Santo do Dia, 13 de janeiro de 1970
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de exposição verbal do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
O interesse especial do personagem está no seguinte: como os senhores sabem, a Revolução Francesa é apresentada pelo comum dos historiadores como sendo um acontecimento dos mais transcendentais da história da humanidade, no sentido de que representou um passo a mais na história da liberalização do homem.
Entendem os partidários da Revolução Francesa que aquilo foi uma explosão das qualidades do espírito humano no que ele tem de melhor; o espírito humano que não se conformaria com a sujeição, não se conformaria com os grilhões, não se conformaria com a desigualdade, e que levado por uma nobre sede de igualdade, liberdade e fraternidade teria promovido então a Revolução. E para justificar a tese de que o espírito da Revolução era muito nobre, eles fazem o endeusamento dos grandes homens da Revolução, sustentando que foram homens de excepcionais qualidades humanas.
A verdade histórica é diretamente o oposto disso. A R-CR [Revolução e Contra-Revolução] mostra que a Revolução Francesa foi a conseqüência necessária do protestantismo. Ou seja, a explosão no campo político, ou na temática das estruturas políticas, do mesmo espírito de revolta e de sensualidade, de orgulho e de sensualidade que anteriormente gerara o protestantismo. E, em conseqüência, há uma polêmica também a respeito não só das idéias da Revolução, mas dos homens da Revolução. Nós, que somos adversários da Revolução Francesa, nos empenhamos em mostrar a Revolução Francesa no seu verdadeiro aspecto, não só refutando as doutrinas, mas mostrando que os homens que foram os expoentes da Revolução foram criminosos, foram homens sem nenhuma moralidade, foram o contrário da fraternidade que eles apregoavam, foram homens sanguinários, cruéis e tirânicos.
E um dos crimes da Revolução aonde esse espírito transparece de um modo mais evidente, é o crime efetuado contra uma das pessoas da família real da França, que era a Princesa Elisabeth, chamada habitualmente pelos historiadores de Madame Elisabeth [1764-1794]. Quem era essa Princesa Elisabeth? Ela era irmã do Rei Luís XVI, solteira e uma pessoa não só de grande pureza de costumes, mas de uma ardente piedade. Ela freqüentava a corte, aonde cumpria os deveres que lhe tocavam como irmã do Rei, mas o seu tempo livre passava num pequeno castelo que ela tinha longe de Versalhes. Dedicava o seu tempo à piedade e às obras de caridade: distribuía víveres e ajudava os camponeses, os trabalhadores rurais que moravam ali por perto. Era, portanto, uma pessoa conhecida por causa de sua insigne caridade.
Madame Elisabeth distribuindo gêneros alimentícios, próximo do castelo de Versailles – quadro de Richard Fleury François
Ela vivia completamente afastada da política. Como, aliás, é normal. Sendo uma moça, não tendo funções a ver com política, vivia no mais completo alheamento da política. Muito dedicada ao seu irmão, teria tido toda facilidade de se casar, mas não quis fazê-lo para poder viver ali nas cercanias da família real, e prestando auxílio que as circunstâncias pudessem lhe pedir.
Quando arrebentou a Revolução Francesa, dos vários irmãos do Rei, todos saíram da França, menos ela, que quis, heroicamente, enfrentar os riscos da Revolução Francesa – evidentes desde o começo -, para poder auxiliar o seu irmão, a sua cunhada (a Rainha Maria Antonieta), e os seus sobrinhos, filhos desse casal, poder auxiliá-los nas amarguras da Revolução que vinha. E, de fato, ela seguiu passo a passo o drama da família real. Acabou sendo encarcerada pelos revolucionários, junto com a família real, e foi processada.
