Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibaldi, 404 - São Paulo - SP - Brasil

CAPÍTULO III

O “Apostolado de infiltração”

 

“Apostolado de infiltração”

Tem íntima relação com o problema da estratégia do “terreno comum” outra questão, que é a do chamado “apostolado de infiltração”. Tornemos precisas as noções. Como os termos mostram, o “apostolado de infiltração” é uma forma de proselitismo que consiste em esgueirar-se o apóstolo nos ambientes não católicos, e ali trabalhar para a conquista das almas. A pluralidade de casos concretos que se enquadram dentro desta definição teórica é imensa. Antes de tudo, é preciso ver de que natureza é o ambiente em que a infiltração se faz, e, em segundo lugar, a que título tal infiltração se processa, examinando finalmente quem é a pessoa que se incumbe da infiltração. Só depois disto poderemos dizer em que casos este apostolado é lícito.

Variedade de ambientes

Há ambientes afastados do pensamento da Igreja, nos quais, entretanto, o mal ou o erro se encontram em estado de relativo torpor. Seria este, por exemplo, o caso de certas associações científicas, literárias, recreativas (um clube de xadrez, por exemplo), filatélicas, etc., etc.. O temperamento das pessoas que costumam se entregar a estas atividades, bem como a própria natureza das mesmas, excluem como improvável a hipótese de uma ação militante e contagiosa do mal. O mesmo pode-se dizer de muitos ambientes de trabalho, tais como bancos, escritórios, repartições, etc.. A enorme massa de afazeres, a ocupação predominante dos negócios, a moralidade dos chefes, pode eventualmente fazer de um destes locais um ambiente que pouco ou nada arrasta para o mal. Entretanto, é preciso renunciar, neste assunto, a qualquer enumeração que não tenha caráter meramente exemplificativo.

Mil circunstâncias, das mais freqüentes infelizmente, podem fazer com que um destes locais, tipicamente inofensivo em uma cidade, seja em outra altamente nocivo. De si mesmos, entretanto, estes ambientes não são maus.

Por outro lado, há ambientes tais, que hoje em dia só alguma pessoa de uma ingenuidade que faça lembrar a censura do Profeta Oséas (VII, 11), isto é, que seja “uma pomba imbecil sem inteligência”, poderia imaginar não serem nocivos. Em primeiro lugar, vêm nesta enumeração todos os lugares de diversão caracteristicamente maus, que a moralidade pública reputa vedados às pessoas honestas. Em segundo lugar, vêm os numerosos locais de diversão que consideramos verdadeiros antros de ignomínia, talvez piores que os primeiros, e que costumam ser chamados “semi-familiares”. Nestes locais, a mãe de família ombreia, sem enrubescer, com pessoas cuja categoria nem deve ser nomeada. O pai de família não se peja de aí comparecer à vista de parentes e amigos, em companhias que põem por terra o seu prestígio e dão aos filhos os mais funestos exemplos. Tudo se mistura, tudo se nivela, tudo se confunde em uma promiscuidade que diminui a distância e a diferença que devem existir entre o lar e o prostíbulo. Digamos a verdade, por mais dolorosa que seja: uma família que freqüenta lugares semi-familiares se degrada à condição de uma semi-família, o que, em outros termos, equivale a dizer uma família em ruínas. Infelizmente, a realidade é que os limites entre o familiar e o semi-familiar se tornam cada vez mais confusos, e não é pequeno o número de ambientes cujo rótulo familiar encobre uma situação da mais perfeita promiscuidade. Os grandes hotéis, com seus bailes, seus cassinos, seus salões, não são hoje, na maioria dos casos, senão ambientes dos quais, na melhor das hipóteses, se pode dizer que são semi-familiares. Infelizmente, este quadro não seria completo se omitíssemos dizer que estão na mesma categoria certos ambientes freqüentados exclusivamente por famílias, nos quais a direção dos usos, do bom gosto, da elegância, estão de tal maneira monopolizados por pessoas de uma vida francamente escandalosa, que o mal ali aparece cercado de todo o esplendor que a seu serviço podem pôr os recursos ilimitados do dinheiro e da polidez de maneiras. Quanto baile, quanta reunião, quanto jantar, dos chamados familiares, outra coisa não são senão ambientes em que tudo conspira para perder as almas! Sem temor de exagero, não hesitamos em afirmar que, em certas camadas, toda a vida social se acha invadida, infestada, dominada por esse despotismo do mal, que se exerce de forma indiscutível até mesmo nas demasias de linguagem e na intemperança no beber! O mesmo se diga de certos ambientes de trabalho, em que a desabusada camaradagem, a imoralidade das conversas, o paganismo do procedimento, agravado tudo pela promiscuidade dos sexos, faz do ganha-pão um grave risco para a salvação eterna.

