Pedro Aretino, que viveu de 1492 a 1552, autor sem moral e sem escrúpulos, usava da sátira para detratar a quem não lhe agradava. Por isso, em uma época em que a fama importava muito, era temido e muito lisonjeado por todos aqueles que queriam gozar de suas boas graças e seus louvores. Recebia, por isso, muitas cartas, grande parte das quais publicou, assegurando, assim, a própria fama.
Na carta que a seguir transcrevemos, pode-se notar a adoração da cultura, o fraseado vazio, e o paganismo de uma das vítimas de Aretino:
“Eu digo que sois o filho de Deus, com a limitação, a fim de não me ver em um conflito com os frades mendicantes salmodiadores, de que Deus é a suprema verdade no Céu, e vós o sois na terra. Nenhuma cidade reúne as condições de Veneza para vos abrigar, porque sois o adorno da terra, o tesouro do mar, e a glória do céu; sois o vaso de ouro, cheio de pedras preciosas que se deveria colocar no dia da Ascensão no altar-mor da Igreja de São Marcos” (1).
A respeito de Afonso de Aragão, Rei de Nápoles, diz Onken:
“O entusiasmo e a admiração que lhe causavam as produções dos homens de grande talento eram tão naturais nele, que impressionavam profundamente as pessoas que tinham ocasião de observá-lo.
“A respeito disso se refere que, escutando um discurso de Gionazzo Manetti ficou tão absorto em seu trono, que parecia de bronze, sem mover-se nem sequer para afastar uma mosca. Em outra ocasião, diz-se que ouvindo a leitura de algumas páginas de Quinto Curcio ficou tão enlevado que se curou de um mal que o molestava. E o formoso exemplar de Tito Lívio que lhe foi enviado por Cosme de Medicis contribuiu muito para facilitar o estabelecimento da paz entre Nápoles e Florença” (2).
* A ereção da cultura em valor supremo gerou um profundo conflito de consciência
A ereção da cultura em valor supremo acentuava ainda mais o absurdo que já era o exclusivismo cultural da Renascença.
Desses absurdos decorria um conflito de consciência. Há uma expressão francesa que diz: “chassez le naturel, il reviendra au galope; expulsai o que é natural e ele voltará galopando”. Cada vez que se quer violar a ordem natural das coisas, a natureza se vinga com uma energia extraordinária, impondo conseqüências com que não contávamos.
Tomar uma Europa como a do século XV, ainda não dividida entre protestantes e católicos, mas homogeneamente católica; tomar uma Europa que tinha uma determinada formação histórica e que durante mil anos viveu uma civilização, e querer, de repente, que essa Europa abandone toda a sua tradição, todo o seu passado, e adote uma cultura morta há mil anos, é coisa simplesmente absurda. Até não se pode quase compreender como o homem renascentista pensou seriamente nisto.
Para entendermos como isso é absurdo, podemos imaginar o verdadeiro susto que têm os detratores de nossas idéias, quando pensam que queremos restaurar a Idade Média. Eles dizem:
“Algo que acabou há quinhentos anos atrás, vocês estão querendo restaurar?”
Os renascentistas queriam restaurar algo que acabara não há quinhentos, mas há mil anos!
O que então aconteceu? As almas de formação cristã, imbuídas, entretanto, de orientação pagã, sofreram um conflito de consciência. Tiveram diante de si um ideal de cultura pagão, como era o ideal clássico, vivendo, entretanto, idéias cristãs, que eram aquelas a que estavam habituados. A conseqüência era um conflito.
Diante dessa crise de consciência, vamos notar três atitudes de espírito diferentes.
1) De um lado, as pessoas que, por causa da admiração que têm pelo ideal pagão, vão abandonando o ideal cristão. E a cultura clássica atua nelas como um corrosivo. 2) Depois encontramos as que reagem contra esse ideal pagão. É a corrente, que na Alemanha, tomou o nome pejorativo de corrente obscurantista, que corresponde ao que hoje seriam os contra-revolucionários. 3) E entre essas duas correntes extremas, encontramos a das pessoas que, sendo pouco profundas, ou pouco sinceras para consigo mesmas, ou pouco lógicas, ou pouco coerentes, procuraram acumular as duas influências, conservando-se mais ou menos cristãs e ao mesmo tempo mais ou menos adeptas do neo-paganismo clássico.
