Catolicismo Nº 139 – Julho de 1962
A Reforma Agrária e o caráter sagrado do Direito de Propriedade
CARTA AO SR. PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Os autores de “Reforma Agrária – Questão de Consciência”, D. Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D., Arcebispo de Diamantina, D. Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos, Prof. Plinio Corrêa de Oliveira e economista Luiz Mendonça de Freitas, vêm dirigir ao Exmo. Sr. Dr. João Goulart, Presidente da República, a seguinte carta:
Diamantina, 9 de junho de 1962
Excelentíssimo Sr. Dr. João Goulart
DD. Presidente da República
Senhor Presidente
Apresentando a Vossa Excelência nossas cordiais e respeitosas saudações, pedimos sua valiosa atenção para algumas considerações que nos sentimos no dever moral de lhe expor, como autores do livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência”.
AS GRAVES APREENSÕES DE UMA CORRENTE DE OPINIÃO ORDEIRA E PATRIÓTICA
Esse livro, Senhor Presidente, de tal maneira exprimiu as convicções, as preocupações e os anelos de milhares de brasileiros, que em torno dele se constituiu uma corrente de opinião generalizada e atuante. Tal corrente de opinião, que a todo instante auscultamos, não tem outra aspiração senão de cooperar com todos os brasileiros para o bem comum, no mais inteiro respeito à lei e às Autoridades constituídas. Ela é, pois, uma força desejosa de colaborar desinteressadamente com Vossa Excelência para a solução dos problemas nacionais.
Assim, em um espírito de respeitosa cooperação, trazemos ao conhecimento de Vossa Excelência a angústia de que no momento se sentem presos os que consideram os problemas rurais do Brasil segundo as teses do livro “Reforma Agrária — Questão de Consciência”. Com efeito, a primeira condição da colaboração com um governo realmente bem intencionado, consiste em dizer-lhe com ânimo ordeiro e respeitoso, toda a verdade. E a verdade que nos cumpre afirmar neste momento é que milhões de brasileiros se sentiram desconcertados e sobressaltados ante o pronunciamento sobre a reforma agrária, contido no discurso que Vossa Excelência pronunciou em Santos a 13 de maio p.p. Permita-nos Vossa Excelência trazer a seu alto conhecimento os motivos desse modo de sentir.
UM TEXTO BÁSICO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Segundo as palavras de Vossa Excelência, existe na Constituição Federal um texto “que diz taxativamente que as desapropriações só poderão ser feitas mediante o pagamento justo da terra e a antecipação, em dinheiro, do valor justo da mesma terra”.
Esse texto é o art. 141, §16. Ora, em nossa Constituição, Senhor Presidente, como em todas, há disposições mais importantes e outras menos. Esta, a que Vossa Excelência alude, é das mais essenciais. Com efeito, segundo Leão XIII, o direito de adquirir honestamente bens, de os possuir com uma estabilidade inviolável, e de os transmitir sem turbação de qualquer espécie aos descendentes — em suma, o direito de propriedade — constitui atributo natural e inamissível da pessoa humana. O art. 141, § 16, da Constituição Federal garante assim um princípio básico da moral católica e da civilização cristã. Com efeito, ele dá aos brasileiros a certeza de que as propriedades que eles têm, ou que esperam adquirir em virtude de um trabalho honrado, não poderão ser desapropriadas mediante o pagamento de preço injusto ou até irrisório. Certeza preciosa, de vez que tal desapropriação constituiria uma espoliação não só injusta, mas pungentemente injusta se operada pelo Poder Público a quem incumbe a missão sagrada de proteger os direitos das pessoas e das famílias.
REFORMA CONSTITUCIONAL QUE ABALARIA PROFUNDAMENTE O DIREITO DE PROPRIEDADE
A revogação desse dispositivo não seria uma reforma constitucional qualquer. Pois se se reconhece ao Poder Público o direito de desapropriar imóveis rurais a preço que não seja justo e que, pelo contrário, resulte de critérios arbitrários por ele fixados em lei ordinária, não é só a Constituição que se reforma, mas é um princípio que se afirma, o qual acarreta a derrocada de todo o nosso regime econômico e social.
Com efeito, admitido tal princípio, o proprietário — e com ele sua família — perderia toda a estabilidade indissociável do direito de propriedade. Ele só continuaria proprietário enquanto o Poder Público não resolvesse apossar-se de sua terra por um preço qualquer. Ser proprietário seria viver de uma benigna concessão do Estado: concessão que este poderia ir restringindo ou extinguindo aqui e acolá, quando e como entendesse.