Descritos assim, em suas variedades, os ambientes em que uma pessoa se pode encontrar, podemos fixar os primeiros princípios para qualquer solução.

Pluralidade de atitudes

I – Segundo a magistral doutrina desenvolvida por D. Chautard em “A Alma de Todo Apostolado”, a primeira preocupação de quem se entrega a obras deve ser, antes de tudo, sua própria santificação. Ora, para a maioria das pessoas em nossos dias, é ponto de primordial importância que freqüentem ambientes católicos, isto é, que consagrem parte de seus lazeres ao convívio de seus irmãos de crenças, na sede da A.C. ou de uma associação religiosa qualquer. Tratando-se de moços, essa necessidade é imperiosa. Como já lembramos, não é outro o processo de que se tem servido a admirável propaganda dos países totalitários. Sempre que, pois, o exercício do “apostolado de infiltração”, ainda que realizado em ambientes inofensivos, implique para o membro da A.C. na necessidade de sacrificar de modo ponderável este insubstituível meio de formação, deve-se entender que o “apostolado de infiltração” não deve ser posto em prática.

II – Felizmente, esta alternativa nem sempre se impõe, e às vezes será possível ao apóstolo leigo frequentar os ambientes em que deva fazer infiltração, sem perder o contato vital que deve manter com sua associação. Neste caso, o “apostolado de infiltração”, em ambientes inócuos, poderá produzir resultados inestimáveis.

III – Pergunta o Divino Mestre de que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se perder sua própria alma. Daí se deduz como princípio, aliás sancionado por qualquer moralista digno deste nome, que, caso “haja perigo grave e próximo de pecado formal, especialmente contra a Fé e a virtude angélica, Deus quer que nos afastemos das obras” (D. Chautard, op. cit., pg. 62 da ed. portuguesa). Em outros termos, salvo caso especialíssimo de dever de estado, é pecado mortal expor-se alguém de modo próximo a cometer pecado mortal, ainda que deste risco decorresse o êxito da mais brilhante e promissora das obras de apostolado. A este respeito não pode haver dúvidas.

Assim, como para homens de uma emotividade normal a freqüência dos ambientes claramente não familiares e dos ambientes semi-familiares de qualquer matiz acarreta causa próxima de pecado, daí decorre que a freqüência a tais ambientes é inteiramente proibida aos membros da A.C..

IV – É um gravíssimo erro pretender-se que a A.C. imuniza, por uma certa misteriosa graça de estado, os seus membros, contra as tentações. Esta graça de estado será certamente muito mais abundante para os clérigos, e entretanto ela não altera o regime de relações entre a graça e o livre arbítrio, não sufoca a concupiscência e o demônio, que existem para todos os homens. Não o fará também para a A.C.. A este respeito, não teríamos senão que repetir aqui os argumentos que desenvolvemos às pags. 195, 206 e seguintes. [Parte III, cap. III, “Apostolado de conquista” – Essas doutrinas são errôneas porque pressupõem um panorama falso]

Não é menos errado argumentar-se com o exemplo de certos santos dos primeiros séculos da Igreja, que teriam freqüentado tais lugares para efeito de apostolado. Sem discutir o fato histórico, não podemos deixar de frisar que, se o argumento valesse, teria feito mal o Direito Canônico ao vedar aos clérigos e religiosos a freqüência de tais ambientes.

V – Dir-se-á que uma tal restrição à liberdade de movimentos da A.C. estancará a sua fecundidade. Mas a A.C. não é um jogo de loteria ou de roleta, em que se expõem algumas almas para ganhar outras. Por outro lado, o espetáculo de uma mocidade pura e generosa, que triunfa das seduções do mundo calcando aos pés todo o encanto de seus atrativos, para se afastar da pestilência moderna, deve impressionar necessariamente muito mais as almas criteriosas e ponderadas, as almas retas e sedentas de virtude, em uma palavra, as almas que estão a caminho de Jesus; do que não sabemos quais apóstolos “camuflados” de pagãos, que em diversões inteiramente dissonantes de sua Fé, se entregam a prazeres, dos quais finalmente se fica sem saber se é apostolado, feito como pretexto para o prazer, ou prazer como instrumento de apostolado. Positivamente, não é afivelando ao rosto a máscara de mundano que se atraem almas para Nosso Senhor Jesus Cristo.

