Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

  Bookmark and Share

CAPÍTULO II

A tática do “terreno comum”

 

A tática do “terreno comum” e o indiferentismo religioso

 Nunca será demais acentuar que a tática acima descrita é preconizada, não somente para uso em palestras individuais, como ainda para os jornais, revistas, conferências, cartazes e, em suma, para toda propaganda da A.C.. Subestimando, em benefício do chamado “apostolado de conquista”, o apostolado de afervoramento dos bons e o combate preventivo contra o erro nos ambientes ainda preservados, preocupam-se certos círculos da A.C. exclusivamente com o efeito de suas palavras sobre as almas situadas fora do grêmio da Igreja. Colocando-nos nesse terreno para melhor argumentar, só encaramos no capítulo precedente os efeitos funestos que tal estratégia, arvorada em meio usual de apostolado, poderia trazer. No entanto, a prática do apostolado não nos coloca apenas em presença de pessoas, de cujo espírito é preciso expurgar algum erro, a fim de ali introduzir alguma verdade. A superficialidade, o imediatismo, a despreocupação de tudo quanto não produza proventos materiais, multiplica em nossa época o número de pessoas totalmente indiferentes a tudo, e desprovidas de quaisquer idéias sobre a Religião. São espíritos que, sem qualquer prejuízo ou irritação, podem ouvir os maiores ataques contra certos inimigos da Igreja, e que farão desta um conceito mais elevado, se uma apologética vigorosa puser a nu aos seus olhos os motivos subalternos pelos quais costuma a Igreja ser atacada. Não podemos ver em que sentido se pode prestar serviços a uma destas almas, a um livre pensador por exemplo, ou antes a um mundano inteiramente indiferente, deixando de se proceder por esta forma apostolicamente franca, que elevará a Igreja em seu conceito, e ao mesmo tempo o imunizará contra uma possível investida de prosélitos do mal.

A “tática do terreno comum” e os católicos fervorosos

Quanto aos ambientes que já são católicos, o mais importante consiste em ensinar a verdade e não em combater o erro. Em outros termos, mais vale um sólido conhecimento do catecismo, do que um certo adestramento nas lutas da apologética. Entretanto, pode-se aliar perfeitamente uma vantagem à outra, e será sempre digno de louvor quem se empenhar em mostrar aos filhos da luz toda a tenebrosa abjeção intelectual e moral, que impera no reino das trevas. Quanto filho pródigo renunciaria ao abandono criminoso do lar, se um conselheiro prudente lhe advertisse dos riscos sem número, a que se expõe deixando os domínios paternos! É imenso o abismo que separa a Igreja da heresia, o estado de graça do pecado mortal, e será sempre uma obra de misericórdia das mais eminentes, mostrar aos católicos despreocupados a temível extensão deste abismo, a fim de que não se atirem inconsideradamente em suas profundezas.

Tudo isto posto, e já que, segundo demonstramos, os mais altos interesses da Igreja e as mais graves imposições da caridade nos levam a agir de preferência sobre os irmãos na Fé, chegamos à conclusão de que fazer da famosa tática do “terreno comum” a nota dominante e a bem dizer exclusiva da propaganda da A.C., implica em grave erro.

Imagine-se o efeito concreto que sobre nossa massa católica teria uma propaganda, cujo “leit-motiv” fosse invariável e exclusivamente que do protestantismo nos separa apenas uma tênue barreira; que estamos todos ligados pela Fé comum em Jesus Cristo e que muito maiores são os laços que as barreiras entre nós. Quem conseguisse fazer prevalecer essa tática entre os católicos mereceria, por certo, um grande cordão de honra, por parte dos protestantes.

Um curioso exemplo do perigo que a Santa Sé considera nesta tática de pôr em constante relevo as analogias existentes entre a doutrina católica e os fragmentos de verdade, que se encontram em todos os erros, nota-se na proscrição expressa e radical da palavra “socialismo católico” feita pelo Sto. Padre Pio XI, na Encíclica “Quadragésimo Ano”.

Como ninguém ignora, o termo “socialismo” servia de denominador comum para todas as correntes sociais anti-individualistas, que iam desde alguns matizes nitidamente conservadores até o comunismo. Assim, dado que Leão XIII se manifestou radicalmente anti-individualista, a expressão “socialismo católico” abria um “terreno comum” entre todas as doutrinas anti-individualistas e a Igreja. Do ponto de vista da política dos panos quentes, a expressão era tanto mais vantajosa, quanto não comprometia as relações entre católicos e individualistas, já irremediavelmente rotas, em conseqüência de atitudes anteriores da Santa Sé. Pio XI, entretanto, rompeu com este termo ambíguo e o proscreveu pelo mau sentido que se lhe poderia atribuir, causando com isto evidente surpresa aos muitos partidários dos panos quentes.

A verdadeira atitude

Nesse terreno, como nos demais “oportet haec facere et illa non omitere”. É preciso sobretudo e antes de tudo ser objetivo e verdadeiro. Não ocultemos o abismo que separa tudo quanto é católico do que não o é, abismo imenso, profundo, que seria mortalmente perigoso não ver. Por outro lado, não rejeitemos também os resquícios de verdades nossas que possam sobreviver nos erros do adversário. Mas guardemos sempre em nossa linguagem a preocupação de jamais tomar, a pretexto de conquista dos maus, atitudes que prejudiquem a perseverança dos bons e seu horror à heresia. Aliás, é muito menor do que se pensa o valor de alguns fragmentos de bem ou de verdade que entre os hereges se podem conservar. Neste sentido vejamos, por exemplo, o que S. Tomás nos ensina acerca da Fé.