Depois de Luís XVI e de Maria Antonieta, que foram, como os senhores sabem, condenados à morte e guilhotinados, veio o processo dela e foi condenada à morte também. Condenada à morte por que crime? Nenhum crime. Não podia ser crime ser irmã do Rei, porque ninguém mata uma pessoa porque é irmã do criminoso. Por pior que seja o criminoso – vamos dizer, esses hippies miseráveis que mataram há algum tempo atrás umas pessoas em Los Angeles – os senhores não vão ler no jornal a seguinte notícia: “Foram morto tais hippies e uma irmã deles, que não tinha nada que ver com o caso, morta por ser irmã”. Quer dizer, isso não tem cabimento, não passa pela cabeça de ninguém.
Contra ela não foi possível alegar nenhum crime. Nem sequer foi acusada de nenhum crime. Foi morta exclusivamente por ódio, por ser irmã do Rei. Os senhores estão vendo aí o caráter bestialmente rancoroso dos líderes e, portanto, também dos sequazes, de uma Revolução feita em nome da “fraternidade”. Seria interessante nós, depois de vermos o aspecto Revolução, considerarmos o aspecto Contra-Revolução. Ou seja, a elevação com que essa Princesa suportou os tormentos que caíram sobre ela, e sua morte. Naturalmente não é esse o momento – nem haveria tempo num simples Santo do Dia – de dar a biografia dela. Mas nós vamos ver as cenas da sua morte, os últimos episódios de sua morte.
Esses episódios tem muita significação e eu passarei a lê-los aqui. São eles tirados do livro “Madame Elisabeth – aspectos desconhecidos” [versão original francesa: “Madame Elisabeth inconnue”, Paris, Beauchesne et fils, 1955]; autora do livro: Madeleine Louise de Sion. O trecho que tenho que comentar é o seguinte:
“A Princesa Elisabeth foi condenada juntamente com 25 pessoas, a maior parte da alta nobreza, embora houvesse também entre elas elementos do povo. O presidente do Tribunal…”
Um tribunal revolucionário, republicano que a condenou.
“Dumas, não pode deixar de gracejar vilmente a respeito da morte dessas vítimas. E disse: Não poderá queixar-se Elisabeth de França, pois nós formamos ao seu redor uma corte de aristocratas dignos dela”.
O sarcasmo e o debique de quem caminha para a morte. Ali a Princesa, uma série de senhoras da nobreza, então: ‘é isso mesmo, ela não pode se queixar, vai uma fornada de nobres’.
“E nada poderá impedir que ela se sinta ainda nos salões de Versalhes, quando se vir ao pé da santa guilhotina, rodeada por toda essa nobreza fiel”.
Os senhores estão vendo o sarcasmo e o peso do sarcasmo. Um homem, quando trata com uma senhora, ainda que seja o mais inimigo dessa senhora, deve tratá-la com uma certa cortesia. Não deve fazer o abuso do forte contra a fraca. Isso é uma coisa elementar de cavalheirismo. Ainda mais um juiz com aquela que ele acaba de condenar. Ele deve ter, portanto, vergonha de manifestar rancor em relação à pessoa que condenou. Ainda mais com uma pessoa que está condenada à morte. Porque a morte tem uma majestade, uma respeitabilidade tremenda. É um castigo de Deus, mas como tudo que vem de Deus, a morte tem uma grandeza que faz com que todo mundo respeite aquele que vai morrer. Pode ser o homem mais vil do mundo, mas uma vez que ele está marcado na fronte com o sinal da morte, respeita-se.
A um bandido que está numa cadeia e que vai ser executado, depois de condenado à morte, costuma-se fazer todas as vontades dele, desde que não sejam vontades criminosas, inclusive serve-se para ele uma última refeição com tudo quanto ele encomenda. E alguns comem, tal é o apetite humano. O homem é assim, alguns comem.
Mme. Elizabeth conduzida ao suplício (Paul Delaroche – 1856)
Ninguém julgaria legítimo chegar para um bandido merecidamente condenado à morte e começar a caçoar: “Você vai morrer!… Você já imaginou? Agora vai cair aqui!”… Ou então, na cadeira elétrica: “Olha o choque!…” Ninguém faria isso. Por que? Porque é uma barbaridade, é uma covardia, é um bandido, mas ele está marcado na fronte com o sinal da morte; a partir desse momento começa-se a respeitá-lo.
