Plinio Corrêa de Oliveira
Parece-me muito proveitoso e até indispensável – para a compreensão dos mais recentes lances políticos do comunismo internacional – lançar um olhar retrospectivo para a história dos últimos 200 anos. O alcance deste estudo paga largamente a pena.
Com efeito, o comunismo parece, hoje em dia, onipotente e, ao mesmo tempo, podre. Onipotente, pois: a) cobre uma tão grande faixa de terras e de povos, que constitui um dos maiores “impérios ideológicos” da história; b) jamais teve diante de si adversários tão ingênuos, tão tímidos, tão entreguistas. Mas, a par disto, parece podre porque: a) jamais seus supremos dirigentes pareceram tão indiferentes ao que constitui a própria essência ideológica do comunismo; b) jamais a oposição nas fileiras dos vários PCs se apresentou tão afoita, tão douta e tão popular; c) e jamais o movimento autonomista nos países satélites pareceu tão incontenível.
Se a grande meta de nossos dias é derrotar o comunismo, a escolha do melhor modo para alcançar este fim é de interesse supremo. Ora, tal escolha deve ser feita levando em conta o que se passa nas fileiras do adversário. De onde emerge, por sua vez, como sumamente importante, a seguinte pergunta: esse duplo fenômeno de vitória e putrefação é autêntico? Ou disfarça uma nova manobra deste?
Se um retrospecto histórico de 1770 a nossos dias elucida a questão, é inegável sua utilidade.
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Em seus aspectos essenciais, a história desse período se identifica com a da preparação, surto, expansão e apogeu da imensa convulsão de idéias, estilos de vida, sistemas artísticos, instituições políticas, sociais e econômicas que se convencionou chamar Revolução Francesa. Com efeito, em 1770 (fixamos este ano um tanto arbitrariamente, para não recuarmos o retrospecto além dos 200 anos), a Revolução estava no último período de sua profunda e lenta gestação. Em 1789, veio à luz, e a derrocada do “Ancien Régime” começou. Em poucos anos, a Igreja foi sucessivamente reduzida a uma instituição apenas tolerada e, por fim, posta fora da lei. O trono dos Bourbons foi atirado ao chão. A aristocracia foi abolida. O furor revolucionário voltou em seguida sua sanha contra os ricos, e em sua fase de maior paroxismo a Revolução apresentou matizes incontestavelmente comunistas. Foi o Terror. Resume-se nisso que se poderia chamar a fase explosiva, radical e trágica da Revolução. São cinco anos.
Depois sucede-lhe a imensa fase processiva, lenta, sorrateira e acomodatícia da Revolução. Vai ela de 1794 até nossos dias, (desde que se admita que, sob certo ponto de vista, a Revolução continua em curso, moldando cada vez mais o mundo a seu espírito anárquico e igualitário). Esta fase se subdivide em dois períodos: a) o do recuo estratégico; b) o do contra-ataque.
Tendo dado largas a toda a sua sanha destruidora e elevada ao auge a reação dos adversários, a Revolução foi retrocedendo por etapas.
No início da fase do recuo estratégico (começo do Diretório até a queda de Carlos X, em 1830) deu-se o estancamento da ofensiva comunista e a consolidação da dominação da burguesia.
Com Napoleão, o retrocesso se tornou ainda mais marcante. A república foi substituída por uma monarquia espúria. A sociedade burguesa se metamorfoseou em uma aristocracia postiça de novos ricos, de generais vitoriosos e de administradores de alto escalão. A Igreja, embora sem recuperar sua antiga situação, foi tirada dos ferros e entrou em regime de concordata com o Estado. Napoleão procurou até coonestar sua situação aos olhos dos seus adversários, nostálgicos do “Ancien Régime”, casando-se com uma arquiduquesa da Áustria. Ele se tornou assim – por afinidade – sobrinho neto de Maria Antonieta e de Luís XVI. Incorporou ele, em sua corte, quantos cortesões dos Bourbons conseguiu aliciar. E tentou até comprar os direitos ao trono, do conde de Provence, irmão e sucessor de Luís XVI.
Toda essa aparente volta ao passado era, entretanto, muito mais de superfície do que de profundidade. Ao longo do Diretório, como do Consulado e do Império, o fato profundo e capital é que a sociedade nova, laica, igualitária e plebéia, foi tomando consistência e estabilidade. Os recuos para o “Ancien Régime” tinham um fim estratégico: eles consolavam e adormeciam os adversários da Revolução, porém nada lhes restituíam de sólido e durável. O que a Revolução concedia na aparência, era compensado por lucros em profundidade.
