Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

CAPÍTULO IV

A definição de Pio XI

   

Mais um argumento em favor da essência hierárquica do apostolado da A. C.: a definição da A. C. por S.S. Pio XI

A essa altura é que podemos situar o problema da participação.

Os doutrinadores de Ação Católica que sustentam possuir esta uma situação jurídica essencialmente diversa das demais obras de apostolado fundam-se sobre um duplo argumento. Até aqui examinamos o primeiro e demonstramos que não tem valor: trata-se do mandato.

O outro argumento se funda em que o Santo Padre Pio XI definiu a Ação Católica como participação do laicato no apostolado hierárquico da Igreja. Afirmam aqueles doutrinadores que, enquanto as demais organizações são meras colaboradoras, a A. C. é participante do próprio apostolado hierárquico, pelo que tem essência jurídica própria, e diversa das outras obras.

Teses errôneas

Que alcance atribuir a esta “participação”, assim entendida? As opiniões variam. Enquanto alguns afirmam que a A. C. passou a ser elemento integrante da própria Hierarquia, entendem outros que ela exerce funções hierárquicas sem, entretanto, se situar nos graus da Hierarquia.

Como se refutam

Na análise destas doutrinas sustentaremos que:

a) - ambas têm um fundo comum falso, em conseqüência do qual são errôneas;

b) - naquilo em que uma e outra se diferenciam, também se fundam em argumentos errôneos;

c) - ainda que fossem teologicamente admissíveis as situações jurídicas por eles imaginadas, a análise dos textos de Pio XI não autoriza a afirmação de que se tenha dado à A. C. esta situação.

Os termos da questão

Ainda aqui, segundo o método que temos seguido, começaremos por dar os termos da questão.

Vimos, no capítulo anterior, que existe uma diferença essencial entre os poderes impostos pelo Divino Salvador à Hierarquia da Igreja e os encargos cometidos pela Hierarquia aos fiéis. Aqueles são direitos próprios, e de governo, estes são encargos de súditos. Nisto se funda o princípio definido pela infalível autoridade do Concilio do Vaticano (c. 10): - “A Igreja de Jesus Cristo não é uma sociedade de iguais, como se todos os fiéis tivessem entre eles os mesmos direitos; mas ela é uma sociedade desigual e isto não somente porque, entre os fiéis, uns são clérigos e outros leigos, mas ainda porque há na Igreja, por instituição divina, um poder de que uns são dotados em vista de santificar, ensinar e governar, e de que outros não são dotados”. E o Concilio acrescenta (c. 11): - “Se alguém diz que a Igreja foi divinamente instituída como uma sociedade de iguais... seja anátema”.

O erro comum às duas afirmações que refutamos

Assim, a primeira questão que devemos formular é a seguinte: pode-se admitir que a A. C. seja elemento integrante da Hierarquia da Igreja, ou que, ao menos, sem ter cargo de natureza hierárquica, esteja incumbida de funções hierárquicas?

O Santo Padre Pio XI, ao constituir a A. C., incitou todos os fiéis a que nela trabalhassem, pelo que deu a todos os fiéis o direito de nela se inscrever. A tal ponto é isto verdade, que não falta quem sustente que todos os católicos, até mesmo os que simplesmente praticam, dos mandamentos, o “minimum” necessário para não cair em pecado mortal, têm o direito e a obrigação de se inscrever na A. C.. E há ainda quem entenda que até os católicos que vivem em estado habitual de pecado mortal podem e devem inscrever-se na A. C.. É curioso acrescentar que os que assim pensam são, em geral, dos que com maior ardor pleiteiam a idéia de que a A. C. é elemento integrante da Hierarquia, ou exerce pelo menos funções de caráter hierárquico.

Isto posto, conclui-se que:

1 - se todos os católicos, até os que vivem em estado de pecado mortal, devem entrar na A. C., e esta é elemento integrante da Hierarquia, todos os fiéis têm a obrigação de se integrar na Hierarquia, o que é opinião herética e nitidamente contrária as decisões do Concilio Vaticano;

2 - se todos os católicos que vivem em estado de graça podem ou devem entrar na A. C., e se esta é elemento integrante da Hierarquia; como, por outro lado, o estado de graça é acessível a todos os fiéis, e Deus a todos chama ao estado de graça, daí se deduziria que todos eles são chamados por Deus para fazer parte da Hierarquia, o que absolutamente não se concilia com as definições do Concílio citado.