VI – Fazendo aplicação deste princípio aos bailes semi-familiares, aos lugares de trabalho perigosos para a moralidade, etc., chegamos à conclusão de que estes ambientes constituem, de per si, uma ocasião próxima de pecado para pessoas de uma sensibilidade normal, pelo que devem ser proscritos.

Argumentou-se, ou ao menos poder-se-ia argumentar em sentido contrário, com um texto famoso de Leão XIII, sobre a infiltração dos católicos na sociedade romana. Neste texto, descreve o Santo Padre a penetração dos primitivos cristãos nos mais variados ofícios, inclusive na Cúria Imperial. É de notar-se que essa infiltração se dava em lugares obrigatórios de trabalho, e o Santo Padre não menciona a presença de fiéis, realizando infiltrações nos festins orgíacos da alta sociedade romana.

VII – Como dissemos, há finalmente lugares em que é licito comparecer porque não oferecem perigos à salvação. Não quer isto dizer que a A.C. tenha o direito de impor o comparecimento a tais lugares, como um dever, àqueles de seus elementos que, no desejo de uma vida mais santa, resolvem afastar-se de toda e qualquer diversão, ainda que lícita. Os que assim procederem merecem grande louvor, e constitui uma grave inversão de valores fazer-se-lhes qualquer censura.

A primeira razão disto está em que a perfeição cristã, quando praticada claramente e sem rebuços, constitui sempre a mais genuína e fecunda forma de apostolado.

Em segundo lugar, é certo que a obrigação de salvar almas não pode privar a quem quer que seja da liberdade sacratíssima de seguir, na via da renúncia, o caminho em que, a juízo de um diretor prudente, for guiado pelo Espírito Santo. Se, no plano natural, essa vida pode parecer menos fecunda, no plano sobrenatural terá uma eficácia difícil de ser aquilatada.

VIII – Ao ponderar todos estes múltiplos fatores, não se deve perder de vista que o único critério a ser levado em conta não é o do maior ou menor risco oferecido pelo local em que se está, mas ainda a lei da decência e o dever do bom exemplo. Fulminam as autoridades eclesiásticas a freqüência dos lugares suspeitos, as diversões pagãs, etc., etc.. – Certas camadas da população, mais dóceis à voz da Igreja, ou mais apegadas às suas tradições, relutam ainda em se conformar com os costumes novos, e para tanto se expõem à risota dos conhecidos, e ao sacrifício, que naturalmente significa qualquer diversão a que se renuncia. Qual é, sobre tais ambientes, o efeito que causa a notícia de que os membros da A.C. não só podem, mas devem aí comparecer, participando de todas as diversões, e não se recusando a si mesmos a fruição de quanto a Hierarquia condena? Aquela mesma Hierarquia, de que muitos se supõem tão orgulhosamente participantes, e implicitamente mandatários! E estes, que se crêem mandatários, agem contra as intenções do mandante! Assim, ainda mesmo que algum membro da A.C. pudesse alegar que pessoalmente não lhe faz mal o comparecimento a certos locais, sua própria dignidade de membro da A.C. lhe vedará aí o acesso.

IX – Não quer isto dizer que não admitamos a possibilidade de, em certos casos muito especiais, e portanto muito excepcionais, poder um ou outro membro da A.C., previamente autorizado pelo respectivo Assistente, e tomadas todas as precauções para evitar qualquer mau exemplo, realizar alguma infiltração, comparecendo por exemplo à reunião de um sindicato comunista, etc.. Será, porém, a ruína da A.C. que este fato excepcional se transforme em normal.

X – Lembre-se sobretudo cada qual que, neste assunto, ninguém pode ser juiz em própria causa, pelo que deve sempre aconselhar-se com um sacerdote prudente. As almas mais bem formadas passam, às vezes, por longas tentações, de origem natural ou diabólica, que lhes tornam perigoso até mesmo o que a outros seria normalmente inócuo. Assim, as conveniências do apostolado devem ser sempre subordinadas às conveniências da vida interior, apreciadas por sacerdotes prudentes.