– “Podem os infiéis fazer atos de fé?

– Não Senhor; porque não crêem na Revelação, ou seja porque ignorando-a, não se entregam confiadamente nas mãos de Deus, nem se submetem ao que deles exige ou porque, conhecendo-a, recusam prestar-lhe assentimento. (X).

– Podem fazê-los os ímpios?

– Tão pouco, porque, se bem que têm por certas as verdades reveladas, fundadas na absoluta veracidade divina, a sua fé não é efeito de acatamento e submissão a Deus, a quem detestam, ainda que com pesar seu se vejam obrigados a confessá-lo (V. 2. ad 2).

– É possível que haja homens sem fé sobrenatural, e que creiam desta forma?

– Sim Senhor; e nisto imitam a fé dos demônios (V., 2).

– Podem crer os hereges com fé sobrenatural?

– Não Senhor; porque, embora admitam algumas verdades reveladas, não fundam o assentimento na autoridade divina, senão no próprio juízo (V, 3).

– Logo, os hereges estão mais afastados da verdadeira fé que os ímpios e que os mesmos demônios?

– Sim Senhor; porque não se apóiam na autoridade de Deus.

– Podem crer com fé sobrenatural os apóstatas?

– Não Senhor; porque desprezam o que haviam crido por virtude da palavra divina (XII).

– Podem crer os pecadores com fé sobrenatural?

– Podem, com tanto que conservem a fé, como virtude sobrenatural; e podem tê-la, se bem que em estado imperfeito, ainda quando, por efeito do pecado mortal, estejam privados da caridade (IV, 1-4)”.

– Logo, nem todos os pecados mortais destroem a fé?

– Não Senhor (X,1, 4)”.

P. Tomás Pègues, O. P. – “A Suma Teológica em forma de Catecismo”, páginas 92 e 93 da edição brasileira.

Desse livro escreveu o Santo Padre Bento XV em carta ao autor que este soube “acomodar ao alcance de sábios e ignorantes os tesouros daquele gênio excelso (Santo Tomás de Aquino), condensando em fórmulas claras, breves e concisas, o que ele com maior amplitude e abundância escreveu”. É, pois, um resumo de grande autoridade, que nos dispensa de fazer uma citação mais extensa de S. Tomás.

*    *    *

Antes de passar a outro aspecto da questão, gostaríamos de acentuar que o grande e sapientíssimo Sto. Inácio prescreveu uma regra de conduta, que é precisamente o contrário da famosa tática exclusiva do terreno comum. Disse o Santo que, quando em uma época existe a tendência de exagerar alguma verdade, o apóstolo diligente não deve falar muito desta verdade, mas sobretudo da verdade oposta. Exagera-se sobre a graça? Fale-se em livre arbítrio. E assim por diante. Quanto mais inteligente, mais eficaz e mais seguro é este procedimento!

Ressalva importante

Não quer isto dizer, evidentemente, que de modo invariável deve ser rejeitada a colaboração de certos adversários contra outros mais terríveis. Se bem que a história nos demonstre a ineficácia deste processo em muitos casos, outros há – raros embora – em que ele é aconselhável. Assim, o Santo Padre Pio XI preconizou a cooperação de todos os homens crentes em Deus contra o comunismo. Mas tal cooperação deve ser levada a efeito com bom senso, sem entusiasmos exagerados e malsãos, e sobretudo sem estabelecer uma confusão entre o campo da verdade e o do erro sob pretexto de combater erros mais funestos. Com efeito, desde que os católicos adormeçam um pouco e aceitem fórmulas de cooperação mais ou menos ambíguas, decorrerá daí uma exploração, que seus aliados não tardarão a inaugurar, e que porá por terra todo o trabalho comum. Para que se veja que não erramos quando aventamos tais hipóteses, argumentemos com o mais moderno dos exemplos, isto é, uma grande heresia contemporânea, certamente mais importante para a Igreja do que são atualmente o protestantismo, o espiritismo, a igreja cismática, etc.. – Na Alemanha, sentiu muito bem o nazismo como lhe convinha o pretexto de frente única contra o comunismo; e o termo genérico de “crença em Deus”, terreno comum entre nós e os nazistas, passou a encobrir as mais torpes mistificações, a tal ponto que se tornou necessário premunir os fiéis contra a ambigüidade de certos documentos nazistas. Damos aqui a tradução de um dos folhetos distribuídos nesse sentido pelo movimento católico alemão: – “Chegou a hora da decisão. A cada um se formulará a pergunta: crês em Deus ou professas a Fé em Cristo e sua Igreja? Crer em Deus não tem na nova estatística das religiões o sentido de nosso primeiro artigo de Fé; hoje, crença em Deus significa exclusivamente crença em Deus como a professam os turcos e hotentotes, e significa ainda repúdio de Jesus Cristo e de sua Igreja. Quem pretender aceitar um tal Deus renegou a Cristo e se separou da Igreja Católica. Chegou a hora da decisão. Assim, pois, quando se vos perguntar individualmente se credes em Deus, terá chegado a hora de fazerdes profissão de Fé sem rodeios, sem vacilações e sem meios termos: sou católico, não creio só em Deus, mas em Jesus Cristo e sua Igreja” (El Cristianismo en El Tercer Reich, Testis Fidelis, 2º volume, pg. 103). E por isto, o Santo Padre Pio XI, na Encíclica “Mit Brennender Sorge” contra o nazismo, argumentou longamente para provar que não tem a verdadeira crença em Deus quem não crê em Jesus Cristo, Senhor Nosso, e não crê em Jesus Cristo de modo preciso quem não crê na Igreja.