3 - se a A. C. só é para “os melhores dentre os bons”, segundo a bela expressão de Pio XI na Encíclica “Non Abbiamo Bisogno”, entretanto por mais que se apure esta noção, não se poderá pretender que o Santo Padre só quereria o ingresso na A. C. de elementos chamados a uma alta santidade, para a qual não tem vocação o comum dos fiéis. Logo, ainda no sentido de uma ação de escol, a A. C. seria acessível a pessoas de uma santidade para a qual todos os fiéis são chamados. Ora, como o Espírito Santo chama a tal santidade todos os fiéis, se a A. C. fosse elemento integrante da Hierarquia, o Espírito Santo chamaria todos os fiéis a integrar a Hierarquia, o que também contraria o texto do Concilio Vaticano.

Não faltaram escritores de alto valor que entenderam que a A. C., sem fazer parte da Hierarquia, sem possuir cargo hierárquico, possuiria entretanto funções hierárquicas.

Com efeito, as funções da Hierarquia, tanto de ordem quanto de jurisdição, podem ser, ao menos em parte, delegadas ou comunicadas, e, sem que a pessoa que as exerça por delegação ou comunicação venha a ser parte integrante da Hierarquia. Assim, a função de crismar - é o exemplo que dá um douto e ilustre escritor - é própria ao Bispo, na Hierarquia de ordem. Ora, esta função pode ser delegada a um Padre que nem por isto fica sendo Bispo ou adquire na Hierarquia de Ordem um cargo especial. Assim, as funções da Hierarquia podem ser delegadas a quem dela não faça parte.

Aceitando, para mero efeito de argumentação, esta tese, chegamos a uma curiosa série de conclusões, que nos levam a verificar a inteira oposição dela com a doutrina do Concilio do Vaticano: 1 - diz o Concílio que “há na Igreja um poder de que uns são dotados em vista de santificar, ensinar e governar, e outros não são dotados”; assim, a sociedade sobrenatural não é apenas desigual porque alguns têm poderes maiores do que os outros, mas ainda porque há elementos inteiramente sem poder, enquanto outros há, que possuem este poder. Em outros termos, há súditos e há governantes;

1 - diz o Concílio que "há na Igreja um poder de que uns são dotados em vista de santificar, ensinar e governar, e outros não são dotados"; assim, a sociedade sobrenatural não é apenas desigual porque alguns têm poderes maiores do que os outros, mas ainda porque há elementos inteiramente sem poder, enquanto outros há que possuem este poder. Em outros termos, há súditos e há governantes;

2 - ora, se a A. C. recebe funções hierárquicas, embora sem cargos hierárquicos, ela recebe um poder hierárquico, e isto tanto mais quanto este poder não lhe é confiado de modo transitório, mas a titulo definitivo já que nada indica que a A. C. seja mera instituição de emergência;

3 - logo, a fundação da A. C. teria acarretado para os leigos, ou a obrigação, ou ao menos o direito - que segundo conselho divino e eclesiástico deveriam exercer, - de se alçar ao exercício de funções hierárquicas. E isto apagaria a distinção essencial que existe entre súditos e governantes.

Mas, poder-se-á objetar, haverá sempre renitentes, que não entrarão na A. C.. Logo, haverá sempre súditos, e a desigualdade essencial da Santa Igreja não desaparecerá. O argumento não colhe. Com efeito, continuaria sempre verdade que, segundo o desejo da Igreja, todos deveriam fazer parte da A. C., e que, assim, seria desejo da Igreja que a categoria de súditos desaparecesse. Ora, a Igreja não pode desejar tal, pois que o Concilio do Vaticano declarou que é de direito divino a distinção entre súditos e governantes. Logo, sendo a Igreja infalível e não podendo entrar em contradição consigo mesma, ela não o quis.