Essa tentativa de conciliação entre extremos inconciliáveis é um procedimento dos espíritos parecido com o que hoje se dá entre o mundo moderno e os católicos. O mundo moderno é trabalhado a fundo por fermentos visceralmente anticatólicos. Mas à vista da influência do mundo moderno, nós encontramos católicos que procuram pagar de tal maneira o seu tributo de admiração a ele, que acabam deixando de ser católicos.
Ao lado disso, encontramos outras pessoas que, na reação contra o mundo moderno, para se conservarem católicas, chegam a uma atitude de nítida oposição. Há ainda as atitudes intermediárias, de pessoas que procuram conservar-se católicas, mas ao mesmo tempo possuem uma certa condescendência ou certa simpatia para com os defeitos do mundo moderno.
É claro que quando falamos em “mundo moderno”, ninguém precisa ter um estremecimento, porque não temos em mira o rádio em si, nem a televisão em si, nem coisas semelhantes. Quando dizemos que somos contra esses ativos fermentos pagãos do mundo moderno, não queremos afirmar-nos contrários às vacinas contra a paralisia infantil… seria muito infantil este modo de conceber o problema. Não entendemos por “mundo moderno” um conjunto de melhoramentos materiais que foram introduzidos na ordem concreta dos fatos, mas entendemos um certo espírito, uma certa mentalidade neo-pagã.
Uma divisão análoga a dos dias que correm foi a que se deu a Renascença.
* O entusiasmo delirante pelos autores pagãos criou nos homens da Renascença um modo de se exprimir, que a pretexto de ser completamente clássico, é perfeitamente pagão
Deram-se, então, fatos curiosos como este: o entusiasmo delirante pelos autores pagãos cria nos homens da Renascença um modo de se exprimir, que a pretexto de ser completamente clássico, é perfeitamente pagão.
Os autores clássicos não conheciam a religião católica, e por isso os princípios católicos não inspiravam seus vocabulários, suas figuras, sua oratória. Os neo-clássicos, embora católicos, começam a usar uma linguagem tipicamente pagã, na qual a religião católica absolutamente não figura.
Poderíamos citar aqui, por exemplo, um caso conhecido, o do humanista Bernardo Dovizi, autor de La Calandra, e mais conhecido pelo nome de Bibbiena, vila em que nasceu. La Calandra era uma peça imoralíssima. Os autores clássicos eram freqüentemente imorais e o classicismo se revestia no século XV de uma nítida tendência para a imoralidade. Este Bernardo Dovizi era autor de peças imorais. Ora, em seu enterro, um orador o saudou desta forma:
“Não investigamos a que ponto do Olimpo te levou a tua imortal virtude, em quadriga de ouro; mas quando percorreres os mundos celestes, para ver os heróis, não te esqueças de suplicar ao rei do céu e a todos os demais deuses, que aumentem à vida de Leão os anos que a Parca ímpia tirou a Juliano de Médicis e a ti, se querem conservar o culto que se lhes dedica na terra” (3).
Eis como as coisas foram longe, e como esta mentalidade renascentista penetrou fundo: este Leão de que se fala aqui é Leão X, o Papa. O orador no enterro de Bernardo, para fazer um elogio ao Papa, o inclui em toda esta mitologia. E, afinal de contas, era um homem católico que falava.
Papa Leão X com seus primos, os cardeais Giulio de’ Medici e Luigi de’ Rossi
Mais ainda: este Bernardo Dovizi, apesar de ser o autor que era, por ser grande literato, foi cumulado de honras pelo próprio Papa Leão X, que, no ano de 1513, chegou a elevá-lo ao cardinalato, e depois encarregou-o de várias missões. Por estes fatos pode-se ver a que extremos chegaram as coisas e como a influência do Renascentismo penetrou a fundo.
* Estranha simbiose entre paganismo e Cristianismo
Prossigamos, entretanto, em nossa exemplificação do que foi a infiltração da mentalidade pagã na Civilização Cristã do Ocidente.
É típico o que se disse de Jacob Sannazaro, outro humanista, que nasceu em Nápoles em 1458, tendo falecido na mesma cidade em 1530; viveu na corte de Frederico, rei de Nápoles, e publicou as obras de Giovanni Pontano, escreveu vários trabalhos, entre os quais um poema intitulado De Partu Virginis.
