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Plinio Corrêa de Oliveira
Sou Católico: posso ser contra a reforma agrária?
Ed. Vera Cruz - Fevereiro de 1981 |
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Secção E
– Dramatização do problema fundiário para justificar a Reforma Agrária
socialista, confiscatória e igualitária
TEXTO DO IPT
Migrações e violência no campo 25 . Há no país, milhões de migrantes,
muitos dos quais obrigados a sair do seu lugar de origem, ao longo dos
anos, devido principalmente à concentração da propriedade da terra, à
extensão das pastagens e à transformação nas relações de trabalho na
lavoura. Sem contar os milhares de migrantes que, como extensão
da migração interna, têm se dirigido aos países vizinhos. COMENTÁRIO Sob vários pontos de vista, a secção que se
inicia com o presente tópico constitui o ponto nevrálgico de todo o
documento. Pois pinta o quadro do problema fundiário rural no Brasil, em
função do qual o IPT delineará e proporá a Reforma Agrária. De tal maneira enxameiam nos tópicos 25 a 31
imprecisões a assinalar e objeções a fazer, que os comentários forçosamente
se multiplicaram. Eles deixarão claro o balofo do texto, inflado e
dramatizado de maneira a impressionar o leitor ingênuo... sem contudo
nada dizer de preciso e de verdadeiramente concludente. * * * “Milhões ...” – Quantos milhões?
Dois? Dez? Cinqüenta? A imprecisão desconcerta, tanto mais quanto, no tópico
14, eram apenas “milhares”. Dir-se-ia que, na estranha matemática
do IPT, três zeros não fazem diferença.... * * * “... de migrantes”. – Qual o conceito
exato de “migrantes” na terminologia do IPT? Inclui todos os
brasileiros de pequena, média e grande burguesia que se deslocam da sua
cidade natal, a bem de suas atividades empresariais ou intelectuais?
Inclui também os trabalhadores manuais que vivem em condições normais e
se movem em direção ao hinterland inabitado e inculto, para as
selvas, “povoando”, segundo o preceito do Gênesis (1, 28) a
terra brasileira? Neste caso, ser migrante não é cumprir o mandamento
divino? Ademais, o grande número de migrantes para o campo deve ser visto
como a marcha miserável da pobreza, ou como a caminhada, árdua mas meritória,
de um povo que realiza seu destino providencial ocupando e transformando
em fonte de riqueza o território-continente que Deus e a História lhe
puseram nas mãos? [1]. * * * “... muitos dos quais”. –
Precisamente quantos? Ou que porcentagem? Pergunta-chave para obter uma
resposta que permita aquilatar até que ponto a migração resulta de miséria
e coação. Não há no IPT elementos que permitam responder a essa
pergunta. * * * “... obrigados a sair do seu lugar de origem”.
– Quais as formas de coação empregadas? Em que proporção é
empregada cada uma? Essa coação se exerce por igual em todas as regiões
do território brasileiro? Ou existe só em algumas, e não em outras? Em
que regiões existe? Desde quando? Com que índice de freqüência? Sem
resposta a essas perguntas, como avaliar exatamente a gravidade do mal
apontado pelo IPT, bem como a natureza e a amplitude das providências
aptas a resolvê-lo? * * * “... ao longo dos anos”. –
Normalmente se sai do lugar de origem uma vez só. O que significam aqui
estas palavras? Ao longo de toda a existência terrena dos migrantes vão
eles perambulando sem jamais se fixarem? Ou seria que, ao longo dos anos,
novas levas de migrantes vão deixando seus lugares de origem? Neste caso,
por efeito de coação, ou de expansão demográfica? Seria necessário
que o IPT esclarecesse tudo isto. Ele, porém, se cinge a generalidades
enunciadas de modo sumário e afogueado. * * * “... devido principalmente”. – O
texto se propõe, portanto, mencionar os principais fatores de
migração. Há fatores secundários? Todos estes reunidos, que
importância têm em comparação com os fatores “principais”? Por sua
vez, cada um dos fatores principais, que quota de importância tem na
produção do fenômeno migratório? Desde quando cada um desses fatores