*  *  *

Demonstrado assim que ambas as doutrinas da “participação” pressupõem a possibilidade de uma situação jurídica impossível na Santa Igreja, e que têm um fundo comum de erro, vejamos agora no que se diferenciam, por onde ainda erram.

No que erram particularmente os que sustentam que a A. C. participa da Hierarquia

Sabemos que, na Santa Igreja, as mulheres não são capazes de pertencer à Hierarquia, isto é, nem à de Ordem, nem a de Jurisdição. Ora, tanto as mulheres quanto os homens foram chamados à A. C., e nenhum tópico de documento pontifício se pode apontar, em que se especifique uma diversidade essencial de situação jurídica entre o homem e a mulher na A. C.. E, por isto, não há um só comentador de A. C. que, ao que nos conste, sustente a existência de tal diversidade essencial. Logo, a situação que o homem tem na A. C. é idêntica à que uma mulher pode receber na Santa Igreja. Logo, não é uma situação que o integre na Hierarquia, onde a mulher não pode ter acesso. Aliás, sem nenhum intuito de subestimar os inapreciáveis serviços prestados pelo que a Liturgia chama “devotus femineus sexus”, serviços estes que começaram para a Igreja com Nossa Senhora, e só acabarão com a consumação dos séculos, convém lembrar que a Santa Igreja determina que, “nas associações eretas para incremento do culto público, com o nome especial de confraternidades” (Canon 707, §1), “as mulheres só podem se inscrever para o efeito de lucrar as indulgências e graças espirituais concedidas aos associados” (Canon 709, §2).

Que diria S. Paulo, se ouvisse falar dessa idéia de uma incorporação das mulheres na Hierarquia, ele que escreveu a Timóteo (1ª 2, 11-15): “A mulher aprenda em silêncio com toda a sujeição. Não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem mas esteja em silêncio”! E que acrescentou, escrevendo aos Coríntios: “As mulheres estejam caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar, mas devem estar sujeitas, como também ordena a lei... Porque é vergonhoso para uma mulher o falar na Igreja” - I, 14, 34-35.

Isto posto, é fácil compreender como contraria o espírito da Igreja e a índole da legislação eclesiástica o exercício de um poder de natureza hierárquica por mulheres.

No que erram particularmente os que sustentam que a A. C. tem funções hierárquicas

Quanto aos que afirmam que a A. C. tem uma função hierárquica sem ter cargo hierárquico, não examinaremos se sua opinião é, ou não, compatível com o argumento precedente. Basta-nos mostrar que procedem de um ponto de partida falso, pois parecem ignorar que toda a função confiada a título permanente a alguém implica na criação de um cargo. É certo que um simples sacerdote pode, sem com isto adquirir na Hierarquia de Ordem um cargo novo, administrar o Sacramento do Crisma. Mas, quando ele exerce esta função a título definitivo e em razão de ofício, passa a ter uma situação e um cargo próprios. É este o caso dos Prelados Apostólicos e dos Vigários Apostólicos, simples sacerdotes com importantes parcelas de poderes de Bispo. Os poderes hierárquicos podem ser desmembrados. Daí a instituição de graus da Hierarquia pela Igreja, ao lado dos graus de instituição divina. Entretanto, sempre que este desmembramento é feito a título definitivo, e alguém dele beneficia permanentemente, cria-se para o encarregado desta função hierárquica um cargo que, por qualquer forma, é também ele hierárquico, embora não seja um dos graus da Hierarquia. Como não perceber as dificuldades que, à vista do que disse o Concilio do Vaticano, decorrem da idéia de que não apenas um ou outro fiel, mas toda a massa dos fiéis poderia ter acesso a tais cargos?

É certo que certas funções da Hierarquia de Jurisdição poderiam, em tese, ser franqueadas a leigos. Mas isto é coisa muito diversa de associar, ainda que potencialmente, ao exercício destas funções, a massa do laicato.

Conclusão

Assim, não existe uma “participação” da A. C., nem na Hierarquia, nem nas funções hierárquicas. E, se Pio XI usou a expressão “Participação dos leigos no apostolado hierárquico da Igreja” para definir a Ação Católica, esta definição deve ser entendida de acordo com o que já ficou dito, já que é uma regra geral que qualquer definição deve ser entendida segundo o conjunto dos princípios de quem define.