Não ocultemos a austeridade de nossa Religião

Não menor reserva merece a afirmação de que a A.C. deve ocultar, em seu apostolado, todas as verdades que porventura pudessem afastar as almas, por sua austeridade moral. Com todo cuidado, deveriam ser evitados os termos ou expressões capazes de dar a entender que a vida do fiel é uma vida de luta. A razão disto está em que se pretende mascarar inteiramente, sob aparências alegres, os sofrimentos impostos a quem segue Jesus Cristo. Não procedia assim o Divino Salvador, que mais de uma vez declarou ser a Cruz a companheira necessária de quem O quisesse seguir. Não procediam assim os Apóstolos, e de São Paulo nos fez o Santo Padre Bento XV o seguinte elogio: “procedeu de maneira que os homens conhecessem de mais a mais Jesus Cristo, e por aí soubessem não somente o que é preciso crer, mas ainda como é necessário viver; eis o fim para o qual São Paulo trabalhou com todo o ardor de seu coração apostólico. Eis porque ele expunha os Dogmas de Cristo, e todos os preceitos, ainda os mais severos, sem reticências nem mitigações, falando da humildade, da abnegação de si mesmo, da castidade, do desprezo das coisas humanas, da obediência, do perdão aos adversários e outros assuntos análogos. Ele não experimentava a menor timidez em declarar que entre Deus e Belial é preciso escolher a quem se quer obedecer, e que não é possível ter a um e outro como Senhor, que um julgamento temível aguarda os que devem passar da vida à morte; que não é licito transigir com Deus; que se deve esperar a vida eterna se se cumpre a Lei, e que o fogo eterno aguarda os que faltam a seus deveres, favorecendo a concupiscência. Com efeito, jamais o Pregador da verdade teve a idéia de se abster de tratar essa espécie de assuntos sob o pretexto de que, em vista da corrupção da época, tais considerações teriam parecido por demais duras para aqueles a quem se dirigia. E daí se conclui que não se devem aprovar os pregadores que, movidos pelo receio de aborrecer seus ouvintes, não ousassem abordar estes pontos da doutrina católica. Um médico prescreverá, porventura, a seus doentes, remédios inúteis porque os remédios salutares lhe são repugnantes? Aliás, o orador dará a prova de sua força e de seu poder, se, por sua palavra, souber tornar agradável o que não o é. Enfim, São Paulo pregava com o espírito de agradar a Jesus Cristo e não aos homens: “Se eu agradasse aos homens, dizia ele, não seria servidor de Cristo” (Bento XV, Encíclica “Humani Generis”, de 15 de junho de 1917). Como se vê, esta preciosa regra de conduta para os pregadores, que falam em nome da Igreja, não poderia deixar de se aplicar também ao apóstolo leigo, dirimindo inteiramente quaisquer dúvidas a este respeito. Este deve, pois, ambicionar de todo o coração que sua vida interior seja tal, que ele possa incitar à penitência todos os homens, com estas magníficas palavras: “Estou cravado com Cristo na Cruz, e vivo já não eu, mas é Cristo que vive em mim” (Gal. 2, 19-20).

Poder-se-ia objetar que a oratória e o apostolado, sendo feitos para atrair, não devem tratar de assuntos que por sua própria natureza repelem. Errôneo argumento, rejeitou-o a Sagrada Congregação Consistorial, por resolução de 28 de junho de 1917: “o pregador não deve ambicionar os aplausos de seus ouvintes, mas procurar exclusivamente a salvação das almas, a aprovação de Deus e da Igreja. Dizia São Jerônimo que o ensino, na Igreja, não deve suscitar as aclamações do povo, mas seus gemidos, e as lágrimas dos ouvintes são os louvores do pregador”. Parece-nos que a ninguém seria possível exprimir-se com mais clareza. Em outros termos, nunca se deve deixar de pregar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo “por quem o mundo está crucificado para nós, e nós para o Mundo” (Gal. 6,14).

Não endeusemos a popularidade

Quanto ao medo de, com tal desassombro de linguagem, ofender aos hereges, é preciso acentuar que a doutrina católica nos prescreve, certamente, que devemos proceder com caridade, evitando, até com sacrifícios heróicos, tudo que possa desagradar nossos irmãos separados. Mas os próprios interesses de nossos irmãos separados, os direitos das almas justas e sedentas da Verdade, nunca devem ser sacrificados a este receio de não desgostar o próximo. Muitas vezes, as atitudes capazes de os irritar são indispensáveis ao apostolado e, portanto, francamente louváveis. O mais evidente bom senso demonstra que há ocasiões, em que se torna necessário desagradar os homens, e às vezes a muitos homens, a fim de servir a Deus, segundo o exemplo de São Paulo. É este, caracteristicamente, o caso que se vê no Evangelho, no tocante a Nosso Senhor Jesus Cristo, como há pouco demonstramos. Ninguém poderia perfumar o seu apostolado com as manifestações de uma caridade mais delicada do que o Divino Salvador. Entretanto, não logrou Ele atrair a simpatia unanime das pessoas a quem falou, e a bem dizer a sua obra naufragou – humanamente falando, e julgadas só as aparências imediatas – sob um dilúvio de impopularidade que chegou ao extremo da crucifixão. Aquele de quem pôde dizer o Apóstolo “pertransiit benefaciendo” (Actos, X, 38), foi preferido o infame Barrabás. Se a popularidade fosse a conseqüência necessária de todo apostolado frutuoso, e se, reciprocamente, a impopularidade fosse a nota distintiva do apostolado fracassado, Nosso Senhor teria sido o tipo perfeito do apóstolo inábil.