atua no sentido apontado? Mais uma vez, silêncio do IPT. * * * “devido... à concentração da propriedade
da terra”. – De que maneira, ou maneiras, essa concentração
“obriga” à migração? Ainda cabe aqui a pergunta. * * * “... à extensão das pastagens”. – O
IPT se refere ao fato como se fosse substancialmente negativo e injusto. Já
se viu o arbitrário desse posicionamento (cfr. Comentário ao no. 15). * * * “... e à transformação das relações de
trabalho na lavoura”. – Que transformações? Com que efeitos
concretos? Com que índice de freqüência? Em que regiões do País? Silêncio... * * * “Milhares de migrantes... têm se dirigido
aos países vizinhos”. – Quantos milhares? Esse êxodo de braços
para o Exterior constitui necessariamente uma catástrofe? Ou é um fenômeno
normal, decorrente do preceito “enchei toda a terra” (Gen. 1,
28)? * * * Cabe aqui lembrar alguns aspectos do problema
fundiário no Brasil: eles mostram, já à primeira vista, e em princípio,
que esse problema não pode nem deve ser resolvido pela partilha compulsória
da grande e da média propriedade, como pretende o IPT (cfr. Comentário
ao no. 89). Nosso País, de 8,5 milhões de quilômetros
quadrados (dos quais cerca de 5 milhões, incultos e aproveitáveis,
pertencem ao Poder público), conta com uma população de cerca de 120
milhões de habitantes. O problema fundiário assume, portanto, no Brasil,
características muito diversas das que ocorrem em países densamente
povoados, como os da Europa, por exemplo. Há décadas cessaram no Brasil os grandes fluxos
migratórios. A ocupação das imensas extensões desocupadas e incultas
se vem fazendo desde então pela expansão demográfica da própria população.
Tomando em consideração que a quase totalidade do território nacional
é aproveitável para a agricultura ou a pecuária, os trabalhadores
rurais têm diante de si possibilidades de progresso quase ilimitadas. Cumprindo o preceito do Gênesis, “povoai
toda a terra”, o Brasil é pois, e caracteristicamente, um país de
migração. Como ocorre em todos os lugares desde o começo do mundo, essa
migração é por vezes forçada pela saturação demográfica de certas
regiões. Outras vezes ela resulta de que, mesmo em zonas não densamente
povoadas, pessoas mais empreendedoras preferem deixar seu habitat normal,
com as possibilidades pequenas ou médias que este oferece, e lançar-se
à aventura árdua, mas tantas vezes lucrativa, do desbravamento de
grandes glebas desocupadas. A partir de 1930, o fenômeno migratório interno
se acentuou ainda mais em razão da industrialização do País. A política
aduaneira forçou a alta dos preços dos produtos importados, e favoreceu
o surto da indústria nacional. Este último se incrementou ainda mais com
a II Guerra Mundial. Tudo isto conduziu ao crescimento vertiginoso dos
grandes centros urbanos. A indústria apelou então para os braços dos
trabalhadores rurais, que atraía por meio de salários muito maiores que
os pagos pelos proprietários rurais. Daí nascer no País outra corrente
migratória, dirigida não mais para o hinterland, mas já agora
aos grandes centros. A miragem da vida fascinante e trepidante da
grande cidade reforçou a migração desejada pela indústria. Tal é a pujança do País que, em certo modo,
ambos esses surtos migratórios se desenvolveram pari passu. E a
classe rural não cessou de desbravar e de se expandir, ao mesmo tempo que
várias cidades grandes ganhavam proporções de vertiginosas babéis, e
cidades apenas médias se transformavam em grandes. Nessa perspectiva, as migrações internas no
Brasil, se vistas globalmente, e sem considerar situações peculiares
(naturalmente surgidas dos fatos, ou criadas por interferências
infelizes) em uma ou outra região do imenso País [2],
não apresentam o caráter dilacerante verificado quiçá em outros
lugares. Em geral, o migrante não tem a psicologia de quem foge
revoltado, sob a ameaça de uma pobreza crescente, mas de quem busca,
esperançosa e empreendedoramente, em outras regiões da própria pátria,
oportunidades melhores [3].