NEGAÇÃO IMPLÍCITA DA PROPRIEDADE URBANA, INDUSTRIAL E COMERCIAL
Estaria, assim. abolida a inviolabilidade do direito de propriedade, e destruído o regime econômico e social vigente. Dizemos que todo direito de propriedade estaria abolido, pois o direito de propriedade é uno. Negado na lavoura, está negado na cidade, no comércio e na indústria. A prerrogativa de desapropriar a preço injusto, manejada hoje contra o agricultor, seria fatalmente voltada amanhã contra o proprietário urbano, o industrial, ou o dono de uma empresa comercial.
DITADURA ECONÔMICO-POLÍTICA
Reconhecida ao Poder Público, em princípio, pela revogação do art. 141, § 16, da Constituição, a formidável prerrogativa de desapropriar a preço injusto, ficaria aberta a porta para toda uma legislação constitucional ou ordinária que, dispondo a seu talante dos bens de todos os indivíduos, instaurasse sob as aparências de um regime político normal, uma verdadeira ditadura econômica. Essa ditadura facilmente se poderia converter em instrumento da demagogia ou de vinganças partidárias.
O TRABALHO MANUAL ERIGIDO EM TÍTULO DE PROPRIEDADE DA TERRA
Qual não é pois, a apreensão do milhões de brasileiros, diante das seguintes palavras do discurso de Vossa Excelência: “Sou favorável a que se pague ao proprietário, mas que se pague o valor à altura daquilo que se pode pagar, e que o pagamento seja feito a longo prazo e em quaisquer títulos da União, mas não em dinheiro”, etc. E por isto, porque tal modalidade de Indenização não representa o justo preço consagrado na Constituição, Vossa Excelência aponta como necessária a reforma da Constituição.
Em outros termos, para fazer a reforma agrária deve-se aniquilar virtualmente o direito de propriedade, e submeter desde logo ao arbítrio do Poder Público, e, pois, de eventual perseguição política, todos os agricultores e criadores do Brasil, isto é, uma das forças produtoras de importância básica para a economia nacional.
Que segundo a reforma constitucional aventada por Vossa Excelência não assistirá ao proprietário rural o direito de indenização justa, evidencia—se nesta frase de seu discurso: “Não chegaremos a fazer reforma agrária se o País for obrigado a despender quantias fabulosas na aquisição de terras e a pagar preços que sirvam, no fim, não para ajudar o operário, mas para enriquecer mais o latifundiário”. Em outras palavras, é preponderantemente segundo as conveniências do trabalhador rural e para que este possa ficar dono da terra, que o preço se fixa. Neste princípio está implícita a máxima não cristã, mas socialista, de que a terra pertence sempre a quem nela trabalha.
UMA HIPÓTESE INEXISTENTE
Para atender às necessidades do trabalhador rural, uma hipótese só haveria, Senhor Presidente, uma hipótese única e excepcional, que justificaria para uma situação dada ( e nunca de modo estável e habitual ) o exercício da função expropriatória do Poder Público com toda a envergadura proposta por Vossa Excelência. Se a situação agrária no Brasil fosse tal, que o operário agrícola só conseguisse condições de existência humanas e dignas mediante uma partilha de propriedades particulares, esta teria de ser feita por preço e condições de pagamento que não onerassem exorbitantemente a economia nacional.
Mas, verifica-se atualmente essa hipótese no Brasil? Seria básico, do ponto de vista moral, demonstrá-lo irretorquivelmente. Pois o direito de propriedade dos agricultores sendo líquido e certo, só poderia ser abalado por fato concreto também líquido e certo. Hipótese tão especial, de conseqüências tão graves, não se pode presumir verdadeira: só poderia ser aceita caso se provasse com clareza meridiana.
Ora, no livro “Reforma Agrária — Questão de Consciência”, tivemos ocasião de afirmar — sem sofrer até o presente a menor contradita nas numerosas Invectivas dos propugnadores do agro-reformismo socialista — que todos os dados existentes, ao invés de demonstrarem a realidade dessa hipótese, são de molde a conduzir precisamente à convicção contrária. Tudo quanto se conhece da realidade, quer pelas estatísticas, quer pela observação serena e ponderada dos fatos, leva à persuasão de que, por meio do salário justo e familiar, da parceria, de financiamentos criteriosos, da divisão espontânea das grandes propriedades nas zonas densamente povoadas, da ampla e corajosa colonização das terras devolutas, etc., pode-se chegar sem violência nem abalo do direito de propriedade, a uma verdadeira melhoria da situação do trabalhador rural brasileiro.