Ela estava condenada à morte, este bandido, homem, debicando de uma mulher; juiz debicando daquela que ele condenou; depois, criatura humana que debica de uma pessoa que vai para a morte. Debica dessa maneira, vendo-a naquela humilhação, vendo-a destituída de toda a pompa antiga, faz um sarcasmo. Ela vai se sentir aos pés da guilhotina como em seu esplendor em Versalhes. Quer dizer é quase impossível levar a baixeza humana mais longe. É o espírito da Revolução Francesa. Continua (o texto):
“De fato, a irmã de Luís XVI estava escoltada por três marquesas, duas condessas, entre outras pessoas da nobreza. Cheia de calma ela ouviu a sua sentença de morte, pedindo somente e com cortesia, que lhe dessem um padre; ao que, Fouquier Tinville, o promotor público, respondeu com desdém: “Ó, ela morrerá muito bem sem a benção de um capuchinho”.
É uma coisa que também não se faz: é negar à pessoa o último socorro da religião. Conheço casos de ateus que quando uma pessoa está para morrer e pede padre, o ateu vai chamar. Por que? Porque o ateu raciocina da seguinte maneira: está bom, a religião não é verdadeira, mas vou dar a ele um conforto na hora da morte. Não recuso esse conforto na hora da morte. Continua:
“Depois de condenados à morte no tribunal, foram todos levados então para a prisão. E na prisão, os seus companheiros que se encontravam ali, porque antes não tinham se encontrado, cederam-lhe o lugar de honra que ela, com toda naturalidade, tomou”.
“A serenidade do olhar da Princesa, a dignidade de sua atitude…”
Há muito valor em ser sereno quando a morte está se aproximando e ainda mais quando se é moça como ela; em ser digno, quando a gente está na última das humilhações.
“… a ascendência de sua palavra logo criaram em torno dela um clima de heroísmo que contagiou a todos”.
Os senhores vejam que beleza. Ela a débil, ela a fraca, ela a maior derrotada, ela é a heroína. E não é a heroína do embombamento e da falta de distância psíquica; é a heroína da fé, a heroína da serenidade. Ela comunica tanta elevação ao martírio que ela vai sofrer que imediatamente o ambiente muda. Ela conseguiu animar os fracos e dar força até aos que se mostravam fortes.
“Uma marquesa de setenta e três anos [Madame de Sénozan] …”
Para os senhores verem o que é a criatura humana…
“…estava aterrorizada e trêmula diante da morte. A Princesa, com especial deferência, a fez ver que, afinal de contas, ia morrer jovem, que estava mais serena do que ela, e que ela devia ter a alegria de que, afinal de contas, tinha vivido pelo menos setenta e três anos”.
Lembra-me o comentário de um francês. Conta-se que dois franceses encontraram-se um com o outro, e estavam já os dois um pouco envelhecidos. E um disse para o outro: “Que aborrecimento envelhecer!” O outro disse: “Eu não acho. É o único jeito de viver muito tempo…” É o espírito francês. Porque depois de dito isso não tem mais nada que acrescentar. Lapidarmente respondida e mais nada. É ficar quieto e mudar de assunto. O que é que se vai fazer?…
“A marquesa sentiu-se refeita com pensamentos de fé etc. e ficou animada. A velha marquesa terminou por acalmar-se e a oferecer generosamente a Deus os poucos anos que ainda poderia passar nessa terra. Uma condessa [Madame de Montmorin], que vira todos os seus parentes guilhotinados, não se conformava agora com a morte de seu filho Calixto, de apenas 20 anos que fora condenado junto com ela. A Princesa Elisabeth fez-lhe ver o privilégio de morrerem os dois juntos e os perigos que correria o jovem numa terra devastada por erros”.
