Plinio Corrêa de Oliveira

 

Sou Católico: posso ser contra a reforma agrária?

 

Ed. Vera Cruz - Fevereiro de 1981

Secção G – Mais uma vez, o IPT transborda da esfera de ação própria do Episcopado

TEXTO DO IPT

Acumulação e degradação

48. Os que não conseguem resistir a essas diferentes pressões e agressões, não conseguem continuar como posseiros, colonos, parceiros, arrendatários, moradores; transformam-se em proletários, em trabalhadores à procura de trabalho não só no campo, mas também na cidade. É sabida a situação dos trabalhadores avulsos em amplas regiões do país, conhecidos como bóias-frias em São Paulo, Minas Gerias, Paraná, Rio de Janeiro, Goiás; ou como “clandestinos” em Pernambuco; ou “volantes” na Bahia e em outras regiões. As oportunidades de emprego para esses trabalhadores são sazonais, o que os impede de trabalhar todos os meses do ano. Para atenuar as dificuldades que enfrentam, aceitam deslocar-se para grandes distâncias, levados pelo “gato”, longe da família, sem qualquer direito trabalhista assegurado. Trabalhadores de São Paulo são encontrados, em certas épocas do ano, trabalhando no Paraná ou em Minas Gerais.

49. Mais grave ainda é a situação dos peões na Amazônia Legal. São trabalhadores sem terra, recrutados pelos “gatos” em Goiás, no Nordeste e mesmo em São Paulo e depois vendidos como uma mercadoria qualquer aos empreiteiros encarregados do desmatamento.

50. O “gato”, como é conhecido em amplas regiões, opera como um agenciador de trabalhadores. Geralmente, possui ou aluga um caminhão para transportar os peões, recrutando-os sob promessas de salários e regalias que não serão cumpridas. Como não há nenhuma fiscalização, quanto mais o trabalhador se aproxima do local de trabalho, mais longe fica de qualquer proteção ou garantia quanto aos seus direitos trabalhistas. Não é diferente a situação de muitos trabalhadores rurais nas outras regiões do país quanto a estes direitos.

51. Justifica-se a venda de peões pelas dívidas que o trabalhador é obrigado a contrair, durante a viagem, com a alimentação e o próprio transporte. A dívida é transferida do “gato” ao empreiteiro que, em nome dela, escraviza o peão enquanto dele necessitar. Os policiais, os donos de “bolichos” e os donos de pensões nos povoados sertanejos estão quase sempre envolvidos nesse tráfico humano. Quando o trabalhador tenta fugir é quase sempre castigado ou assassinado em nome do princípio de que se trata de um ladrão – está tentando fugir com o que já pertence ao empreiteiro que o comprou: a sua força de trabalho.

52. Com o programa de aproveitamento da borracha natural, o próprio Estado estimula o recrutamento de milhares de seringueiros para formar novos “soldados da borracha”, sem se preocupar em mudar as relações patrão-trabalhador.

53. Houve sem dúvida, iniciativas por parte de responsáveis pela política de desenvolvimento agrícola, especialmente, em algumas regiões do país. Mas, por não terem abrangido o conjunto das situações dos trabalhadores rurais e por terem alcançado uma proporção relativamente pequena de interessados, esses programas não têm efetivamente respondido às necessidades dos homens do campo. De qualquer modo, a estrutura fundiária e seus aspectos sociais é fundamental [sic]e condicionam [sic] o sucesso de qualquer política de desenvolvimento econômico e social.

54. Direitos conquistados penosa e legitimamente ao longo da nossa história, consubstanciados em muitas de nossas leis – como é o caso das garantias fundamentais da pessoa, a igualdade jurídica dos cidadãos, a previdência social, as garantias trabalhistas e a própria legislação fundiária – têm sido precariamente observados, sobretudo em relação aos bóias-frias, aos posseiros, arrendatários, parceiros, peões, seringueiros, pescadores, garimpeiros, carvoeiros.

55. Merece menção especial os povos indígenas, dizimados através dos séculos e espoliados em seus legítimos direitos e agora novamente ameaçados quando, sob a alegação de exigências da Segurança Nacional, se pretende reservar uma faixa de 150 quilômetros ao longo da fronteira oeste, o que significaria a destruição do habitat das nações indígenas ali residentes.