Nesse sentido, o livro “Reforma Agrária — Questão de Consciência” contém ponderações que nos atrevemos a considerar dignas de análise. E outros opositores do agro-reformismo socialista têm produzido em abono desta tese argumentos dignos da atenção de Vossa Excelência. Se, entretanto, Vossa Excelência se der ao trabalho de ponderar os argumentos dos propugnadores do agro-reformismo confiscatório, encontrará neste particular apenas afirmações vagas e enfáticas, destituídas de fundamentação objetiva.
Nada prova a hipótese em apreço, e tudo a rejeita.
GRAVES INCONVENIENTES DA PARTILHA COMPULSÓRIA DAS PROPRIEDADES PARTICULARES
Além disto, a partilha compulsória das propriedades particulares apresenta graves inconvenientes, pois ela se afigura:
A) INEFICIENTE: Admitamos, ad argumentandum, que a satisfação das legítimas exigências de uma vida humana para o trabalhador rural reclamasse a intervenção do Poder Público para promover uma distribuição de terras. Neste caso o Poder Público se encontraria no Brasil em condições sumamente favoráveis. Pois os maiores donos de latifúndios são em nosso País a União, os Estados e os Municípios, que, no seu conjunto — segundo os mais recentes dados publicados, que são os do recenseamento de 1950 — possuem incultos quase 75% do território nacional. Em comparação com esse latifundiário Moloch, um dos maiores do globo, que é o Estado brasileiro, não passam de formigas os maiores latifundiários particulares. Seria contrário ao senso político retalhar formigas para saciar as necessidades sociais, deixando intactas as carnes opulentas do Moloch.
Ao invés de se derrogar o art. 141, § 16, o problema agrário nacional mais facilmente se resolveria caso se desse cumprimento pleno ao art. 156 de nossa Carta Magna, que consagra nossa vocação colonizadora nos seguintes termos: “Art. 156 — A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras públicas ( … )”.
B) ALTAMENTE INJUSTA: E seria flagrantemente injusto que o Poder Público deitasse a mão aos patrimônios particulares, quando lhe sobram largamente meios para atender os trabalhadores rurais.
C) INUTILMENTE ONEROSA: Ademais, se é excessivamente onerosO pagar o justo preço aos proprietários rurais, os princípios de uma sã economia mandam que, em lugar de expropriar as terras destes, pagando-lhes um preço ainda que vil, o Poder Público distribua as terras que a ele mesmo pertencem, que não cultiva, e cuja cessão nada lhe custaria.
D) CONTRÁRIA AO PROGRESSO DO PAÍS: Colonizando as terras devolutas, o Poder Público atenderia aos mais altos interesses do Brasil. Os Presidentes antecessores de Vossa Excelência, e notadamente os Srs. Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, preconizaram como condição indispensável para o progresso do País a expando deste dentro de suas fronteiras, isto é, a chamada Marcha para o Oeste. Para isto, se abriram com imenso ônus para e erário estradas como a Belém-Brasília e a Brasília-Acre, e se construiu a nova Capital.
Parece lógico que, se há relativo excesso de população em certas áreas do País, este excesso seja encaminhado para as áreas despovoadas, de que o Poder Público dispõe. Assim é que em todas as épocas se foi povoando a terra. E assim é que se terá de povoar o Brasil.
Nosso dever consiste em proceder a esse povoamento, aproveitando as riquezas incalculáveis que Deus nos deu, em lugar de desencadearmos um processo de atentados às propriedades legítimas, processo inútil, contrário ao interesso público e, por isto mesmo, falho de qualquer fundamentação jurídica ou moral no bem comum.
E) PERIGOSA PARA A INTEGRIDADE DO TERRITÓRIO NACIONAL: Deixando de colonizar as terras virgens pertencentes ao Poder Público, poremos em risco a própria soberania nacional. Se outros povos virem que o Brasil do século XX tem horror ao desbravamento e povoamento do sertão — que nos tornou célebres em tempos idos — e que hoje chegamos a ponto de preferir os riscos de uma revolução social, ao aproveitamento de nossas próprias selvas, não sentirão aqueles povos, Senhor Presidente, levantarem-se em si cobiças perigosas para a soberania nacional?