Devemos entender que Pio XI se serviu de uma expressão infeliz, passível de interpretação falsa, ao definir a A. C. como uma “participação”? Seremos forçados a atormentar o texto, a lhe retorcer a reta interpretação, afim de não estabelecer entre ele e o Concílio do Vaticano uma oposição? De modo nenhum. Afirmando que os leigos “participam na A. C. do apostolado hierárquico da Igreja”, o Santo Padre empregou uma expressão que, em sentido perfeitamente normal e exato, se prende e se coaduna com o que definiu o Concilio do Vaticano, como passamos a demonstrar.

*  *  *

Ainda que as teses anteriormente refutadas fossem admissíveis, Pio XI não deu à A. C. a participação na Hierarquia ou em funções hierárquicas

A palavra “apostolado” vem do vocábulo grego “apostélo”, que quer dizer enviar. Podemos tomá-la em dois sentidos principais.

Com efeito, como vimos, Nosso Senhor Jesus Cristo deu à Hierarquia a missão de distribuir os frutos da Redenção, e acompanhou este dom imperativo do privilégio da exclusividade, de tal sorte que esta missão só pode ser realizada pela Hierarquia ou pelos que, estranhos a ela, forem meros instrumentos dela, que realizem os planos que ela tem em mente e obedeçam às diretrizes que, neste sentido, ela dê. Nesta instrumentalidade radical e absoluta, está toda a legitimidade da colaboração prestada pelos fiéis à Hierarquia, na atividade apostólica. Se essa instrumentalidade deixasse de existir, nem a Hierarquia poderia usar tais instrumentos, nem eles legitimamente poderiam cooperar com ela.

Não vem ao caso, aqui, saber de que maneira ou por que espécie de ato voluntário a Hierarquia subordina a suas intenções o apostolado leigo. Quer por uma ordem imperativa, quer por um conselho, quer por uma permissão de agir expressa ou tácita, a vontade da Hierarquia há de se inserir no ato do leigo, se este não quiser ser radicalmente ilícito.

Análise do que seja “apostolado hierárquico”

Isto posto, vejamos em que sentido se pode tomar a expressão “apostolado hierárquico”:

1) - A missão, tarefa ou incumbência dada por Nosso Senhor a Hierarquia;

2) - Os atos de apostolado que por sua natureza são essencialmente hierárquicos e que a Hierarquia não poderia deixar de exercer, sem abdicar parcelas inalienáveis e essenciais, do seu poder.

Relação entre o apostolado hierárquico e o apostolado leigo

Examinemos o primeiro sentido. - Qual a missão que Nosso Senhor deu à Hierarquia?

Como vimos, é a distribuição dos frutos da Redenção. Nesta tarefa, há certamente funções que podem, a título meramente instrumental, ser exercidas pela massa dos fiéis, e, como vimos, toda colaboração instrumental e meramente instrumental que ela assim prestar à Hierarquia será legítima.

Legítima apenas? Não só legítima, mas desejada clara e iniludivelmente pelo Redentor. Com efeito, instituiu ele uma Hierarquia que é, evidentemente, insuficiente para realizar sua própria finalidade em toda a sua extensão, sem o concurso dos fiéis, pelo que ficou significada a evidente vontade do Salvador, de que os fiéis fossem colaboradores instrumentais da Hierarquia na realização da grande obra só a esta cometida. Em outros termos, disse-o o primeiro Papa, quando escreveu: - “Mas vós, vós sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, um povo adquirido, AFIM DE QUE ANUNCIEIS AS VIRTUDES DAQUELE QUE VOS CHAMOU DAS TREVAS À SUA ADMIRÁVEL LUZ” (1 S. Pedro, 2, 9).