A respeito dele diz Oncken:
“Se nesta obra estão misturadas coisas pagãs e antigas com o cristianismo e a vida moderna, mistura esta que fere desagradavelmente nossos sentimentos estéticos, não se deve vituperar por causa disso o poeta, porque, naquele tempo, achava-se muito natural que os pastores mesclassem com seus cânticos junto do presépio em que jazia o Salvador do mundo, versos da Quarta Écloga de Virgílio, mesmo que o poeta atribuísse a Deus rasgos de Júpiter, ao Arcanjo Gabriel virtudes de Mercúrio, e à Virgem Maria qualidades de Dido, e, o que é pior a nossos olhos, mesmo que os designasse diretamente com nomes gentílicos, ou que dissesse que quando David cantava se comovia o Erebo, a Fúria mostrava os dentes de ódio, estremecia-se o Cocito, e Sísifo ficava imóvel, ou então quando, para dar mais crédito ao Profeta do Jordão, faz passar suas profecias pelas de Proteo” (4).
Como se a religião Católica não tivesse beleza, nem prestígio suficiente para se impor às almas dos povos, sendo preciso pintar e decorar Nossa Senhora como Dido, e associar o Padre Eterno a Júpiter, para que os homens se interessassem um tanto por Ele! Isto representa um formidável deslocamento interno para as almas.
Outro fato significativo, é uma afirmação de Petrarca. Esse autor, que ainda passa por ser dos poetas católicos, exalta a poesia, dizendo que, muito ao contrário daqueles que chamavam os poetas de embusteiros, ele os equiparava aos profetas. Dizia que os poetas, como os profetas, tinham visões maravilhosas. Eis, pois, o poeta clássico equiparado ao profeta do Antigo Testamento, que profetizou a vinda de Cristo.
* Nessa “época de cultura”, renasceram antigas superstições e em face delas se procedia com extrema condescendência
Vamos agora constatar como renasceram, nessa “época de cultura”, antigas superstições, e como em face delas se procedia com extrema condescendência.
Dante, retratado por Rafael
A respeito de Dante, que é considerado por alguns um precursor da Renascença, Oncken diz o seguinte:
“Tinha ele o costume ou a afeição de aduzir juntos exemplos gentílicos e eclesiásticos, como se atribuísse igual autoridade a uns e outros. Porque reconhecia no governo do universo a influência do destino, do fado, que os antigos colocavam em igual e até em maior altura que os deuses”.
Toda a antigüidade foi fatalista. Os antigos acreditavam num fado que estava acima dos deuses e que marcava inexoravelmente o destino dos homens. “Em Dante, diz Oncken se encontra esta influência”.
“Assim, numa passagem abandona, pela boca de Virgílio, seu poeta favorito, o governo do mundo ao deus fortuna, com o que, se bem que indiretamente, desconhece e rebaixa a sabedoria e bondade de Deus, que recompensa e castiga os homens, segundo seus merecimentos e suas culpas” (5).
Há aqui outra coisa curiosa. Os espíritos racionalistas, que começavam a aparecer naquele tempo, combatiam juntos todas as superstições da Idade Média, ou seja, as idéias de bruxas, de feitiços, de todos estes resquícios bárbaros. Ao mesmo tempo, atacavam o culto das relíquias e algumas práticas católicas que julgavam supersticiosas. Mas, a adoração do mundo antigo era tão funda neles, que não se lembravam de combater as superstições dos gregos e romanos, os quais eram extraordinariamente supersticiosos.
Por exemplo, encontramos, na história dos romanos, generais que têm todo um plano de batalha traçado, e que quando está prestes a se ferir, têm receio que um fado cego pese sobre eles e os derrote, e vão então consultar os augúrios, para saber se os fados são favoráveis a eles ou não. Quais são os processos que usam para saber se realizará a batalha? Soltam determinados cavalos no pasto, e, depois de correrem muito, mandam recolher sua baba; conforme a densidade dela eles decidem se vão ou não dar à batalha…
Ou então mandam tomar frangos, esvaziá-los das suas entranhas e as examinar; de acordo com o seu colorido ou a sua posição, determinados sacerdotes estão aptos a dizer se a resposta é sim ou não. Ou então, soltam um cavalo manco no pasto; conforme o modo do cavalo mancar, a batalha será realizada. Desse modo, os planos de um Cipião ou de um César ficam suspensos devido à marcha de um cavalo manco…
Por que, pergunta um autor – protestante e inimigo da Idade Média –, por que acusar de superstição essa época histórica, e, de outro lado, não ver a superstição dos romanos e dos gregos? Ele mesmo dá essa resposta: é que para aqueles homens, imbuídos de profundo respeito e até de veneração pelo mundo antigo, parecia uma impiedade lembrar as fraquezas dessa quadra da História.