No Ofício de Trevas da Quinta-Feira Santa, lê a Igreja a seguinte lição de Santo Agostinho (Feria Sexta, II noturno, 5ª lição) sobre a energia com que nosso adorável Salvador estigmatizou os erros dos judeus, não recuando diante da imensa impopularidade que daí decorreu, e que Ele certamente previu: “Ele não guardou silêncio sobre seus vícios, a fim de lhes inspirar o horror destes vícios e não o ódio do médico que os curava. Mas eles, correspondendo pela ingratidão a este desvelo, semelhantes a frenéticos, que uma febre ardente irrita contra o médico que viera para os curar, formaram o desígnio de o perder”.

Por aí se vê quão infundada e errônea é a idéia de que a popularidade é necessariamente o prêmio de todo o apostolado bem sucedido, de sorte que o apostolado tomaria ares demagógicos para jamais desagradar a opinião pública. E o temor desta impopularidade jamais fez recuar Nosso Senhor ou os Apóstolos.

No entanto, não só a sua Igreja triunfou de toda essa impopularidade, mas, desde os Apóstolos até os nossos dias, vem Ela vencendo o tumulto das calúnias, das perseguições, das blasfêmias, que não têm cessado de se erguer em torno dEla. Verdadeira pedra de contradição, tem a Santa Igreja precisamente como o seu Divino Fundador, suscitado um imenso e terrível dilúvio de ódio, menor entretanto e muito menor que a inundação de amor com que Ela não tem cessado de encher a terra.

A Igreja não despreza a popularidade nem a rejeita

Não quer isto dizer que, movida por suas entranhas de Mãe, não procure a Igreja agradar aos seus filhos e se deleitar nas efusões de amor, que eles lhe tributam. Longe de nós a idéia blásfema de que a Igreja deva cultivar a impopularidade, e distanciar-se desdenhosamente das massas. Mas daí a fazer da popularidade o fruto exclusivo do apostolado, há uma distância muito grande, que o bom senso se recusa a transpor. Segundo o belo lema dominicano seja a nossa norma “veritate charitati”. Digamos a verdade com caridade, façamos da caridade um meio para chegar à verdade, e não nos sirvamos da caridade como pretexto para qualquer diminuição ou deformação da realidade, nem para conquistar aplausos, nem para fugir a críticas, nem para procurar inutilmente contentar todas as opiniões. Do contrário pela caridade chegaríamos ao erro, e não a verdade.

Mas não faz dela a meta de seus esforços

E se porventura a malícia dos homens semear de ódios os caminhos trilhados por nossa inocência, consolemo-nos com os Santos. De São Jerônimo disse Bento XV: “um zelo tão ardente em salvaguardar a integridade da Fé o atirava em veementíssimas polêmicas contra os filhos rebeldes da Igreja, que ele considerava seus inimigos pessoais: “Ser-me-á suficiente responder que jamais poupei os hereges e que empreguei todo o meu zelo em fazer dos inimigos da Igreja meus inimigos pessoais”; em uma carta a Rufino ele escreveu: “Há um ponto em que não poderei concordar contigo: poupar os hereges, não me mostrar católico”. Entretanto, contristado por sua defecção, ele lhe suplicava que voltasse à sua Mãe desolada, única fonte de salvação; e em favor dos “que tinham saído da Igreja e abandonado a doutrina do Espírito Santo para seguirem seu próprio juízo”, pedia ele a graça de que voltassem a Deus de toda sua alma. Já sabemos, Veneráveis Irmãos, que profundo respeito, que amor entusiástico ele votava à Igreja Romana e à Cátedra do Pescador. Sabemos com que vigor ele combatia os inimigos da Igreja. Aplaudindo seu jovem companheiro de armas, Agostinho, que sustentava os mesmos combates, e felicitando-se por haver como ele atraído sobre si o furor dos hereges, ele lhe escreveu: “honra à tua bravura! O mundo inteiro tem os olhos postos sobre ti. Os católicos veneram e reconhecem em ti o restaurador da antiga Fé, e sinal ainda mais glorioso, todos os hereges te amaldiçoam e me perseguem contigo com um ódio igual, matando-nos pelos seus desejos, na impossibilidade de nos imolar sob seus gládios”. Este testemunho se acha magnificamente confirmado por Postumianus em Sulpicio Severo: “uma luta de todos os instantes e um duelo ininterrupto com os maus concentravam sobre Jerônimo os ódios dos perversos. Nele, os hereges odeiam aquele que não cessa de os atacar; os clérigos, quem lhes recrimina a vida e os crimes. Mas todos os homens virtuosos sem exceção o amam e admiram.

“Este ódio dos hereges e dos maus levou Jerônimo a suportar penosos sofrimentos, sobretudo quando os pelagianos se atiraram sobre o Mosteiro de Belém e o saquearam; mas ele suportou com equanimidade todos os maus tratos e todas as injúrias, disposto que estava a morrer para a defesa da Fé Cristã” (Encíclica “Spiritus Paraclitus”, de 15 de setembro de 1920).

Conclusão

Acabamos de ver o procedimento de um Doutor, de um Santo, de um dos maiores Santos da História da Igreja, elogiado por um Pontífice. Não poderia haver maior garantia de que esse procedimento não é apenas licito, mas exigido muitas vezes pelos mais altos e nobres princípios e interesses da Igreja.