A tal ponto se enquadra esta noção no pensamento do Santo Padre Pio XI, que ele não hesita em chamar Ação Católica os esforços desenvolvidos pelos leigos, neste sentido, desde os primeiros albores da vida da Igreja. Ouçamo-lo: - “A primeira difusão do Cristianismo em Roma foi feita com a Ação Católica. E poderia ela fazer-se de outra maneira? O que poderiam ter feito só os Doze, perdidos na imensidade do mundo, se não tivessem chamado em torno de si colaboradores? São Paulo termina suas Epistolas com uma ladainha de nomes entre os quais poucos Sacerdotes mas muitos leigos e mesmo mulheres: ajuda, diz ele, aquelas que comigo trabalharam no Evangelho. São Paulo parecer dizer: são os membros da Ação Católica”. (Alocução à JOC italiana, em 19 de Março de 1927).

Houve, portanto, na consecução do mesmo objetivo, duas missões, uma para a Hierarquia, e outra para os fieis, uma para governar, outra para servir e obedecer, e ambas estas missões procedem do mesmo divino Autor, devem desempenhar-se pelo trabalho e pela luta, e têm por escopo comum o mesmo fim, isto é, a dilatação e exaltação da Igreja.

Em outros termos, a missão dos fiéis consiste em exercer, na missão da Hierarquia, a parte de colaboradores instrumentais, ou seja OS FIÉIS PARTICIPAM DO APOSTOLADO HIERÁRQUICO COMO COLABORADORES INSTRUMENTAIS, já que “ter parte” é, no sentido mais próprio da palavra, participar.

Assim, tomadas as palavras “apostolado” e “participação” em seu sentido natural, sem atormentar qualquer vocábulo da definição pontifícia, sem qualquer contorção de significados, chegamos à conclusão de que, afirmando que a A. C. é uma participação no apostolado hierárquico, quis Pio XI dizer que ela é pura e simplesmente uma colaboração, obra essencialmente instrumental, cuja natureza em nada diverge, essencialmente, da tarefa apostólica exercida pelas organizações estranhas ao quadro da A. C., e que é esta uma organização súdita, como toda e qualquer organização de fiéis. Aliás, afirmou-o o próprio Pio XI, quando disse, em discurso aos Bispos e peregrinos da Jugoslávia, de 18 de Maio de 1929: - “A A. C. não é uma novidade dos tempos presentes. Os Apóstolos lançaram-lhe as bases em suas peregrinações”. Em outros termos, disse o Papa que a essência da A. C. é absolutamente a mesma que a essência da colaboração leiga desde os primitivos tempos da Igreja.

Em suma, nos planos da Providência, a missão dos fiéis participa da missão da Hierarquia como o instrumento participa da obra do artista. Entre missão e missão, entre obra e obra, a participação é absolutamente a mesma. Assim como no caso do artista, a qualidade do agente não passa intrinsecamente para o instrumento, mas se aproveita de certas qualidades inferiores do instrumento para a realização da finalidade que é própria e exclusiva do artista; assim também a natureza hierárquica da missão confiada aos Doze e a seus sucessores não passa para a colaboração instrumental dos fiéis, mas dela se serve para uma finalidade que transcende a capacidade dos fiéis e é privativa da Hierarquia. A arte é privativa do artista, e de nenhum modo pode pertencer ao pincel.

Como se vê as relações entre obra e obra, missão e missão, constituem uma participação efetiva, real, e em tudo conforme às exigências de qualquer terminologia filosófica rigorosa: participação é ter parte.

O que tudo quer dizer que a definição clássica de Pio XI se deve entender como participação dos fiéis no apostolado da Igreja, o qual é hierárquico, e não no sentido de participação dos fiéis na autoridade e funções apostólicas que, na Igreja, só a Hierarquia pode exercer.

Deu a definição de Pio XI aos leigos uma participação nos poderes hierárquicos?

Muitos tratadistas de A. C. quiseram, entretanto, aceitar como expressão exclusiva do pensamento de Pio XI o segundo dos sentidos acima mencionados. E, interpretando o termo “participação” apenas em um dos vários sentidos que a terminologia filosófica lhe dá legitimamente, daí inferiram que o laicato se integra na Hierarquia, ou, ao menos, exerce funções essencialmente hierárquicas.

Já demonstramos que esta interpretação é errônea por entrar em colisão com o Concilio do Vaticano. Mostraremos agora que ela é gratuita.