Eram os erros da Revolução Francesa. Ela queria mostrar que uma alma facilmente se perderia e que uma mãe que tivesse fé deveria compreender que era uma graça morrerem os dois naquela ocasião, indo o filho para o céu em boa disposição de alma – excelente até como os senhores verão – em vez de estar sujeito aos riscos dessa vida.
“Para outra condessa [Madame de Sérilly] que esperava um filho, a Princesa Elisabeth conseguiu um salvo-conduto que permitiu que a jovem senhora não fosse condenada.”
Não fosse executada a sentença contra ela. Quer dizer, ela, condenada à morte, só pensava nos outros, só cuidava dos outros, ainda salvou a vida de uma pessoa. Quer dizer, essas foram as suas últimas horas. Os senhores vejam a elevação desse espírito impregnado de tradições e a bestialidade da crueldade revolucionária. Aí os senhores tem dois espíritos, dois mundos em conflito e os senhores podem medir bem o contraste de uma coisa com a outra. Prossegue a narração:
“Depois de um dia de prisão e após ter o cônego de Chambertrand ministrado os socorros religiosos a todos…”
Eram padres que se infiltravam nas prisões vestidos de leigos, e que ninguém sabia que eram padres, e que tinham o heroísmo de se fazer prender para poder entrar na prisão. E então eles davam absolvição etc., porque nessas prisões era lícito passar de uma cela para outra. E eles então quando viam que as pessoas estavam condenadas à morte, eles com um pretexto ou outro, se aproximavam e faziam um sinal, e davam a absolvição, às vezes davam até a comunhão para as pessoas; eles guardavam partículas, celebravam missa, faziam mil coisas extraordinárias na prisão. Então, diz o seguinte:
“… às cinco horas da manhã vieram cortar os cabelos das senhoras.”
Era uma das coisas mais trágicas que precedia a morte. É que era preciso — a guilhotina, como os senhores sabem, é uma lâmina que a pessoa aciona num ponto por uma corda, e a lâmina cai; então, a vítima está deitada, e a guilhotina cai sobre a nuca e corta o cordão espinhal. E a pessoa morre, porque a guilhotina depois corta a cabeça inteira. É seguida imediatamente da morte. É uma lâmina muito afiada. Mas no interesse do próprio condenado, para que a guilhotina funcione bem, a pessoa morra logo, convém cortar o cabelo; mesmo dos homens raspam completamente atrás porque às vezes uns fios pequenos de cabelo podem constituir obstáculo à guilhotina.
Então, era do interesse do condenado, mas era do interesse da Revolução, porque eles matavam tanta gente no mesmo dia, que para poder as fornadas de presos serem expedidas logo, era preciso que a lâmina não se detivesse para poder matar muitos. Então, na véspera ou, às vezes, na própria manhã, vinham os empregados com tesouras ou com navalhas e raspavam. Sobretudo as senhoras usavam naquele tempo cabelo comprido, então raspava-se completamente atrás. E aquele metal correndo pela nuca era o precursor daquele outro metal que daqui a pouco vinha e que ia fazer o serviço bem diferente.
Os senhores podem imaginar a impressão das pessoas vendo chegar – os senhores se ponham um pouco no lugar delas -, a impressão das pessoas vendo chegar, por exemplo, a navalha e acariciar a nuca e depois perguntar para o interessado: “Está bem?” – Passa a mão: “Olha aqui tem uns cabelinhos ainda…” Os senhores compreendem, não é pouca coisa… é terrível! Depois, para as senhoras faziam como que uma toilette fúnebre: vestiam completamente de branco. Amarravam as mãos de todas as vítimas atrás e eram empurrados aos pontapés em carretas, onde iam em pé, com uma multidão assistindo. Na multidão, de quando em quando, havia algum padre. E o padre, de uma janela, de um lugar disfarçado – eles já sabiam – ficavam olhando.
E o padre fazia uma benção, uma absolvição última que era, evidentemente, um precioso alento para quem fosse caminhando para a morte. Então, na manhã vieram os empregados da prisão para cortar os cabelos de todos, sobretudo das senhoras e da Princesa Elisabeth.