F) PERIGOSA PARA A PROSPERIDADE AGROPECUÁRIA DO PAÍS: Derrogado o art. 141, §16, da Constituição, e admitida assim a desapropriação mediante preço injusto, deixará de ser excluído por nossa Lei Magna o princípio de que ao Poder Público compete retalhar a seu talante as propriedade. rurais. A seu talante, dizemos, pois na atual conjuntura histórica, em que o sopro assolador do socialismo varre todo o mundo, o Estado poderá figurar situações de necessidade inexistentes e que por muito tempo ainda não existirão no Brasil, para alterar em sentido igualitário nossa estrutura rural. Não se trata apenas de uma hipótese, permita-nos Vossa Excelência dizer, mas é esta precisamente a situação concreta diante da qual nos encontramos. E ao proprietário desamparado não poderá socorrer a Justiça, à qual é vedado, segundo nessa legislação, pronunciar-se sobre a autenticidade da necessidade pública ou interesse social alegados pelo poder expropriante.
Esta reforma constitucional introduzirá, pois, a incerteza e o caos em nossa vida rural.
Para o mesmo efeito concorrerá a grave insegurança que sobre a classe agrícola faz pairar o caráter vago da preconizada reforma, no que diz respeito a outro ponto.
Quais as propriedades que se retalharão? As grandes? As medias? No ambiente convulsionado de nossos dias, ninguém o pode prever. E ainda que por ora se visasse só o latifúndio, como delimitar o que seja um latifúndio na diversidade das condições do Brasil?
Diante do caráter necessariamente vago de qualquer delimitação fixada em lei, entraríamos em um período de agitação rural que só cessaria com o estabelecimento de uma estrutura agrária constante de miríades de pequenas propriedades.
Ora, nunca se poderia justificar, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista prático, o retalhamento das grandes e eventualmente das médias propriedades, sem ter a certeza de que as pequenas propriedades atendem sempre às conveniências do trabalhador e aumentam sempre a produção.
E para esta certeza não há fundamento. A experiência, com efeito, ensina que o tamanho de uma propriedade é função do solo, da cultura e da densidade demográfica. Por isso a Enciclica “Mater et Magistra” proclama que “ninguém pode fixar de modo genérico qual seja a estrutura agrícola mais conveniente, visto haver grandes diferenças, neste setor, dentro de cada país e mais ainda nas diversas partes do mundo”. O que sobretudo é válido para um imenso país como o nosso. Normalmente as propriedades não devem ser todas grandes, nem médias, nem pequenas. E a formação de uma estrutura rural toda constituída de pequenas propriedades, a que facilmente nos poderá conduzir — queiramos ou não — a derrogação do art. 141, §16, da Constituição, representará grave prejuízo para as atividades agropecuárias do País.
Acresce que uma outra interrogação se poderia fazer sobre as pequenas propriedades no Brasil.
Perguntamos: a experiência de tais propriedades, que temos à vista, justifica as esperanças que nelas se depositam? Não há estudo suficiente sobre a matéria. Parece, contudo, que elas em muitas regiões se arrastam e vegetam, órfãs da assistência do Poder Público. Não seria, pois, uma aventura mudar todas as bases da nossa estrutura rural, assentando-a sobre fundamentos mal conhecidos e, no que têm de conhecido, muito duvidosos?
Compreendemos que se poderia objetar que as pequenas propriedades criadas em conseqüência da reforma constitucional seriam assistidas pelo Poder Público. O argumento não seria difícil de refutar. Se atualmente o Estado não dá e não pode dar assistência adequada aos dois milhões de propriedades rurais existentes, como pode prometê-la a milhares ou milhões de propriedades novas?
E, Senhor Presidente, o que nos diz a experiência, sobre a eficiência do Poder Público nesta tarefa? Apoiar sobre a esperança dessa eficiência toda a nossa reestruturação rural importaria – para resumir o problema em uma palavra – em correr o grave risco de transformar num Lloyd Brasileiro a agricultura do Brasil. Nesse dia, quem terá ganho? O proprietário espoliado? Nunca.. Também não o pobre trabalhador rural, escravo de uma agricultura deficitária dirigida por uma burocracia incapaz. Nem ainda os detentores do Poder Público, naturalmente empenhados em promover a prosperidade geral, e postos então a braços com uma crise ciclópica. Só terão ganho os interessados na promoção da miséria, da agitação e da luta de classes.