Contra esta assertiva não serve de argumento o fato de que toda migração
traz consigo separações, tristezas, fadigas, riscos e danos. Este é o
lado penoso do cumprimento do preceito “ocupai toda a terra”.
Qual, aliás, a atividade humana que não está exposta a essas
vicissitudes? O fundo de quadro insinuado pelo IPT é bem outro.
Nos “milhões de migrantes muitos dos quais obrigados a sair do seu
lugar de origem”, ele só vê infelizes que saem escorraçados por
vizinhos vorazes e onipotentes, quando a realidade é, o mais das vezes,
bem diversa. A divisão dos patrimônios em virtude da igual partilha das
heranças entre os filhos do proprietário (Código Civil, art. 1604),
pode reduzir certas propriedades agrícolas ao simples módulo rural em
vigor na região. De modo que, conforme o caso, os respectivos donos
preferem colocar seu trabalho em mercados mais rendosos. E conservam
inculta a pequena propriedade herdada, tão-só como garantia de sobrevivência
para o caso de um insucesso. Nada disso o IPT menciona. Pois, como se vê, e
mais adiante melhor se verá, ele seleciona na realidade global apenas uns
tantos dados, e os despe das circunstâncias que constituem seu contexto
natural e explicativo. Isto feito, o documento focaliza tais fatos de
maneira que se configura uma situação irreal, toda ela preparada para
a luta de classes. TEXTO DO IPT
26 . Uma grande parte dos lavradores migrou
para as grandes cidades à procura de uma oportunidade de trabalho, indo
engrossar a massa marginalizada que vive em condições subumanas nas
favelas, invasões e alagados, em loteamentos clandestinos, cortiços
e nas senzalas modernas dos canteiros de obras da construção civil. O
desenraizamento do povo gera insegurança pelo rompimento dos vínculos
sociais e perda dos pontos de referência culturais, sociais e religiosos,
levando à dispersão e à perda de identidade. COMENTÁRIO “Uma grande parte dos lavradores migrou para
as grandes cidades...” – Quantos? Em que porcentagem? Desde
quando? A migração para a grande cidade não tem sido condição
essencial para a industrialização do País? Por que o IPT a considera,
então, um fato inteiramente negativo e dramático? É certo que a formação
das megalópolis industriais tem sido nociva para os migrantes vindos do
campo, como aliás para todas as classes da população. Mas essa
nocividade decorre muito mais da concentração exagerada das industrias
em grandes cidades, do que da migração propriamente dita. Pois as
industrias poderiam ter-se estabelecido, em boa parte, em cidades médias.
Mas este já é um problema autônomo, e inteiramente distinto dos
problemas fundiários do campo. Ademais, o IPT parece supor que a principal causa
das exageradas concentrações urbanas seja econômica. Ora, no mesmo
sentido atuam fatores psicológicos de força impressionante, que a
supressão das grandes propriedades em nada diminuirá. O rádio e a
televisão, que chegam hoje aos últimos rincões do País, deslumbram o
trabalhador rural (como, aliás, também o proprietário) com a miragem
fascinante da vida das grandes cidades. Em contraste com esta, a vida do
campo a muitos parece rotineira, monótona, quase se diria subumana. Daí,
em grande parte, o êxodo. Tudo isso, o IPT parece ignorá-lo. Simplista
nas suas visões fundamentalmente dirigista em seus métodos, o IPT
vê o problema a seu modo, e em conseqüência advoga para ele uma solução,
abstendo-se de aduzir provas de que esse problema é exatamente como ele o
apresenta [4]. Uma das soluções, talvez a mais óbvia e a mais
autêntica, seria o encaminhamento dos braços rurais excedentes para as
imensidades inexploradas do território nacional. Porém, propenso a não
ver em toda a realidade atual senão problemas que se amontoam sobre
problemas, o IPT discorre sobre a ocupação das imensidões disponíveis
do território nacional para enumerar não as vantagens daí decorrentes,
mas tão-só os problemas que o povoamento dessas vastidões acarreta
(cfr. IPT no. 27). Como se algo houvesse de sério e grande neste mundo
que não acarretasse duros e graves problemas. * * * “... indo engrossar a massa marginalizada”.