Como se operava essa neutralização dos adversários da Revolução?
Os clérigos e os nobres e em geral os nostálgicos do passado cientes de que o terrorismo deixara germes ativos de inquietação, apavorados ante a perspectiva de uma revivescência revolucionária, de bom grado aceitavam o pouco que a nova ordem de coisas lhes restituía. E, detestando-a, de medo que viesse coisa pior, cediam para não perder. Cediam esperanças muito amadas para não perder o pouco que haviam recobrado.
As coisas continuaram no mesmo rumo quando, destituído Napoleão pelos aliados, subiu ao trono Luís XVIII, o antigo conde de Provence. O clero e os emigrados ganharam mais algumas honrarias. E foi só. Em seus traços profundos, a ordem de coisas implantada por Napoleão perdurou, já agora com o apoio da maioria de seus adversários da véspera, uma vez que a aceitara o rei.
Sob os Bourbons (1815-1830) as sociedades secretas desenvolveram uma propaganda revolucionária ativa. Em sua maioria, os adversários da Revolução, sempre firmes no “ceder para não perder”, e gozando pachorrentamente sua tão incompleta vitória, só pensavam em aproveitar a vida. A Revolução preparava assim, ativa e afoitamente, um “estouro”.
Este estouro que encerra a fase dos recuos estratégicos e inaugura a fase do avanço processivo e lento da Revolução não consistiu na implantação direta da república, porém na “republicanização” da monarquia. A Revolução depôs os Bourbons do ramo primogênito e conduziu ao trono o príncipe usurpador que tomou o nome de Luís Filipe. Com ele a burguesia subiu ao poder, e a nobreza saiu da primeira plana da vida política.
Aliviados ao ver que as coisas não chegavam até o pior, isto é, até a república e o Terror, a maioria dos partidários do ramo deposto continuou – já agora no ostracismo político e na penumbra – a vegetar tranqüila. Mais uma vez, parecia-lhe prudente aceitar o pouco que se lhes deixava, a reagir, exasperar o adversário e… acabar perdendo tudo.
Entrementes a efervescência revolucionária continuava, sempre mais exigente. Assim, em 1848, a Revolução derrubou Luís Felipe, e durante um curto intervalo republicano (1848-1851) elegeu para presidência da república um príncipe plebeu e ainda mais marcadamente usurpador, isto é, Luís Napoleão Bonaparte. Este não tardou a se proclamar imperador, e sob o nome de Napoleão III governou até 1870. Seu regime foi ainda mais “republicano”, burguês e laico do que o de Luís Filipe. Com a queda de Napoleão III resultante da vitória da Prússia, houve dois surtos extremistas, isto é, uma vitória eleitoral do Conde de Chambord, herdeiro da monarquia legítima, e uma explosão comunista. Mas nem o Conde de Chambord, nem os comunistas conquistaram o poder. Quem ficou com ele foi a burguesia.
Nestes 100 anos ininterruptos de república, o que sucedeu na França?
O processo rumo à anarquia e à igualdade continuou seu curso, mas já agora em outro nível. Dos adversários visados na fase explosiva e violenta que culminou no Terror, dois estavam por terra: a dinastia e a nobreza. Um continuava de pé, a burguesia. Cumpria derrubá-la.
Sob este ponto de vista, a História da França, nos 100 anos últimos, se resume numa decadência lenta e contínua do poder burguês, numa erosão incessante da propriedade individual e numa penetração gradual do espírito socialista até nas fileiras do Clero e da burguesia. Seria por demais longo descrever aqui as vicissitudes desse processo, aliás mais recente e mais conhecido. Basta dizer que, ao longo dele, a conduta da burguesia foi cópia exata da que tivera anteriormente a nobreza: um perpétuo “ceder para não perder”, uma fruição da letargia do momento presente, sem maiores preocupações com o futuro.
Em suma, ao cabo de 100 anos de agitações republicanas e contra-agitações monarquico-aristocráticas e de mais de 100 anos de república burguesa, tudo caminha na França para a plena realização do programa dos terroristas, dos “montagnards”, dos “cordelliers”, e do comunista Babeuf. Paulatinamente, e sem efusão de sangue, o terrorismo é o grande vencedor. Basta que as coisas continuem a correr tranqüilamente como correm que, mais tempo, menos tempo, a França será comunista… O comunismo, implicitamente, tem a vitória nas mãos. Pois ele está no socialismo como o pinto no ovo. E o socialismo já venceu.
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É possível deduzir desta massa de fatos um ensinamento para o presente? É o que em outro artigo veremos.