DEFESA DESINTERESSADA DE UM PRINCÍPIO MORAL
Essas considerações, Senhor Presidente, não são inspiradas por qualquer preocupação partidária, pois os signatários são notoriamente alheios às lides políticas.
Também não são inspiradas por interesses pessoais, pois nenhum deles tem qualquer parcela de seu patrimônio aplicado na agricultura. De passagem, os autores desta carta desejam salientar que se exprimem nela sob sua exclusiva responsabilidade pessoal, sem envolver quem quer que seja, e notadamente sem envolver a Sagrada Hierarquia, não obstante dois deles estarem revestidos do caráter episcopal.
Defendendo o direito de propriedade, os signatários defendem algo que vale mais do que um patrimônio. Defendem um princípio da moral católica, baseado em dois mandamentos do Decálogo. Esses mandamentos preceituam que a ninguém – e máxime a um Estado em cuja Constituição figura o nome de Deus – é lícito tirar o que é do próximo e nem sequer cobiçá-lo.
Não é, portanto, a classe dos proprietários, considerada como categoria profissional, que aqui se defende. Essa defesa cabe às entidades rurais.
Aqui se defendem, sim, os ideais de milhões de brasileiros que desejam a permanência da civilização cristã no Brasil, e por isto mesmo desejam uma reforma agrária cristã, que em nosso País só pode ser cristã se respeitar os direitos dos atuais proprietários. E que será anticristã e socialista, se não os respeitar.
E para melhor explicitar nosso pensamento, devemos dizer que:
1. a classe dos fazendeiros presta ao Brasil consideráveis serviços, pelo que nenhuma razão inspirada no bem comum justifica sua demolição;
2. nossa estrutura rural não pode constar apenas de pequenas propriedades, pois a propriedade grande e média tem em nosso País um papel insubstituível;
3. não é lícito desapropriar terras sem que haja comprovada e proporcionada utilidade para o bem comum;
4. a moral católica não admite desapropriações a preço injusto nem perseguições tributárias;
5. o simples não aproveitamento de uma terra não é motivo suficiente para desapropriá-la;
6. não é lícito ao Poder Público no Brasil expropriar imóveis privados, para efeito de reforma agrária, dado que a ele pertencem ¾ do território nacional.
REFORMA AGRÁRIA CRISTÃ E “STATU QUO”
Lendo essas considerações, perguntará talvez Vossa Excelência se uma reforma agrária cristã não seria então uma contradição em seus termos, uma reforma agrária que manteria o statu quo, e que portanto, insensível aos autênticos padecimentos de tantos trabalhadores rurais, nada reformaria.
O livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência”, de que temos a honra de oferecer em anexo um exemplar a Vossa Excelência, pode bem dar uma idéia do que seria, vista em seus princípios, uma reforma agrária cristã.
Como elementos capitais de uma tal reforma, aquele livro preconiza entre outros os seguintes (1):
– uma transformação da vida do campo, que importe na melhoria do salário e das condições de existência dos trabalhadores rurais e de suas famílias;
– a elevação de seu padrão de formação religiosa, moral e intelectual;
– a difusão da pequena propriedade;
– o acesso do trabalhador agrícola à condição de proprietário;
– o amparo dos pequenos proprietários pelos Poderes Públicos;
– a permanência mais efetiva dos proprietários nas fazendas, e um contacto assíduo destes com os trabalhadores rurais;
– uma situação melhor para a agricultura no conjunto da economia nacional, com vistas a um incremento da produção rural, e a conseqüente possibilidade de uma adequada remuneração dos proprietários e trabalhadores agrícolas.
Nada mais diverso do statu quo, nada mais rico em sentido cristão, renovador e dinâmico.
Tal reforma agrária, genuinamente cristã, não só atenderia aos direitos dos trabalhadores do campo, como respeitaria em sua íntegra o direito de propriedade. Pois, como é notório, a civilização cristã não pode ser realizada senão num regime de paz social que respeite igualmente a propriedade e o trabalho, e nunca num ambiente de despotismo classista, em que o proprietário esmague o trabalhador, ou este suprima o proprietário.