A contradição parecerá gritante. Afinal, por que tanta severidade para com a superstição da Idade Média, e por outro lado, por que tanta tolerância para com o mundo romano?
Entretanto, o ensino de História de hoje em dia é feito precisamente assim. Porventura não ouvimos falar durante toda nossa vida que as superstições grassavam na Idade Média? No entanto, já ouvimos falar alguma vez que alguém é supersticioso como um grego ou um romano? Por que razão isto se dá? É porque a propaganda continua nos colocando uma venda para não considerarmos corretamente o mundo antigo.
Além do mais, a Renascença está muito longe de estar tão morta quanto se costuma afirmar. Mas continuemos na análise das concepções do homem da Renascença.
Erasmo de Rotterdan, por Hans Holbein
* Argumentos pagãos como fundamento da teologia católica?
É muito significativa uma exclamação do famoso Erasmo de Rotterdan, uma das figuras mais salientes do humanismo: “Oh! São Sócrates, rogai por nós!”.
Sócrates, como sabemos, suicidou-se; foi acusado de um crime horroroso, que era de induzir a mocidade grega à homossexualidade, e não está provado que a acusação fosse falsa. Sendo monoteísta, ocultou durante o processo sua religião, e disse que acreditava em todos os deuses de Atenas, para escapar à condenação à morte.
Esse Sócrates, para Erasmo, que era clérigo católico, despertava tanto entusiasmo, que ele se referia a Sócrates como a um Santo. Se pelo menos Erasmo tivesse veneração pelos santos católicos! Mas ele era um péssimo clérigo, no qual não se nota nem um traço de piedade sincera e profunda. O culto de “são” Sócrates tinha expulso do coração de Erasmo os outros cultos.
Mais adiante, a respeito de Cícero, ele diz:
“Sempre que leio algum discurso de Cícero, beijo o livro e venero seu espírito santo e cheio de inspiração divina“ (6).
Isto se faz com o Santo Evangelho. Erasmo se lembra desse rito católico e o emprega com Cícero, de quem, sob o ponto de vista moral, tanta coisa haveria a dizer.
Gregório Reysch, professor da Universidade de Friburg, escreveu uma espécie de enciclopédia filosófica, intitulada “Margarita Philosóphica”. Como é sabido, “margarita” significa pérola, portanto sua tradução seria pérola filosófica. Ela nos dá a conhecer o que era naquele tempo a filosofia.
Os estudos do autor revelam-se, sobretudo, quando demonstra, com a autoridade de Platão, a imortalidade da alma. A tese evidentemente é verdadeira; o que é significativo é que ele a demonstra com Platão. E acrescenta, para maior abundância de argumentação, textos da Sagrada Escritura. Como se a Sagrada Escritura fosse uma espécie de supérfluo! Mas o argumento a respeito da imortalidade, que realmente pesa, não é a Sagrada Escritura, mas Platão, o divino Platão.
Pico della Mirandola, que é uma das figuras mais caracteristicamente renascentistas, erudito famoso que se dispunha a dissertar sobre todas as coisas cognoscíveis pelo homem, era outro grande admirador de Platão.
Ele tinha em sua casa um oratório a Platão, diante do qual havia uma lamparina acesa. Mas como ele era católico e não queria esquecer-se disso, tinha em outro aposento, com permissão da Santa Igreja, o Santíssimo Sacramento. Diante do Santíssimo ele acendia uma lamparina idêntica à que colocava diante da imagem de Platão. E com isto este homem pensava que andava bem; fazia a Jesus Sacramentado a honra, para não dizer a esmola, de acreditar nEle, e, em segundo lugar, lhe fazia a honra muito maior de O tratar em pé de igualdade com Platão. Para um carpinteiro da Galiléia, era boa fortuna ser tratado como Platão.
A respeito da obra de Gregório Reysch, “Margarita Philosofica”, diz Oncken:
“Esta mescla de escolástica (a filosofia católica por excelência) e humanismo se manifesta em todo o livro, no estilo, nos esforços para por um lado, escrever castiçamente, e por outro conservar o tom antigo; e nas próprias ilustrações, nas quais lutam os conceitos infantis com rasgos artísticos” (7).