XI – Todas estas razões estariam incompletas se não acentuássemos que, por dever de estado, pode alguém ser forçado a trabalhar em lugares francamente perigosos, ou, mais raramente, comparecer a lugares mundanos. Lembremo-nos sempre que Deus dá forças especiais a quem involuntariamente se encontra nesta situação. Desde que isso aconteça, as pessoas nestas condições devem aproveitar tal situação, que não criaram, para fazer apostolado de infiltração. Não há, porém, dever de estado algum que possa forçar alguém a praticar o mal. Que cada qual consulte um sacerdote douto e prudente, antes de se julgar autorizado a aceitar situação tão excepcional. Mas, se este realmente considera existir um dever de estado, tranqüilizem-se tais almas e lutem corajosamente para se santificar e santificar o próximo onde se encontram. Deus lhes dará aí forças, com que jamais poderão contar aqueles que fizerem uma infiltração inspirada em zelo intempestivo, e nunca em real dever de estado.

Como executar o “apostolado de infiltração”

Não podemos dar por encerrada esta questão, sem estabelecermos a conduta que, no “apostolado de infiltração”, devem tomar os membros da A.C.. Ainda ai, para esclarecer quanto possível assunto de tal complexidade, é conveniente que procedamos por meio de uma enumeração taxativa de princípios.

I – Muitas vezes, o apostolado de infiltração não tem por objetivo capital o exercício de uma ação direta sobre as pessoas, entre as quais a infiltração se realiza. É este o caso, por exemplo, de pessoas que se introduzem em alguma célula comunista, com o intuito de obter informações, planos de campanha, etc.. É patente que tais informações interessam muito mais do que a conquista duvidosa de alguns dos próceres comunistas ali existentes. Neste caso, deve o católico ocultar suas convicções, se quiser obter qualquer resultado, e será lícito que o faça, desde que não chegue ao extremo de negar a verdade, em lugar de a ocultar apenas.

II – Exceção feita deste e de outros casos especiais, não deve o membro da A.C. esquecer-se de que o maior ornamento da Igreja Católica é Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim, deixar de confessar a Nosso Senhor pública e claramente, velar sua Divina Face sob pretexto de apostolado, deixar de proclamar que somos cristãos católicos, que disto nos ufanamos, que da prática das virtudes impostas pela Igreja nos orgulhamos, é privar o apostolado do mais fecundo de seus meios de atração, é renunciar a espalhar “o bom odor de Nosso Senhor Jesus Cristo”, atrás do qual correrão sempre as almas generosas de todas as latitudes geográficas e ideológicas.

Assim, não se pense que o “apostolado de infiltração” pode lançar mão da famosa tática do “terreno comum”, de modo habitual e metódico. Pelo contrário, aqui se aplica perfeitamente tudo quanto dissemos em outro capítulo sobre essa delicada matéria.

Lamentável naturalismo! Em lugar de se compreender que o êxito do apostolado consiste, para o apóstolo, em manifestar a Jesus Cristo, supõe-se consistir em escondê-lo. E esconde a Nosso Senhor Jesus Cristo quem oculta ou desfigura, por uma suposta mitigação, a sua doutrina.

Como procedia de modo diverso aquele que, apontado pela Igreja como Padroeiro dos Párocos, desenvolveu métodos de apostolado que devem influir profundamente na orientação da A.C., isto é, o Santo Cura d'Ars! De uma severidade que a muitos modernistas poderá parecer excessiva – chegou mesmo a negar por muito tempo a absolvição a uma camponesa porque ela ia uma vez por ano a um baile familiar – ele atraía as almas mais do que ninguém. Dele pode dizer D. Chautard: “Joannes quidem signum fecit nullum” (S. João, X, 41). Sem fazer nenhum milagre, S. João Batista atraía as multidões. Bem fraca era a voz de S. Vianney, para se fazer ouvida da multidão, que em volta dele se apinhava. E, sem embargo, se o não ouviam, viam-no, viam uma custódia de Deus, e só esta vista subjugava e convertia os assistentes.

Voltara de Ars um advogado. Como lhe perguntassem o que mais o tinha impressionado, respondeu: “Vi Deus num homem” (Op. cit., pg. 110). Não podemos compreender como a doutrina de vida, saída de lábios que a saibam enunciar de modo inteiramente sobrenatural, possa ficar estéril para as almas retas. Em seus sermões, outra coisa não fez o Santo Cura d'Ars. O remédio para o apóstolo infecundo não consiste em eliminar de seus lábios a verdade, mas em aprender, aos pés do Tabernáculo, e de Maria Santíssima, o segredo de a proclamar, não só com os lábios, mas com a alma toda.