O DIREITO DE PROPRIEDADE E O INTERESSE SOCIAL
Cumpre relevar que, defendendo o direito de propriedade, os Papas protegem os sagrados direitos individuais oriundos da própria ordem natural das coisas, mas prestam também um serviço imenso ao bem comum. Pois, como ensinam, o direito de propriedade, premiando o trabalho e estimulando a atividade dos indivíduos, é condição essencial da prosperidade de todo o corpo social.
UM ENORME PECADO
Assim, uma reforma agrária que, afirmando para o Poder Público o direito de desapropriar terras a preço confessadamente injusto, extinguisse em sua raiz a propriedade rural, seria o maior golpe às atividades agropecuárias brasileiras. Senhor Presidente: permita que o digamos com respeitosa franqueza, essa reforma seria um enorme pecado contra os mandamentos que proíbem ao Poder Público como aos particulares, não só tirar os bens aos legítimos donos, mas até cobiçá-los. Ela constituiria o ocaso de nossa agricultura. No plano moral, ela seria nossa desonra. No plano econômico-social, ela seria nossa ruína.
EM SÍNTESE
Com efeito, e para sintetizar esta exposição antes do chegarmos às considerações finais, desejamos salientar que no Brasil há terras pertencentes ao Poder Público que bastam para todos, e ainda que fossem fartamente distribuídas pelos que as quisessem, sobrariam largamente. Não há, pois, condições concretas que justifiquem em nome do superior direito do homem à existência, a restrição do direito de propriedade com a extensão e o caráter genérico que lhe decorreriam da derrogação do art. 141, §16, da Constituição FederaL.
Em suma, a reforma agrária assim concebida assentaria a estrutura rural do Brasil sobre bases incompatíveis com a moral cristã, isto é, sobre o confisco e a usurpação.
MAIS UMA CATÁSTROFE: A QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA
Por isto mesmo, ela constituiria um ato de violência sem precedentes em nossa história. Pois Implicaria em impor a um País cuja imensa maioria é católica, uma lei, mais ainda, toda uma ordem de coisas que ela não aceita, que não pode aceitar sem cair na mais grave contradição consigo mesma.
Como é notório, segundo a doutrina católica, toda transferência de bens operada à força e mediante condições injustas é, em princípio, nula. Quem adquirir bens assim injustamente arrancados a seus proprietários naturais, não os poderá conservar em seu poder. E nenhum Sacerdote há que, no tribunal augusto da Penitência, possa dispensar o cristão da observância dessa regra.
Bem sabemos que, na sua admirável lucidez, a moral católica, ao aplicar aos casos concretos esse princípio básico e intangível, pondera muitas circunstâncias de fato, que podem matizar de modos muito variados a solução a ser dada aos diferentes problemas de consciência individuais que uma reforma agrária confiscatória e socialista pode criar.
Não obstante, o princípio geral acima enunciado continua sempre de pé. E não é difícil imaginar desde logo o tormento dos confessores que, solicitados a coonestar por sua aprovação essas apropriações ilícitas, deverão em numerosas circunstâncias concretas dizer “non possumus”. E que ao próprio moribundo, no leito de morte, eventualmente só poderão dar absolvição se ele manifestar o firme propósito de renunciar à posse do que não é seu.
Enfim, Senhor Presidente, essa matéria é por demais extensa e complexa para que aqui seja tratada em seus meandros. Se Vossa Excelência condescender em percorrer as paginas 189 a 204 de “Reforma Agrária – Questão de Consciência”, ali a encontrará exposta em seus lineamentos essenciais.
O que acima ficou dito é suficiente para deixar entrever que, como toda lei injusta, a da reforma agrária socialista seria um pecado público cometido pelo Estado brasileiro, e um convite a que a esse pecado se associasse a população rural inteira, pela apropriação e conservação indevida de bens legitimamente adquiridos por outrem.