Resumamos nosso modo de pensar, condensando-o em alguns itens, que tornarão mais preciso nosso pensamento, mostrando que nem a doçura, nem a energia devem ter um lugar exclusivo, no apostolado:

1) – Dada a variedade imensa de almas, a multiplicidade e complexidade das situações em que se possam encontrar, não é a todas elas que se deve dirigir indistintamente as mesmas palavras nem a mesma linguagem, ainda mesmo que se encontrem em situação idêntica. Leão XIII disse positivamente que um apóstolo jamais pode usar um só método de ação. Pelo contrário, afirmou que os métodos de apostolado são múltiplos, e ineficaz o apóstolo que não saiba servir-se de todos:

“É necessário – dizia ele – que, quem for medir suas forças com todos, conheça as manobras e métodos de todos, que saiba manejar as flechas e a funda, seja tribuno e chefe de corte, general e soldado, infante e cavaleiro, apto a lutar com todas as armas e a derrubar muralhas. Se o defensor não conhece, com efeito, todas as maneiras de combater, o demônio saberá fazer entrar por um só lado seus agentes, no caso em que um só lado tenha sido deixado ao descuido, e assim roubar as ovelhas” (Leão XIII, Encl. “Providentissimus Deus”, de 8-11-1893).

Aliás, S. Paulo advertiu que devíamos lutar “com as armas ofensivas e defensivas da justiça” (2, Cor., 6, 7).

Como esta variedade de processos fortes e viris dista da monotonia do “sorriso apostólico” que se pretende inculcar como única, ou quase única arma de apostolado! E como esse apostolado mutilado e edulcorado difere do que descreve S. Paulo: “as armas de nossa milícia não são carnais, mas são poderosas em Deus para destruir as fortificações, derribando projetos e toda a altura que se levanta contra a ciência de Deus, e reduzindo à sujeição todo o entendimento na obediência a Cristo, e estando preparado para castigar toda a desobediência, depois que for cumprida a vossa obediência” (2, Cor., 10, 4-6).

2) – Por isto, suscita Deus, na Santa Igreja, Santos dotados de temperamentos diversos, e guiados pela graça através de vias espirituais diferentes. Esta diversidade, legítima expressão da fecundidade da Igreja, é providencial. Procurar reduzir a uma uniformidade essencial as variedades dessas manifestações, é trabalhar contra o Espírito Santo e atentar contra a fecundidade da A.C..

3) – A formação da “técnica do apostolado” deverá tomar em conta esta variedade, não procurando formar apóstolos de um só feitio, mas ensinando a cada qual os verdadeiros limites dentro dos quais reina a caridade, de maneira que a Fortaleza não os transponha, pois feriria a Bondade, e a Bondade não os transgrida porque se transformaria em perigosa e censurável fraqueza. Estes limites postos, convém que cada qual proceda segundo a santa liberdade dos Filhos de Deus, sem que seja forçado a amoldar sua personalidade à dos outros. Neste sentido, devem todos entender-se fraternalmente, cooperando para melhor servir à Igreja com a variedade de seus temperamentos, evitando cuidadosamente que dessa providencial variedade decorram atritos de que a Igreja será, em ultima análise, a grande prejudicada [1].

A caridade não pode obnubilar a verdade

 Confirmando tudo quanto acabamos de ver, mencionemos, finalmente o conselho que, na magistral Encíclica sobre S. Francisco de Sales, escreveu Pio XI: “O exemplo do Santo Doutor lhes traça (aos jornalistas católicos) uma linha de conduta bem clara: – estudar com maior cuidado a doutrina católica e possui-la na medida de suas forças; evitar que a verdade seja alterada, atenuada ou dissimulada sob pretexto de não ferir adversários. Saber, quando um ataque se impõe, refutar os erros e se opor à malícia dos operários do mal”.

Desde os primeiros tempos da Igreja, tem sido esta a sua linguagem [2]. Se algum jornal católico dissesse, falando de hereges, que são “como animais irracionais, destinados por natureza a serem capturados e mortos” a indignação seria imensa em alguns de nossos círculos. São Pedro, entretanto, o disse (II, 12). Se um jornal católico escrevesse dos socialistas, liberais ou nazistas: “são fontes sem água. Nevoeiros agitados de turbilhões. Aguarda-os a mais profunda escravidão. Vêm com frases arrogantes e vãs e seduzem pelos apetites impuros da carne aqueles que mal acabavam de abandonar a sua vida desvairada. Prometem-lhes a liberdade, quando eles mesmos são escravos da perdição; pois o homem é escravo daquilo porque é vencido. Pelo conhecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo tinham fugido dos vícios mundanos, mas deixaram-se outra vez enredar e escravizar, e tornou-se-lhes o último estado pior que o primeiro. Melhor lhes fora não terem jamais conhecido o caminho da justiça, do que, depois de conhecê-lo, voltarem as costas ao Santo Mandamento que receberam. Verifica-se nesses tais a verdade do provérbio “Volta o cão a seu vômito” e “o porco que saiu do banho torna a revolver-se no lamaçal” (II, São Pedro, II, 17 a 22); se um jornal católico, repetimos, escrevesse tais coisas, que lhe aconteceria?

Na linguagem dos Santos encontramos expressões idênticas. Santo Inácio de Antioquia, mártir do século II, escreveu antes de seu martírio várias cartas a diversas Igrejas. Nestas, lemos sobre os hereges as seguintes expressões: “bestas ferozes” (Ephesios, VII), “lobos rapaces” (Fil. II, 2), “cães danados que atacam traiçoeiramente (Ef. VII), “bestas com rostos de homens” (Smirn. IV, 1), “hervas do diabo” (Ef. X, 1), “plantas parasitas que o pai não plantou” (Tral., XI), “plantas destinadas ao fogo eterno” (Ef. XVI, 2).