Outra obra muito interessante publicada na Renascença é a chamada Il Tesoretto – o Tesourinho.
“Estava destinada a ser uma enciclopédia, mas o autor não fez mais que começá-la, sem ir adiante. Nela refere que, regressando da Espanha, triste pela derrota dos guelfos, e atravessando uma selva, encontrou a Natureza, que lhe deu minuciosas lições sobre assuntos físicos. Mais adiante se deparou com a Virtude e suas quatro filhas, a Prudência, o Valor, a Sobriedade e a Justiça, que lhe deu por sua vez lições de moral. Finalmente encontrou o Amor, que também quis dar lições ao viajante, mas este se lhe mostrou esquivo e foi libertado de tão perigosos laços por Ovídio” (8).
Eis um verdadeiro pesadelo mitológico. Um católico que atravesse uma selva e não encontra santos! As virtudes não são representadas por anjos! Em vez de santos e de anjos, encontra seres abstratos, mais ou menos à imagem de deuses mitológicos que lhe vêm falar; e depois aparece Ovídio.
“Dali diz que se dirigiu a Montpellier, onde confessou seus pecados, e foi depois alcançado em outro bosque por Ptolomeu, o qual lhe ensinou as ciências que ainda lhe faltavam, mas neste ponto deixou Latini seu poema, de modo que falta esta parte do ensinamento que haveria de completar o da Virtude e o da Natureza” (9).
* O católico deve ser adorador de Jesus Cristo com toda a alma e todo o coração. Tem que pertencer à Igreja sem mescla nem heterogeneidade de coisa alguma estranha a Ela
Uma das almas em que o conflito entre o mundo clássico e o mundo cristão foi mais violento, foi a do grande Petrarca. A respeito dele, João Batista Weiss diz o seguinte:
“Do mesmo modo que o poeta da Divina Comédia, Francisco Petrarca conservou-se no terreno da Igreja, e soube juntar à sua entusiástica inclinação para com a antiguidade clássica, a veneração crente para com o cristianismo. Seu fanático entusiasmo pelo antigo, não foi tão longe que se esquecesse, por isso, da sublimidade dos mistérios cristãos” (10).
Basta saber o que é uma verdadeira formação católica, para compreender que um católico não pode ser fanático por nada. Ele deve ser um adorador de Jesus Cristo com toda a alma e todo o coração. Ele tem que pertencer à Igreja sem mescla nem heterogeneidade de coisa alguma estranha a Ela. Um católico só pode ser inteiramente católico. Ora, um católico fanático pelo mundo antigo é um católico dividido, que obedece a dois senhores.
Compreende-se, pois, porque razão não se pode admitir isto na alma de um verdadeiro católico. No entanto, era esse o drama a que culposamente estava sujeito Petrarca.
E continua o mesmo Autor:
“Antes, pelo contrário, com a maior resolução, afirmou aquele poeta muitas vezes que tinha o Evangelho em lugar mais alto que toda a sabedoria dos antigos. Só então se podem amar as escolas dos filósofos e consentir com elas – escreve Petrarca a seu amigo João Colonna – quando não se separam da verdade, nem se apartam do nosso supremo fim. Se alguém se atrevesse a intentar isto, ainda que fosse Platão ou Aristóteles, Varrão ou Cícero, deveríamos com livre constância, desprezá-lo e calcá-lo aos pés” (11).
Esta não deixa de ser, aparentemente, uma declaração tranqüilizadora até certo ponto.
“Nenhuma agudeza de argumentação, nenhuma graça de linguagem, nenhuma celebridade dos nomes, pode extraviar-nos; apesar de tudo, eles foram apenas homens eruditos, até onde alcança a investigação humana, brilhantes por sua eloqüência, favorecidos com os dons naturais; mais dignos de compaixão porque careceram do soberano e inefável bem; e porque somente confiaram em suas próprias forças e não se esforçaram por chegar à verdadeira luz, caíram muitas vezes, à maneira de cegos. Admiremos, pois, os dons do seu engenho, mas de tal maneira, que adoremos o Criador esses mesmos dons. Compadeçamo-nos dos erros daqueles homens e felicitemo-nos ao mesmo tempo, reconhecendo que, por graça e sem nosso merecimento, fomos antepostos a nossos predecessores, por Aquele que esconde seus mistérios aos sábios e os descobre gratuitamente aos pequeninos. Filosofemos de tal sorte, que amemos a Sabedoria. Mas a verdadeira Sabedoria de Deus é Cristo. E para filosofar de verdade, devemos antes de todas as coisas, amá-lO e adorá-lO” (12).