Vários sentidos de “participação”

Em lógica aprende-se que os termos podem ser unívocos, análogos ou equívocos. A única espécie de termos que comporta um só sentido é a dos unívocos. Os termos análogos são aqueles que têm, legitimamente, um sentido parcialmente idêntico e parcialmente diverso. Portanto, na melhor terminologia filosófica, os termos análogos têm, de modo absoluto e indiscutivelmente legítimo, mais de um sentido: por exemplo, o termo análogo por excelência “Ser”, que, no entanto, é a base de todo o conhecimento humano, e que é aplicado em qualquer de seus inumeráveis sentidos legitimamente.

Qual deles é o legitimo?

Qualquer calouro de filosofia possui esta noção, e não ignora que o termo “participação” é análogo, já que significa realidades proporcionalmente idênticas, mas parcialmente diversas, tais sejam, por exemplo, as seguintes modalidades de participação:

a) - participação integrante;

b) - participação potencial unívoca;

c) - participação potencial análoga.

Se admitíssemos como tendo rigor filosófico apenas as duas primeiras acepções, então quando a metafísica afirma que “o ser contingente tem o ser por participação do ser necessário”, cairíamos necessariamente no panteísmo. Portanto, todas as acepções têm valor rigorosamente filosófico.

Não é, pois, verdade que, quando se emprega um termo análogo falando linguagem filosófica, só se deve entender este termo no seu sentido mais exclusivo. Se tal tivesse sido a intenção de Pio XI, ele teria, aliás, afirmado que o apostolado da A. C. é uma participação integrante do da Hierarquia, ou, em outros termos que a A. C. é elemento integrante da Hierarquia. Como esta afirmação é herética, tal não pode ter sido sua intenção. Aliás, Pio XI excluiu diretamente essa aplicação do termo “participação” quando, na Carta Apostólica “Com particular complacência”, de 18 de Janeiro de 1939, bem como nas Enc. “Quae Nobis” e “Laetur Sane” disse que o apostolado hierárquico é de alguma maneira participado pelos leigos”. Como faz notar muito bem o insigne Monsenhor Civardi (Cf. Boletins da A. C., novembro de 1939), esta expressão mostra bem o que este emérito autor chama o “significado relativo” da palavra participação.

Diante de vários sentidos legítimos, qual, pois, escolher? Negada a preferência dos mais rigorosos sobre os menos rigorosos, temos um critério seguríssimo.

Participação e colaboração

Das várias interpretações do termo “participação”, uma há que tem precisamente o sentido de colaboração. É a “participação potencial análoga”. Com efeito, no sentido em que estamos tomando, a palavra “apostolado hierárquico” significa o que, nas funções apostólicas, é próprio da Hierarquia, como tal, fazer. Ora, o apostolado que os leigos podem fazer participa por uma semelhança material, com fundamento na realidade, do apostolado próprio à Hierarquia como tal. Entretanto, a forma específica diverge em um e outro caso, já que a ação de súditos não pode ser identificada à ação hierárquica. Neste sentido perfeitamente filosófico, a colaboração dos leigos no apostolado hierárquico da Igreja é uma verdadeira participação potencial análoga, na qual nada existe de metafórico.

A definição de Pio XI: verdadeiro sentido

Que foi este o sentido em que Pio XI tomou o termo, di-lo o próprio Pontífice com uma clareza meridiana, com uma evidência pontiaguda, definindo a A. C. ora como uma “participação”, ora como uma “colaboração” no apostolado hierárquico, e dando a entender assim, que o objeto definido era tanto uma participação quanto uma colaboração, ou seja aquela participação que equivale inteiramente a uma colaboração.

Assim, ainda que aceitássemos para a palavra “apostolado” o sentido que aqui, “argumentandi gratia”, aceitamos, a sã lógica nos levaria a entender que a “participação no apostolado hierárquico” é uma mera “colaboração”.