Um dos mais diletos discípulos do Apóstolo do Amor foi sem dúvida São Policarpo, por intermédio de quem soube Santo Irineu que, indo certa vez o Apóstolo aos banhos, retirou-se sem se lavar, porque aí vira Cerinto, herege que negava a Divindade de Jesus Cristo, “com receio dizia, que o prédio viesse abaixo, pois nele se encontrava Cerinto, inimigo da verdade”. Pode-se imaginar que Cerinto não se sentiu satisfeito! O próprio São Policarpo, encontrando-se um dia com Marcião, herege docetista, e perguntando-lhe este se o conhecia, respondeu: “Sim, sem dúvida, és o primogênito de Satanás”. Aliás, nisto seguiam o conselho de São Paulo: “Ao herege, depois de uma ou duas advertências, evita, pois que já é perverso e condena-se por si mesmo” (Tito, III, 10). O mesmo São Policarpo, se casualmente se encontrava com hereges, exclamava tapando os ouvidos: “Deus de bondade, porque me conservastes na terra a fim de suportar tais coisas?” E fugia imediatamente, para evitar semelhante companhia.

No século IV, narra Santo Atanásio que Santo Antônio Eremita chamava, aos discursos dos hereges, venenos piores do que o das serpentes. Santo Tomás de Aquino, o plácido e angélico Doutor, qualificou da seguinte maneira Guilherme do Santo Amor e seus sequazes: “inimigos de Deus, ministros do diabo, membros do Anticristo, inimigos da salvação do gênero humano, difamadores, réprobos, perversos, ignorantes, iguais a Faraó, piores que Joviniano e Vigilância”, que eram hereges contrários à Virgindade de Nossa Senhora. São Boaventura, Doutor Seráfico, chamou Geraldo, seu contemporâneo, “protervo, caluniador, louco, envenenador, ignorante, embusteiro, malvado, insensato, pérfido”. S. Bernardo, o Doutor Melífluo, disse de Arnaldo de Brescia, que era “desordenado, vagabundo, impostor, vaso de ignomínia, escorpião vomitado de Brescia, visto com horror em Roma, com abominação na Alemanha, desdenhado pelo Romano Pontífice, louvado pelo diabo, obrador de iniqüidades, devorador do povo, boca cheia de maldição, semeador de discórdias, fabricador de cismas, lobo feroz”. Contra João, Bispo de Constantinopla, disse São Gregório Magno, que tinha “um profano e nefando orgulho, a soberba de Lúcifer, fecundo em palavras néscias, vaidoso e escasso de inteligência”. Da mesma forma falaram os Santos Fulgêncio, Próspero, Sirício Papa, João Crisóstomo, Ambrósio, Gregório Nazianzeno, Basílio, Hilário, Alexandre de Alexandria, Cornélio e Cipriano, Atenagoras, Irineu, Clemente, todos os Padres enfim da Igreja, que se distinguiram por suas virtudes heróicas.

O princípio em que se inspira o procedimento de tantos Santos, condensou-o de modo admirável o suavíssimo Bispo de Genebra, São Francisco de Sales, nas seguintes palavras: “Os inimigos declarados de Deus e da Igreja devem ser difamados tanto quanto se possa, desde que não se falte à verdade, sendo obra de caridade gritar: eis o lobo! quando está entre o rebanho ou em qualquer lugar onde seja encontrado” (Filotéa, Cap. XX, da parte II). É claro que não preconizamos o uso exclusivo desta linguagem. Mas não achamos justo que ela seja acusada de contrária à caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O exemplo de D. Vital

Em outro capítulo deste livro, acentuamos a semelhança das concepções dos membros de certas confrarias do tempo de D. Vital a respeito da Autoridade Eclesiástica, com as de certos doutrinadores da A.C.. Também a respeito da estratégia apostólica, essa semelhança entre as duas correntes é frisante. O insigne D. Vital sentiu a necessidade de dizer o seguinte, em um dos seus sermões ao povo de Olinda: “Há hoje toda uma espécie de homens que, negando o princípio da autoridade... pretendem ensinar aos Bispos que devem ser todos doçura e conciliação, sem jamais fazer uso de uma paternal severidade. Ora, se percorrermos as primeiras páginas da História da Igreja, o que veremos? São Paulo, cujas epístolas respiram a mais suave caridade do Senhor, dizer aos cristãos culpados de Corinto: – “irei a vós de chicote em punho”. E pronunciou contra eles a pena de excomunhão” (Padre Louis de Gonzague, O. M. C., “Monseigneur Vital”, pg. 329). E foi porque essa imprudente unilateralidade de processos apostólicos não cravou raízes no espírito do ilustre Bispo que o Brasil venceu uma das mais sérias crises religiosas de sua História.

 

Ajustemos nossos processos à mentalidade hodierna

Cumpre esclarecer que, se tanto a linguagem apostólica impregnada de amor e de suavidade quanto a que incute temor e vibra de santa energia são igualmente justas e devem uma e outra ser utilizadas em qualquer época, é certo que em determinadas épocas convém acentuar mais a nota austera e em outras a nota suave, sem jamais levar esta preocupação ao extremo – que constituiria um desequilíbrio – de tocar só uma nota e abandonar a outra.

Em que caso se encontra nossa época? Os ouvidos do homem contemporâneo estão evidentemente fartos da doçura exagerada, do sentimentalismo acomodatício, do espírito frívolo das gerações anteriores. Os maiores movimentos de massa, em nossa época, não têm sido obtidos pela miragem dos ideais fáceis. Pelo contrário, é em nome dos princípios mais radicais, fazendo apelo à dedicação mais absoluta, apontando as veredas ásperas e escarpadas do heroísmo, que os principais chefes políticos têm entusiasmado as massas até fazê-las delirar.