“…às cinco horas da manhã vieram cortar os cabelos das senhoras. Depois as carretas seguiram para o local da execução.”
A guilhotina ficava no meio de uma praça pública, enorme, e tudo quanto era revolucionário assistindo; quando a cabeça caía, havia um buraco no patamar, caía no chão, e caía numa cesta. E os corpos eram jogados de lado. Depois numa carreta eram empilhados os corpos e as cabeças e tudo jogado na vala comum do cemitério.
“Chegando à praça da guilhotina, os condenados sentaram-se em banquinhos, esperando a chamada de seus nomes”.
Os banquinhos ficavam no alto, no patamar. Havia um patamar, uma espécie de estrado, onde ficava a guilhotina. E os banquinhos ficavam no alto.
“Madame de Crussol foi a primeira a ser chamada”.
Os senhores vejam a altivez disso diante de um povo igualitário. O que vai contar agora.
“Antes, porém, de chegar até a guilhotina, aproximou-se da Princesa e a saudou como se fazia na corte”
Uma grande reverência. São ou não são dois mundos completamente diferentes? O mundo do respeito, o mundo da veneração, o mundo da humildade, de um lado; o mundo do orgulho, o mundo do paganismo, o mundo do non serviam do outro lado.
“A Princesa Elisabeth, a cada senhora que ia morrer, respondia com uma inclinação de cabeça, chamava a senhora e osculava. Depois disso a senhora subia. A cena era de uma tal majestade que os revolucionários não ousaram fazer nada.”
Porque há realmente certas coisas que não é possível. Não é possível! Diante da morte, diante daquela canalha igualitária, uma tal coragem de uma senhora, que corria o risco de levar uma sova antes de morrer. E aquela profunda reverência e o ósculo da Princesa, e tudo feito com aquela suavidade de maneira do Ancien Régime, e aquele beijo em que se encostavam duas cabeças que daí a pouco iriam rolar, os senhores estão compreendendo o que isso significa.
“Seu gesto foi repetido por todas as outras senhoras; depois vieram os homens que faziam uma profunda reverência diante da Princesa; alguns chegaram a dobrar os joelhos diante dela. Ela também respondia, eles subiam e eram também decapitados. Foi a última recepção de Elisabeth de França, e foi a última vez que ela aplicou o protocolo da corte francesa. Por ocasião de cada execução, a Princesa rezava o De profundis, alto.”
De Profundis é um salmo que diz: “Do profundo do abismo em que me encontro, Senhor, Senhor, eu elevo minha voz; que vossos ouvidos sejam acessíveis à voz de minha aflição” etc.; canta-se, é um salmo que a Igreja reza pelos moribundos ou pelos mortos.
“A multidão uivava de satisfação e o jovem Calixto de Montmorin gritava alto: Viva o Rei!”
São dois mundos. É o confronto de dois mundos. Esse era chouan, era o cavaleiro dos antigos tempos, era o herói que sustentava a fé da tradição, enquanto os outros pertenciam ao mundo comunista que nós estamos vendo aqui bem, no que era apoiado por um outro homem, que ia ser executado também, chamado Batista Dubois.
“Quando a última vítima se inclinou diante da Princesa, ela disse com entusiasmo: Coragem e fé na misericórdia de Deus. Ela foi a última a chegar ao cadafalso. No momento em que iam amarrá-la à tábua…”
Porque a vítima é amarrada numa tábua.
“…no momento em que ela ia ser amarrada à tábua, uma écharpe…”
Quer dizer, um desses panos para enrolar no pescoço.
“…de linho que ela tinha, caiu, deixando aparecer ao pescoço uma medalha com o Imaculado Coração de Maria. O ajudante do carrasco quis roubar a écharpe, mas a Princesa, com voz emocionada…”
É a primeira vez que ela manifesta emoção, ao longo de toda essa drama
“…ela exclama o seguinte:…”
Os senhores vão imaginar no que ela está pensando no momento de morrer; qual é o pensamento dela? Ela exclama o seguinte:
“Em nome de vossa mãe, Monsieur, cobri-me.”