III – Claro está que certas pessoas, obrigadas a viver ou trabalhar em ambientes francamente hostis, não estão obrigadas ao mesmo procedimento, desde que tenham fundadas razões para temer sua demissão ou outros prejuízos desta natureza. Para estas, não se aplica a obrigação de um apostolado desassombrado, exceto no caso de lhes ser exigida a negação expressa da verdade.

Que pensar dos bailes?

Não daríamos por concluída nossa tarefa, sem uma observação a respeito dos bailes. É de toda a evidência, e até uma banalidade, que dançar não constitui, em si, um mal, mas que as circunstâncias que podem existir concretamente fazem, em geral, da dança um mal bastante grave.

Fala-se tanto – e com quanta razão! – da doçura de São Francisco de Sales. O conselho que o santo Doutor dá a respeito de danças é concludente, e mostra como lhe pareciam perigosas as danças de seu tempo: “Falo-vos dos bailes, Filotea, como os médicos falam dos cogumelos; os melhores de nada valem, dizem eles; e eu vos digo que OS MELHORES BAILES NÃO SÃO BONS... Se por qualquer motivo de que não conseguirdes desculpar-vos, vos for necessário ir ao baile, velai por que vossa dança seja decente. Dançai pouco, e poucas vezes, pois que do contrário correreis o risco de vos afeiçoar às danças..., e estas recreações dissipam o espírito de devoção, tornam langorosas as forças, tornam tíbia a caridade e despertam na alma mil variedades de maus afetos; eis porque é necessário servir-se delas com grande prudência”. De que maneira dançar? S. Francisco de Sales o explica: “com decoro, dignidade e boa intenção”. Que diria o Santo Doutor de certas danças modernas, como a “conga”, em que os pares formam longos cordões pelo salão, segurando-se uns aos outros, gesticulando e gritando como crianças? Encontraria ele um meio de se dançar “com decoro e dignidade” a “conga”, quando já lhe parecia isto problemático quanto às danças suaves, artísticas e delicadas de seu tempo?

Certamente não. Muitas pessoas entendem que, porque S. Francisco de Sales autorizou, em tese, que se fosse a bailes, fazendo-o embora muito a contragosto e cheio de apreensão, se deve com a maior liberalidade estender a quem quer que seja esta autorização. Estas pessoas tomariam o cuidado de aconselhar aos que dançam que façam uso de certos pensamentos salutares durante a dança? E teriam a coragem de aconselhar os pensamentos que S. Francisco de Sales menciona? Quais são eles? “Pensai, diz o Santo, nas almas que ardem no inferno por causa das faltas que cometeram em bailes; pensai nos santos religiosos que, enquanto vos divertis, cantam os louvores de Deus; pensai nos homens que no mesmo momento estão sofrendo ou morrendo; pensai em Nosso Senhor, em Nossa Senhora, nos anjos e santos que vos viram no baile, e que tiveram grande pena de ver vosso coração distraído com tão grande tolice e atento a uma tal sensaboria; pensai na morte que se aproxima zombando de vós, e que vos faz sinal para que entreis na dança macabra onde os gemidos substituem o violino, e onde fareis vosso trânsito da vida à morte”. É interessante ler, neste sentido, a 3ª parte do Cap. XXXIII da jamais assaz louvada “Introdução à Vida Devota”.

Vale para quaisquer espécies de reuniões dançantes esta importante observação que faz, em uma interessante monografia sobre “Os Católicos e as novas danças”, o insigne Dominicano, Pe. Vuillermet, O. P., de cuja obra extraímos quase todas as nossas citações sobre danças:

“É raro que as danças freqüentes e regulares se conservem como simples distração. Elas se tornam, pelo contrário, e é esta a observação de quase todos os moralistas, uma ocasião de intimidade e de encontros para pessoas que acham assim um meio fácil e aparentemente insuspeito, de dar à sua paixão um alimento de que são sempre ávidas. E mesmo quando não existe este desejo inicial, não é certo que a freqüência dos mesmos encontros faz nascer a paixão, tanto mais quanto estes encontros são muito perigosos porque prolongados? Dança-se hoje durante toda uma festa com a mesma pessoa, o que seria outrora uma grave incorreção; e, depois de ter desaparecido a primeira cerimônia, e quando a familiaridade se vai introduzindo entre o jovem e seu par, não é certo que o pudor se vai debilitando? Não se faz mais a fiscalização dos sentimentos, e insensivelmente os pensamentos e desejos que outrora teriam revoltado a consciência se aclimatam na inteligência e no coração. – Considero, pois, que estas danças freqüentes com a mesma pessoa são extremamente perigosas”.