A grandeza de nossa época está precisamente nesta sede de absoluto e de heroísmo. Por que não saciar esta louvável avidez com a pregação desassombrada da Verdade absoluta, e da moral sobrenaturalmente heróica que é a de Nosso Senhor Jesus Cristo?

O espírito das massas mudou, e é preciso que abramos os olhos a esta realidade. Não caiamos no erro de as afastar de nós, o que inevitavelmente se dará em nossos ambientes se elas só encontrarem as diluições da homeopatia doutrinária do século XIX.

Pouco antes de falecer, escreveu o insigne Cardeal Baudrillart um artigo em que mostrava que a piedade dos fiéis passava a venerar cada vez mais, em Santa Teresinha do Menino Jesus, o heroísmo de sua morte em holocausto expiatório ao Amor Misericordioso, já não alimentando a sua devoção somente na meditação da doçura aliás admirável da Santa de Lisieux. E Sua Eminência concluía que é pela pregação do heroísmo que a Igreja pode reconduzir hoje as massas a Jesus Cristo, mais do que em qualquer outra época.

Esta gravíssima advertência não deve por nós ser esquecida. Demos às almas o pão forte que hoje em dia elas pedem, e não a água de rosas que já não agrada a seu paladar.

*    *    *

Não seria supérfluo tratar aqui de outra questão. Há quem entenda que o apóstolo leigo deve ostentar sempre, e necessariamente, uma fisionomia jovial e transbordante de contentamento, se não quiser afugentar as almas.

Muito abuso se tem feito neste sentido do belíssimo pensamento de S. Francisco de Sales: “Um santo triste é um triste santo”.

Segundo muito bem ensina Santo Tomás de Aquino, e o próprio S. Francisco confirma, a “tristeza pode ser boa ou má, conforme os efeitos que em nós produz” (S. Francisco de Sales, Pensamentos Consoladores, pg. 178, edição 1922). Assim, o próprio da alma virtuosa consiste em experimentar a tristeza boa e até deixá-la transparecer na fisionomia, sem receio de, com isto, afastar da Igreja qualquer pessoa. Com efeito, esta tristeza edifica, e dela Nosso Senhor sofria quando disse: “Está triste a minha alma até a morte”. E, assim como a contemplação da tristeza santíssima de Nosso Senhor converteu inúmeras almas, assim verificar-se estampada no rosto de uma alma piedosa a mesma tristeza, só pode atrair e edificar. É desta tristeza, que disse o Espírito Santo: “Pela tristeza que aparece no rosto, se corrige o coração do delinqüente” (Ecl. VII, 4). E ainda: “O coração dos sábios está onde se encontra a tristeza, e o coração dos insensatos, onde se encontra a alegria” (Ecl, VII, 5).

Com efeito, há uma alegria santa, que edifica, e uma alegria mundana, que escandaliza. É desta última alegria que falou o Espírito Santo, quando disse: “Como o ruído dos espinhos ardendo debaixo de uma panela, assim o riso do insensato; mas também isto é vaidade” (Ecl., VII, 7).

“Bonum ex integra causa”: logo, a edificação do próximo tanto pode vir da tristeza santa quanto da santa alegria dos que fazem apostolado. “Malum ex quocumque defectu”: de uma alegria mundana, de uma tristeza mundana, só pode resultar desedificação.

Logo, não se deve entender que, para fazer apostolado, é preciso que se esteja sempre alegre. O que é necessário é que, quer nossa aparência seja alegre, quer triste, estejamos sempre com Deus.

*   *   *

As pessoas que caem nestes erros professam também um entusiasmo delirante em relação à virtude da simplicidade. Mas de que modo errôneo a entendem!

Segundo elas, deve o católico dar crédito a tudo quanto se lhe diz, e ser “inocente como uma pomba”.

Ora, a inocência da pomba, quando desacompanhada de outra virtude absolutamente tão alta, tão evangélica e tão nobre quanto ela, que é a astúcia da serpente, facilmente se transforma em estultice.

É de “pombas” deste jaez, que disse o Espírito Santo: “são pombas imbecis e sem inteligência” (Oséas, VII, 11).

Com efeito, “o imprudente dá crédito a tudo o que se lhe diz, e o cauteloso considera seus passos” (Prov., XIV, 15).

Por isto, o cristão bem formado “quando o inimigo lhe falar em tom humilde, não se fiará nele, porque ele tem sete malicias no coração” (Prov., XXVI, 25). Com efeito, o homem prudente sabe “pelos lábios do inimigo, conhecê-lo, quando no coração está maquinando enganos” (Prov., XXVII, 19).

Assim, o apóstolo bem formado sabe pôr sua perspicácia ao serviço da Igreja, seguindo o conselho da Escritura: – “Apanhai-nos as raposas pequenas, que destroem nossas vinhas, porque a nossa vinha está já em flor” (Cant., II, 15).

Este conselho, segundo o comentário do Pe. Matos Soares (Porto, 1934) quer dizer: “As raposas simbolizam os hereges, que são astutos como elas. É preciso detê-los logo no principio, quando ainda são pequenos (raposas pequenas), do contrário, serão mais tarde a desolação da Igreja”.