 

COMENTÁRIO

Várias das situações descritas nesta secção do IPT (tópicos 48 a 55) parecem corresponder à realidade dos fatos, e merecem enérgica reprovação dos católicos. Mas, o mais das vezes, até mesmo tais situações não são tão evidentes que, em um trabalho sério, dispensem provas. E, uma vez provadas, deveriam ser apresentadas com seus reais matizes. Tornar-se-ia então patente que essas situações comportam soluções outras que não a Reforma Agrária, para a qual o IPT, com inflexível unilateralidade, encaminha entretanto o leitor [1].

* * *

É muito especialmente de notar que, versando o IPT sobre problemas da terra, ele lança nestas duas últimas secções analisadas, uma crítica global de todo o processo de desenvolvimento sócio-econômico brasileiro. E deixa clara sua convicção de que é indispensável sujeitar esse processo a uma completa reforma, segundo metas e métodos próprios da CNBB. O que, mais uma vez, importa em ir muito além das atribuições específicas do Episcopado. O IPT pretere assim as sábias diretrizes dadas por João Paulo II em Puebla, no sentido de que os eclesiásticos atendam principalmente ao aspecto religioso de sua missão, e se abstenham de assumir a condução genérica dos acontecimentos temporais [2].

A tônica do IPT é incontestavelmente demolidora. Ele quer reformar todo o nosso processo sócio-econômico. De que maneira? Para obter concretamente o que? O IPT se exime de o dizer com o necessário pormenor. Parece que destruir lhe importa muito mais do que construir.

O IPT apresenta até sua Reforma Agrária como um passo para entrar na via dessa reforma sócio-econômica global do País, reivindicada pela CNBB. Com efeito, depois de haver procedido à crítica geral da economia brasileira (e no momento preciso em que o leitor se pergunta, com mais desconcerto, a que vem tudo isso num texto destinado a tratar especificamente do problema da terra), o IPT esclarece que a CNBB, ao pleitear a reforma fundiária, tem em vista amoldar nossa estrutura imobiliária no sentido dessa reforma global de toda a nossa economia: “De qualquer modo, a estrutura fundiária e seus aspectos sociais é fundamental [sic] e condicionam [sic] o sucesso de qualquer política de desenvolvimento econômico e social” (no. 53) [3].

* * *

Não seria possível encerrar estas considerações sem registrar um aspecto frisante, comum às três secções do IPT que acabam de ser analisadas (tópicos 32 a 55).

Nelas, a descrição de nossa situação sócio-econômica enxameia de aspectos negativos. Dir-se-ia que estes lotam, aos olhos da CNBB, todo o quadro de nosso País, ou quase tanto. E que, em conseqüência, todo o processo de desenvolvimento sócio-econômico nenhum benefício trouxe para o Brasil.

Entretanto, a descrição dos aspectos positivos falta.

Como explicar o contraste entre tanta facúndia na crítica demolidora, e tão enigmático silêncio no tocante ao plano das realidades positivas?



[1] Viria a propósito analisar aqui a introdução do regime dos “bóias-frias” na vida rural brasileira. O leitor encontrará considerações sobre a extensão, causas e situação dos “bóias-frias” no Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas Cap. I, 5.

[2] Disse JOÃO PAULO II: “Percebe-se, às vezes, certo mal-estar relacionado com a própria interpretação da natureza e da missão da Igreja. Alude-se, por exemplo, à separação que alguns estabelecem entre Igreja e Reino de Deus. Este, esvaziado de seu conteúdo total, é entendido em sentido mais bem secularista: não se chegaria ao Reino pela Fé e pela pertencença à Igreja, mas pela simples mudança estrutural e pelo compromisso sócio-político. Onde há um certo tipo de compromisso e de praxis pela justiça, ali estaria já presente o Reino. Esquece-se, deste modo, que a Igreja ... recebe a missão de anunciar o Reino de Cristo e de Deus, e instaurá-lo em todos os povos, e constitui na terra o germe e o princípio desse Reino” (Lumen Gentium, no. 5)” . (Insegnamenti di Giovanni Paolo II, Libreria Editrice Vaticana, vol. II, 1979, p. 197).

[3] O erro de concordância salta aos olhos, e foi notado por mais de um órgão de imprensa. Lapso de redação? Falha na revisão? Erro de composição?

Em rigor, num comentário como o presente, que analisa o IPT tópico por tópico, caberia dar uma resposta a estas perguntas. Mas como são alheias ao ângulo de análise específico do presente trabalho, pareceu mais conciso – e mais simpático – deixar à margem o assunto.

 


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