Era um pensamento de pudor. Ela não queria que nenhuma parte de seu corpo fosse vista. Então, ela naturalmente ficou com alguma coisa do peito descoberto, qualquer coisa assim, e vendo que era um miserável a quem nada podia pedir em nome de Deus, ela procurou naquela hora uma fibra humana que ainda houvesse naquele canalha. E ela disse com muita cortesia, chamando de “Monsieur” (“Senhor”) um bandido daqueles. Disse: “Monsieur, em nome de sua mãe, cobri-me.” Os senhores estão vendo que presença de espírito! mas que pudor! que recato! Comparem isso com as modas de hoje e os senhores podem compreender a decadência do mundo depois da Revolução Francesa.
“Foram as suas últimas palavras, eco de toda a sua vida, feita de dignidade e de pureza. Produziu-se então um fato estranho. Após a sua morte, não se fez ouvir o toque de tambores.”
Cada executado que morria, tocava um tambor e o povo uivava. Mas a morte dela produziu uma tal impressão que nem a canalha revolucionária ousou tocar tambor. Ficaram todos parados, quietos.
“Nem se ouviu o uivo e o grito de ‘viva a república’. O capitão que devia dar o sinal para os tambores, caíra desfalecido e daí foi carregado já meio paralítico e agonizante. Um silêncio impressionante plaina sobre a multidão estupefata, e todos os primeiros biógrafos da Princesa repetem que flutuou – como acontece por vezes na morte dos santos – um penetrante perfume de rosa sobre toda a praça da Revolução“.
* * *
Eu me lembro de um outro episódio muito bonito da Revolução, e com esse eu termino o “Santo do Dia” de hoje. Está nessa linha: é a morte de Luís XVI. Luís XVI fora morto antes dela. Ele era um homem extraordinariamente corpulento. Ele era um atleta. E foi levado da prisão até a guilhotina, num coche, com um padre. A história desse padre é curiosíssima. Esse padre era um padre de origem escocesa, chamava-se Edgeworth de Firmont (1745 – 22-5-1807).
Era de uma família escocesa expulsa da Escócia pelos protestantes, e que há umas três ou quatro gerações antes viera morar na França. E na família desse padre sempre houve uma tradição meio profética de que eles teriam um descendente que ia dar os últimos sacramentos ao Rei de França, preso. Quando o Rei de França foi condenado à morte, ele, com risco da vida dele aproximou-se, pediu às autoridades revolucionárias para dar absolvição ao Rei. Não se sabe como, mas as autoridades permitiram que ele entrasse e acompanhasse o Rei, dentro do carro, até a guilhotina.
Quando chegaram os dois de carro até a guilhotina, desceram e o carrasco foi de encontro ao Rei para amarrar as mãos do Rei, porque fazia-se isso com os prisioneiros que iam ser mortos. Quando ele veio, o Rei achou que aquilo era uma insolência, agarrou o carrasco com as duas mãos e disse: “Isso não”, e imobilizou o carrasco. E virou-se o Rei para o padre e disse: “Senhor Cura, o que o Senhor pensa disso?” Disse o padre: “Se Vossa Majestade permitir que suas mãos sejam amarradas, será mais uma semelhança entre sua morte e a de Nosso Senhor Jesus Cristo.” Imediatamente largou o carrasco e estendeu as mãos que foram amarradas e ele subiu até onde estava a guilhotina…
Aí os senhores têm os espíritos das coisas. Os senhores compreendem em flashes vivos o que é a Revolução e o que é a Contra-Revolução. O que foi uma época que cessou, mas que deixou um filão do qual os senhores são o prolongamento vivo, e uma época que entrou e que produz esse mundo de horrores que os senhores estão vendo aqui. Aí está um flash de um “Santo do Dia”.
Execução do Rei Luís XVI