É a mesma santa astúcia que devemos desenvolver para “viver em amizade com muitos, tendo, porém, como conselheiro, um entre mil: tendo um amigo, tomai-o depois de o ter provado, não nos fiando facilmente nele” (Eclesiástico, VI, 6-7). Manda-nos o mesmo livro: “Separa-te dos teus inimigos, e está alerta com teus amigos” (VI, 13). E, achar difícil a observância desta conduta, é prova de fraqueza: “Quão excessivamente áspera é a sabedoria para os néscios! Não permanecerá nela o insensato. Será para eles como uma pedra pesada que serve para provar, e não tardarão em se descarregar dela” (Ibid., VI, 25-26). Por sentimentalismo, não saberão praticar o conselho: “Segundo as tuas forças, acautela-te do próximo” (Eclesiástico, IX, 21), nem este outro conselho: “Não contes os teus pensamentos nem ao amigo, nem ao inimigo” (Ibid., XIX, 8). Por isso, não sabem “pelo semblante conhecer o homem” (Ibid., XIX, 26). Nem sabem “com o coração sensato discernir pelo rosto as palavras mentirosas, como o paladar discerne o prato de caça” (Ibid., XXVI, 21).

A este propósito, cabe uma observação importantíssima. Já ouvimos em certos círculos – evidentemente aqueles em que os efeitos do pecado original são olvidados, se não em teoria ao menos na prática – que a A.C. age muito sabiamente quando confia cargos de responsabilidade e direção a pessoas ainda não muito seguras, do ponto de vista da doutrina ou da fidelidade. Com essa prova de confiança, anima-se o neófito, e apressa-se sua cabal conversão de idéias e de vida.

O mal deste, como de muitos erros que refutamos na presente obra, consiste em formular regras gerais, com base em situações possíveis, mas excepcionais. É possível, com efeito, que em certos casos concretos determinadas pessoas lucrem muito, do ponto de vista espiritual, em serem tratadas assim. No entanto, percebe-se facilmente a que evidentes abusos poderia chegar a generalização dessa regra. Uma comparação elucidará plenamente o assunto. Sabemos que é possível que um ou outro ladrão possa ser convertido a uma vida morigerada, se alguém lhe der uma prova de confiança que lhe estimule o brio abatido, e abra perspectivas de regeneração que, para ele, pareciam irremediavelmente perdidas. Desse fato, possível mas simplesmente possível, e muito raro, deduziremos que é uma regra de conduta comum das mais sábias, confiar-se a ladrões a guarda dos cofres? E se julgamos perigosa essa regra quando se trata de guardar nossos tesouros perecíveis, por que seremos menos prudentes quando se trata da custodia dos tesouros imperecíveis da Igreja?

Evidentemente, não deduzimos daí que um dirigente de A.C. não deva, sempre que tal lhe seja possível, estimular com palavras de afeto aos principiantes, e mesmo, na medida em que o permitir a prudência, dar-lhes uma ou outra pequena prova de confiança, como seja uma incumbência transitória qualquer. Mas daí, a outorga de um cargo, e sobretudo de um cargo de responsabilidade, há uma imensa distância que, por princípio, não se deve transpor, a não ser em circunstâncias especialíssimas e por isto mesmo muito raras.

O mesmo se deve dizer dos elogios públicos. Disse com muita graça um elemento da A.C. que tem a impressão de que, aos olhos de muita gente, a Igreja é uma irmã pobre de todo o mundo, que se contenta com os restos, a quinquilharia, etc., enquanto o que há de melhor fica para o uso profano de instituições meramente temporais. E, precisamente por isto, quando se aproxima de certos ambientes católicos alguma figura de certo relevo, são por vezes tantas e tais as manifestações de prazer que, antes mesmo de se ter procedido a indagações e provas que a prudência impõe, já o neófito está canonizado! E, às vezes, essa “aproximação” é puramente ilusória: um ato, uma palavra, uma meia palavra até, já é prova de uma conversão autêntica e duradoura, que merece imediatos e ardentes aplausos, e a concessão de foros de catolicidade insuspeita e total.


NOTAS

[1] Como é geralmente sabido, a Santa Sé procurou, no início deste século, empregar todos os meios suasórios, a fim de que não decaísse para o mais cru liberalismo o movimento do “Sillon”, dirigido pelo Sr. Marc Sagnier. Um dos defeitos deste movimento, mesmo antes de se desviar, consistia precisamente na preocupação de empregar só os métodos suasórios, ditos suaves, e de mover uma campanha violenta a todos os católicos dotados de feitio pessoal diverso. Ouçamos a paternal advertência que, a uma peregrinação do “Sillon”, cujos membros afetavam desânimo porque não conseguiam impor seus métodos a todos os católicos da França, dirigiu o Santo Padre Pio X:

“Não vos deixeis abater se todos os que professam os mesmos princípios católicos não se unam sempre convosco, no emprego de métodos que visam um fim comum a todos, e que todos desejam atingir. Os soldados de um poderoso exército não empregam sempre as mesmas armas e as mesmas táticas; todos devem, entretanto, estar unidos na mesma empresa, manter um espírito de cordial fraternidade e obedecer prontamente à autoridade que os dirige. Que a caridade de Cristo reine pois entre vós e os outros jovens católicos da França! São vossos irmãos; eles não estão contra vós mas convosco. Quando vossas forças se encontrarem no mesmo terreno, sustentai-vos uns aos outros e não permitais jamais que uma santa rivalidade degenere em oposição inspirada em paixões humanas, ou vistas pessoais pouco elevadas. Bastará que tenhais todos uma mesma Fé, um mesmo sentimento, uma mesma vontade, e a vitória vos será dada” (Alocução de 11 de setembro de 1904).

[2] A este respeito, leia-se a obra magnífica de Sardá y Salvani “El Liberalismo es pecado”, donde extraímos a maior parte das citações que damos a seguir. 


 

Atrás   Índice   Avante

 

Home