Com efeito, no pensamento e na pena de Pio XI, os termos “participação” e “colaboração” se equivalem. Di-lo um dos mais eruditos pesquisadores e comentadores dos textos pontifícios sobre Ação Católica. Tratando da questão, Monsenhor Guerry, em seu conhecidíssimo trabalho “L'Action Catholique” (pág. 159), acentua que o “Santo Padre emprega em suas definições as palavras colaboração e participação, às vezes na mesma frase, porém mais freqüentemente separadas e indistintamente uma pela outra”. O depoimento é precioso, pois que Mons. Guerry é, no conceito geral, como dissemos, um dos melhores conhecedores dos numerosos textos pontifícios sobre a A. C., de que fez uma compilação mundialmente difundida. Isto posto, dispensamo-nos de reproduzir aqui os múltiplos textos que fundamentam a asserção do ilustre tratadista. Escrevendo sobre A. C. seria supérfluo acentuar a autoridade de Mons. Civardi, que é mundial. O ilustre autor do “Manuale di Azione Cattolica” faz notar, no artigo citado, que em mais de um documento pontifício a palavra “participação” está substituída pela de “colaboração”.

Mas, se Pio XI não fez distinção entre ambos os termos, com que direito haveremos de estabelecer nós tal distinção, fazendo em torno de suas palavras preciosismos de argumentação, com o intuito de fixar entre elas uma diferença de significado que evidentemente não estava na mente do Papa? “Onde a lei não distingue, a ninguém é licito distinguir”. E por isto diz com toda a razão Mons. Civardi (op. cit.), a palavra colaboração nos serve para medirmos o alcance da palavra “participação” na pena de Pio XI.

Esta regra de exegese é de elementar bom senso. Quando dois termos diversos são utilizados para designar o mesmo objeto, são evidentemente empregados no mesmo sentido. É este o princípio de hermenêutica firmado por um dos mais eminentes juristas pátrios, Carlos Maximiliano, que assim o define: - “se o objeto é idêntico parece natural que as palavras, embora diversas, tenham significado semelhante” (Carlos Maximiliano, “Hermenêutica e aplicação do Direito”, 3a edição, pg. 141).

Sustentam os partidários da opinião que impugnamos, que existe uma linha divisória intransponível, entre os conceitos de participação e colaboração. Se assim é, o Santo Padre, designando com ambas as palavras um mesmo objeto, empregou uma delas em sentido elástico. Qual delas? Ele mesmo diz que a A. C. é “de certo modo uma participação”. Logo, até mesmo os partidários da opinião que impugnamos deveriam entender que Pio XI definiu a A. C. como legitima colaboração, e forçou algum tanto o sentido da palavra participação. Nós, entretanto, nem sequer concedemos que Pio XI tenha forçado o sentido da palavra “participação”.

No caso concreto, a palavra colaboração só tem um sentido, e a palavra participação, vários, um dos quais por mais lato que seja, é colaboração. Logo, é este o sentido de ambos os termos. Aliás, insistimos, Pio XI que disse que a A. C. é “de certo modo” uma participação, nunca disse que ela é “de certo modo” uma colaboração, mas sempre empregou este vocábulo sem qualquer espécie de restrição.

Esclarecimento oficioso da definição de Pio XI

Ascendendo ao Trono de São Pedro, o Santo Padre Pio XII não foi surdo ao rumor das opiniões temerárias sobre esta matéria, disseminadas um pouco por toda a parte, e, não querendo provavelmente proceder com o rigor de juiz, antes de agir com a brandura de Pai, pronunciou há mais de dois anos uma alocução publicada no “Osservatore Romano”, órgão oficioso da Santa Sé. Por mais de doze vezes, referiu-se o Santo Padre à A. C., empregando exclusivamente a palavra “colaboração” ou “cooperação”, e omitindo a palavra “participação”. Se o Papa tivesse querido evitar qualquer interpretação abusiva da palavra “participação”, não teria agido de outra maneira, e tanto basta para que se compreenda o que tem em mente o Vigário de Cristo. Não se limitou a isto o Santo Padre, e, recomendando a máxima harmonia entre a A. C e as organizações de piedade anteriormente existentes, afirmou: “A organização da Ação Católica italiana, embora seja órgão principal dos católicos militantes, não obstante, comporta a seu lado outras associações também dependentes da Autoridade Eclesiástica, das quais algumas que têm fins e formas de apostolado bem se podem dizer colaboradores no apostolado Hierárquico”. Em outros termos, é o próprio Papa quem afirma a identidade de posição de ambas, A. C. e associações auxiliares, ante a Hierarquia, como colaboradoras, e esclarece implicitamente que Pio XI, falando em “participação”, não deu a esta palavra senão o sentido de “colaboração”.