Depois de considerações mais indulgentes quanto a pequenas reuniões dançantes absolutamente esporádicas e improvisadas na intimidade de uma família, que entretanto “conservam numerosos inconvenientes que decorrem da sua natureza”, o autor acrescenta a seguinte conclusão: “teoricamente, a dança não é imoral... e só se pode tornar tal acidentalmente. Mas não posso negar que, na prática, o acidental seja o mais freqüente. As pessoas que pecam por ocasião da dança são INCOMPARAVELMENTE MAIS NUMEROSAS do que as que não pecam. A causa deste fato está, em parte, na diminuição da Fé e no abandono dos exercícios de piedade, e de outra parte no relaxamento dos costumes que faz com que hoje em dia se permitam, na dança, tais liberdades que é muito raro que a virtude não fracasse durante ela”. Estas linhas são de 1924. Que diria o autor, das danças de 1942!

Em 1924, a Europa sofria da invasão de certas danças americanas – que hoje nos parecem tão moderadas – e que suscitaram entretanto inúmeras condenações da Hierarquia na França. O Cardeal Dubois, o Arcebispo de Chambéry, o Bispo de Lille, condenaram sucessivamente as danças novas. O Arcebispo de Cambrai escreveu: “O tango, o fox-trot e outras danças análogas são diversões imorais em si mesmas. Elas estão proibidas pela própria consciência, por toda a parte e sempre, anteriormente às condenações episcopais e independentemente delas”. E Bento XV, na Encíclica “Sacra prope diem” diz: “estas danças exóticas e bárbaras, recentemente importadas nos círculos mundanos, mais chocantes, umas que as outras, são o que há de mais próprio para banir todos os vestígios de pudor”. Muitas destas danças provinham das mais baixas camadas de indígenas americanos, e delas disse em sua Carta Pastoral Mons. Charost: “Edulcore-se quanto se queira este enxerto bárbaro, corrija-se com maior ou menor perícia seu despudor nativo. Logo que encontre um temperamento propício, este enxerto retomará seu ardor e sua violência natural. Ele é o vírus da carne pagã penetrando em um organismo social que dezessete séculos de espiritualismo cristão e de dignidade moral haviam modelado. Ele é mais do que a revolta – de que nenhum século cristão foi isento – ele é, no fundo e por tendência, a anarquia do instinto”.

Das danças modernas, muitas das quais evidentemente adaptadas e importadas dos “bas-fonds” das velhas danças pagãs de negros norte-americanos, que se poderia dizer?

Quanto aos bailes infantis, porque não reproduzir aqui, como confirmação do que com tanta eloqüência disseram nossos Bispos, o que escreveu Louis Veuillot? Estes bailes infantis são, diz-se, um espetáculo encantador. Sim, para os olhos.

“Mas que triste cena, quando atendermos aos murmúrios da razão. Meninas de oito anos fazem a aprendizagem da vaidade e da faceirice; elas já são hábeis na arte do sorriso, da pose, das atitudes, das inflexões musicais da voz. Os meninos tomam porte e expressões fisionômicas variadas, segundo as indicações maternas: tomam expressão cavalheiresca, pensativa ou importante; outros se fazem de espertos ou melancólicos, conforme lhes fique melhor. As mães aí estão radiosas. Mas a cena é feia. Percebe-se que os personagens do baile em miniatura foram profanados na flor de sua simplicidade graciosa e ingênua, desde o berço. A impressão de uma pessoa razoável, testemunha de uma destas festas chamadas de inocência, era de que se experimenta um desejo ardente de chibatear, a torto e a direito, toda a pirralhada” (Louis Veuillot, L'Univers, 28 de Dezembro de 1858).

Para encerrar, vejamos o que a este propósito fez aquele que a Santa Igreja aponta como modelo de todos os Párocos modernos.