Se a população rural aceitasse o convite, entraria no baratro de uma imensa questão de consciência. Se o recusasse, o País imergiria numa tremenda crise jurídica, pela rejeição generalizada, por parte do povo, de uma lei do Estado. Um exemplo, Senhor Presidente: o que faria o Estado se proprietários espoliados se recusassem em massa a entregar suas terras, usando do direito natural da defesa que cada qual tem em relação ao que é seu? Encostá-los-ia ao paredão, com horror de todos os brasileiros? E o que faria se populações inteiras se negassem a receber terras injustamente confiscadas, gesto que não é impossível que proceda de muitos dentre os nossos trabalhadores rurais, tão ordeiros, tão probos, tão afetivos? Mandá-los-ia a polícia para os campos de concentração? E o que faria aos Sacerdotes que por fidelidade a Jesus Cristo não pudessem negar aos primeiros que estariam em seu direito, e a estes que estariam em seu dever? Deitaria sobre eles sua mão sacrílega, para os atirar aos cárceres?
A questão de consciência, assim delineada, os dois Bispos co-autores de “Reforma Agrária – Questão de Consciência” a abordam aqui sob sua responsabilidade pessoal e exclusiva, em razão do múnus que têm na Igreja, e sem por isto pretender falar em outro nome que não o seu próprio. Mas é fácil ver que, cedo ou tarde, ela se porá para o Brasil inteiro. Para ela pedem os dois Bispos muito particularmente a atenção de Vossa Excelência, pelas imensas e trágicas conseqüências que pode ter.
Deixemos, entretanto, estas visões lúgubres, Senhor Presidente. Brasileiros que somos todos, bem sabemos quanto elas repugnam ao nosso temperamento cordato e afetivo, modelado por séculos de civilização cristã, e por isso mesmo infenso ao tumultuar sinistro da luta de classes.
E passemos para o termo final desta missiva.
Não julgamos ter faltado, em relação a Vossa Excelência, ao respeito devido a quem exerce a suprema magistratura da Nação. Pois usamos do direito que o regime a todos assegura, de se dirigirem livremente aos detentores do poder. E no exercício cortês de um direito, nenhuma ofensa pode haver. Se, em nome da liberdade, tanto se tolera no Brasil aos que tudo ousam contra o regime e portanto contra a autoridade de Vossa Excelência, bem é que se permita uma firmeza de linguagem, cristã e respeitosa, aos que não erguem a voz senão para defender a civilização cristã, a paz social e portanto a mesma autoridade de Vossa Excelência.
Tendo analisado em seu sentido óbvio e natural as palavras por Vossa Excelência proferidas em Santos, não temos o desejo de ir além, julgando o pensamento que as inspirou. Longe de nós pôr em duvida aqui seja ele inteiramente patriótico e desinteressado.
Parece-nos, de outro lado, compreensível que o Presidente do Brasil — nesta quadra histórica, assoberbado por problemas numerosos e de uma inexaurível complexidade, em meio às mil atividades inerentes ao Governo supremo do País, e ademais com a atenção posta em um horizonte mundial borrascoso no qual nossa crescente importância nos impõe deveres crescentes — em dado tópico do seu discurso haja inserido um pensamento inadequadamente formulado, ou suscetível de revisão. Assim, esta carta é menos urna expressão de desacordo, Senhor Presidente, do que um esperançado pedido de esclarecimento ou, quiçá, de retificação do seu discurso de Santos, no que diz respeito à reforma agrária.
Antes de o fazer, esperamos bastantes dias a ver se talvez esse esclarecimento ou essa retificação de si mesmo apareceria.
For fim, julgamos cumprir um dever de colaboração, inteirando Vossa Excelência dessas considerações que representam, de algum modo, preocupações que se difundem por todo o País, e que por certo não será indiferente a Vossa Excelência conhecer.
Queira, pois, acolhê-las, Senhor Presidente, com a serenidade e benevolência de um Chefe de Estado magnânimo.
Ao deixar a presente carta em mãos de Vossa Excelência, desejamos informá-lo atenciosamente de que à mesma daremos publicidade.
Formulando votos pela saúde de Vossa Excelência e pelo inteiro êxito de sua atuação, para a glória do Brasil e da civilização cristã, apresentamos a Vossa Excelência as expressões de nosso sincero respeito e subida estima em Nosso Senhor Jesus Cristo.
Deus guarde a Vossa Excelência.
+ Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D.
Arcebispo Metropolitano de Diamantina
+ Antonio de Castro Mayer
Bispo de Campos
Plinio Corrêa de Oliveira
Luis Mendonça de Freitas
(1) N. da R. — Conforme pp. 10 e 11; — 26, 147. 148, 208; — 11, 146, 149; — 116, 117; — 376; — 24; — 24 e 25; — 298 a 304; — 304 e 305.