Ademais, o assunto foi expressamente ventilado em artigo publicado na Itália e transcrito no Boletim da A. C. Brasileira, por sua Eminência o Cardeal Piazza, nomeado pelo Santo Padre Pio XII Membro da Comissão Episcopal, que dirige a A. C. na Itália. Em apêndice, transcrevemos na íntegra o precioso documento. Sua autoridade por ninguém pode ser discutida.

Seria uma injúria à Santa Igreja supor que Pio XII houvesse querido desmentir ou corrigir Pio XI, tanto mais quando o próprio Pontífice reinante declarou que não queria ser senão um fiel continuador da obra de Pio XI, em matéria de A. C.. Por outro lado, seria fazer ao Cardeal Piazza grave injúria supor que, no exercício de funções da confiança do Papa, houvesse tomado uma atitude decisiva em assunto de tal monta, sem ter a precaução elementar de ouvir o Pontífice, cuja opinião lhe seria fácil consultar. Não imaginemos existir, na Santa Igreja de Deus, uma desorganização que nem mesmo nas mais modestas iniciativas particulares de comércio se suporta; nenhum gerente nega a existência de uma situação jurídica constituída pelo proprietário da casa comercial, sem previamente consultá-lo. Poder-se-á, por outro lado, imaginar que o Papa tenha nomeado, para cargo de tal magnitude, uma pessoa que de Sua Santidade discrepasse em assunto fundamental relacionado intimamente com a administração eclesiástica a ser desenvolvida?

A “participação” perante o Direito Canônico

Examinemos, finalmente, um grave embaraço levantado pelo Direito Canônico contra a opinião que impugnamos.

Caso o mandato, ou participação concedidos por Pio XI tivessem o sentido que impugnamos, implicariam na derrogação de numerosas e importantes disposições do Direito Canônico, que estabelecem (Canon 108) a impossibilidade de acesso dos leigos ao poder hierárquico, hoje em dia. Ora, quem conhece os processos de governo da Santa Igreja, o supremo cuidado com que ela legisla, a prudência consumada que costuma presidir a todas as suas deliberações, não pode imaginar que o Santo Padre Pio XI houvesse de deixar uma tão importante alteração do Direito Canônico como que jazendo, implícita, em sua definição da A. C., sem qualquer ato legislativo que explicitasse e definisse o alcance preciso da nova reforma. Sobretudo, não se pode imaginar que Pio XI destruísse a ordem de coisas até então existente, sem regulamentar, desde logo, a nova ordem de coisas, abandonando, portanto, o campo da Santa Igreja ao livre curso dos caprichos, das fantasias e das paixões individuais que, nós o veremos no próximo capítulo, assumiram terrível aspecto. Não conhece a Santa Igreja de Deus, não conhece seu espírito, sua história e seus costumes, quem assim possa pensar. O menos prudente dos chefes de Estado, o mais displicente dos governadores de província, o mais ignorante dos régulos municipais não poderia assim proceder, pois que o bom senso mais elementar lhe faria prever as conseqüências catastróficas de sua conduta. Assim também não agiu, assim também não poderia ter agido a Santa Igreja de Deus.

Conclusão

De tudo isto ressalta que, ainda que o Santo Padre tivesse querido alterar a essência jurídica do apostolado leigo na A. C., não o fez.

Advertimos o leitor de que, como ficou dito, aceitamos a afirmação de que a A. C. tenha um mandato e uma participação, mas sustentamos que estes termos em seu legitimo sentido não significam senão “colaboração” e não implicam no reconhecimento à A. C. de qualquer natureza jurídica diversa das outras obras de apostolado leigo.

Advertência

Isto posto, para maior comodidade, empregaremos muitas vezes estes termos daqui por diante no seu sentido mau, que impugnamos.  


 

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