Extraímos nossas citações da magnífica obra de Mons. H. Convert, “Le Saint Curé D'Ars et le Sacrement de Pénitence”, ed. Emmanuel Vitte, 1931, pgs. 18-21:

“Tanto o interesse geral do rebanho confiado à guarda de M. Vianney quanto o de certas almas mais particularmente expostas a perder-se exigia o desaparecimento de uma tão perniciosa desordem (as danças). Ele refletiu nisso, e, desde então, se resolveu a aplicar, ao pé da letra, os princípios da Teologia Moral sobre os pecadores ocasionais e os reincidentes, com uma grande bondade, mas também com uma energia de bronze, que nada faria recuar. Ele recusou, com efeito, a absolvição, mesmo no tempo pascal, a todas as pessoas que haviam dançado, ainda que fosse uma vez, no decurso do ano; e, enquanto “ele julgava provável que elas tornariam a cair no seu pecado”, afastava-as da participação nos sacramentos. Elas podiam vir confessar-se, e, de fato, a maior parte continuava a vir; ele as encorajava, exortava-as a mudar de vida, mas não as absolvia. “Se não vos corrigis, lhes dizia, estais condenados!”

“Este procedimento, como se pode conceber, suscitou muitas recriminações; comentou-se abertamente, e de todas as maneiras, que o Sr. Cura “não era cômodo”; comparou-se o seu método com o de seus confrades mais indulgentes; qualificou-se o Cura d'Ars de escrupuloso, de ingrato” (no idioma da região, ingrato quer dizer aborrecido, desagradável). Certas pessoas foram confessar-se nas paróquias vizinhas; ele lhes retrucou que elas tinham ido “buscar um passaporte para o inferno”. Entre si, estas pessoas o acusavam, dizendo: “Ele quer fazer com que nós prometamos coisas que não podemos cumprir; ele quereria que fossemos santos, e isto não é muito possível no mundo. Ele quereria que nós jamais puséssemos os pés na dança, e que jamais freqüentássemos os “cabarets” e os jogos. Se tudo isto fosse necessário, jamais faríamos a Páscoa...”. Contudo, “não se pode dizer que não mais se voltará a estes divertimentos, pois que não se sabem as ocasiões que se poderão deparar”. A esta argumentação interesseira, ele replicou: “O confessor, enganado por vossa linguagem artificiosa, vos dá a absolvição, e vos diz: “Sede bem comportados!” Por mim, eu vos digo que fostes calcar aos pés o sangue adorável de Jesus Cristo, que fostes vender vosso Deus como Judas o vendeu aos seus carrascos”.

“Que ganhou o Cura d'Ars com tal método? Muitos jovens de ambos os sexos ficaram excluídos dos sacramentos durante anos inteiros... É verdade. Poder-se-á pensar, poder-se-á dizer que foi um mal? De outro modo, eles os teriam recebido nula, senão sacrilegamente; eles teriam aliado, como acontece demasiado comumente, as práticas da vida cristã e as desordens do coração; a paróquia teria parecido convertida, sem o estar na realidade; as pompas de Satanás estariam sempre prestigiadas, o Príncipe das trevas teria ficado o verdadeiro senhor da situação. Ora, o Cura d'Ars queria que, de seu rebanho, Jesus Cristo fosse rei sem contraste. Por Jesus Cristo, ele se empenhou numa guerra demais de vinte anos, disputando palmo a palmo o terreno ao inimigo, sacrificando na batalha seu repouso, e, mesmo, transitoriamente, sua reputação, derramando seu sangue em borbotões quase todos os dias, extenuando-se de fadigas e de jejuns. A vitória foi, por fim, completa, definitiva; a piedade e a virtude puderam florescer à vontade sobre esta terra purificada e conquistada para seu único Mestre, e ainda hoje continuamos a saborear os seus frutos.

“De resto, digamo-lo de passagem, não foi somente frente às danças que apareceu a firmeza do Cura d'Ars. “O pecador que não se rendia às suas ternas admoestações – assim depôs seu coadjutor – encontrava-o inflexível em manter as regras”, e esbarrava numa barreira infrangível”.

Acrescenta em nota o mesmo autor: “As danças foram logo abolidas na paróquia, embora experimentassem reaparecer de longe em longe. A partir de 1832, não se fala mais delas. Mas rapazes e moças quiseram se desenfastiar indo dançar na vizinhança. Foi então, sobretudo, que o Santo se armou de uma intransigente firmeza”.


 

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