Aparentemente não se pode querer melhor.
“Antes de tudo, devemos ser cristãos” (13).
É o que nos diz o Poeta renascentista.
Petrarca
Ainda a respeito da mentalidade de Petrarca, há um fato muito significativo, que foi sua coroação no Capitólio.
“Este fato”, diz Gregorovius, “abriu na realidade um novo período de civilização. Em meio dos crimes que acompanhavam as contendas dos partidos, no melancólico abandono em que jazia Roma, destaca-se este dia glorioso do poeta inundado pela luz da mais pura humanidade. Do Capitólio recordou o vate (?) ao mundo mergulhado no ódio e na superstição, que o trabalho intelectual haveria de ser o seu salvador, sua obrigação constante e necessária, sua missão mais elevada, seu triunfo mais belo” (14).
* Para o católico, não é o trabalho intelectual o que há de mais elevado. É a Fé. Aquele tem seu mérito, mas só se considerado dentro da Fé
Para o católico, entretanto, não é o trabalho intelectual o que há de mais elevado. É a fé. O trabalho intelectual tem seu mérito, seu papel importantíssimo, mas só se considerado dentro da fé.
Com base nesses exemplos, vê-se o que era o conflito de alma do homem da Renascença e as diferentes direções tomadas.
De um lado, alguns que chegam às últimas conseqüências e caem no pleno abandono da Igreja. De outro, os que tomam em relação à Igreja uma posição claudicante, como um Petrarca, agarrado a Ela, mas fascinado por algo que não é Ela. Ele se agarra às pranchas da fé e seu corpo ainda fica do lado dessa Fé, mas seu coração voa para o classicismo.
Retomemos, entretanto, o fio de nosso pensamento.
Depois de ter sido coroado solenemente como poeta, no Capitólio, Petrarca dirigiu-se à Basílica de São Pedro, para depositar aos pés do Príncipe dos Apóstolos sua coroa de louros.
É uma atitude aparentemente magnífica, à qual nada parece se dever acrescentar, como acontece também com a fraseologia que transcrevemos um pouco mais acima. Tem-se impressão que o equilíbrio entre as duas influências está bem estabelecido.
Em tudo, entretanto, algo de sutil se esconde. Para um verdadeiro católico, não é suficiente que a cultura clássica e os valores cristãos coexistam em sua alma, da mesma forma que uma pequena colina pode estar ao lado de uma grande montanha, sendo que esta domina aquela com toda a sua massa. Ninguém pode dizer que estamos em dia com a Igreja, quando afirmamos que o mais alto valor de nossa alma é o amor e a fidelidade a Ela.
Mas é preciso, mais ainda, que todas as coisas sejam amadas em função da Igreja e com o espírito da Igreja, e não sejam mais que um capítulo dentro do seu patrimônio.
No espírito da Renascença, entretanto há um dualismo. O esforço de Petrarca para conservar a religião católica em sua alma, acima de tudo, e, por outro lado, o fato de ele não compreender que este quisto de classicismo deveria ser amado em função da doutrina da Igreja e não como um valor em si, é um elemento de dualismo.
Notas:
Onken: “História Universal”, de Guillermo Onken – Mantaner y Simon, editores – Barcelona, 1929.
Weiss: “História Universal”, de J. B. Weiss – Tipografia La Educacion – Barcelona, 1929.
(1) Onken, vol. XIX, pág. 108
(2) Onken, vol. XIX, pág. 64
(3) Onken, vol. XIX, pág. 101
(4) Onken, vol. XIX, págs. 70 e 71
(5) Onken, vol. XVIII, págs. 496 e 497
(6) Onken, vol. XIX, pág. 232
(7) Onken, vol. XIX, pág. 212
(8) Onken, vol. XVIII, pág. 487
(9) Onken, vol. XVIII, pág. 487
(10) Weiss, vol. VIII, pág. 125
(11) Weiss, vol. VIII, pág. 125
(12) Weiss, vol. VIII, pág. 126
(13) Weiss, vol. VIII, pág. 126
(14) Onken, vol. XVIII, pág. 503