– Em que proporção os migrantes para as grandes cidades se incorporam
aos marginalizados nestas existentes? Em que proporção – por sua vez
– tais marginalizados permanecem estagnados em sua miséria, ou pelo
trabalho próprio se elevam, no plano sócio-econômico? Em outros termos, a estadia dessas massas
migrantes nas favelas é sempre definitiva, ou constitui em muitos casos
mero estágio de abordagem da grande cidade? As favelas habitualmente são
fixas. Ao correr dos anos elas lá estão. Mas em que medida são fixas as
populações que nelas habitam? [5]. * * * “... que vive em condições subumanas nas
favelas”. – Nas favelas e locais congêneres tudo é miséria? Ou
há afloramentos de largueza e até de conforto em vários locais destes?
O que significa precisamente a fixação em uma favela, como índice de
miséria? * * * “O desenraizamento do povo gera insegurança”
etc. – Por certo, a migração mal feita pode gerar essas conseqüências.
Contudo, estas não são frutos necessários dela. Por exemplo, o “desenraizamento”
de um homem ou de uma família, como de uma planta, tanto pode acarretar
sua destruição quanto sua frutificação mais abundante, decorrente da
implantação em solo mais propício. Em que proporções se dá uma e
outra coisa no fenômeno migratório? O remédio para esses males consiste
em entupir o escoamento demográfico das zonas hiper-povoadas, ou em
organizar bem esses escoamentos? Quanto poderiam fazer, neste sentido,
certos eclesiásticos que empregam o melhor de seu tempo em provocar a
luta de classes? TEXTO DO IPT
27 . Outra parte se dirige às regiões agrícolas
pioneiras à procura de terras. Entretanto, com freqüência, sua
tentativa de fixar-se à terra choca-se contra uma série de barreiras:
dificuldade para obter o título definitivo da terra, no caso de compra; a
falta de apoio ou o próprio fracasso das companhias colonizadoras;
nova expulsão da terra, ante a chegada de novos grileiros
ou de reais ou pretensos proprietários. COMENTÁRIO “Com freqüência, sua tentativa de fixar-se
à terra choca-se contra uma série de barreiras”. – Com que freqüência?
No conjunto do movimento migratório brasileiro, qual a quota dos efeitos
danosos decorrentes dos obstáculos aqui apontados? Ademais, cumpre ponderar que, ordinariamente, vários
desses efeitos, quando existem, resultam da incompetência, da corrupção
ou do burocratismo. A cessação desses efeitos deve ser alcançada
normalmente pela eliminação dos agentes que os causam. É admissível
que a mera partilha das terras trará como conseqüência a supressão da
incompetência, da corrupção e da burocracia? Parece, pelo contrário,
que, incumbindo-se o Estado – burocrático por essência – de
remodelar toda a estrutura agrária do País, tais efeitos possam
encontrar campo imensamente mais livre para sua ação daninha. * * * “O próprio fracasso das companhias
colonizadoras” só pode ser remediado pela reforma fundiária? E por
que não por uma bem orientada política de fiscalização e incentivo a
essas companhias? * * * A “expulsão da terra” ante a chegada
dos proprietários que reivindicam seus direitos só pode ser remediada
pela medida violenta da extinção dos direitos desses mesmos proprietários? Por que o IPT não pede que o Poder público
encaminhe as correntes migratórias para as imensas extensões incultas de
que ele é senhor? Contra “a chegada de novos grileiros”,
o remédio normal é a proteção policial, e não a divisão de terras. * * * Como se vê, o IPT se limita a constatar que uma
parte dos lavradores “se dirige às regiões agrícolas pioneiras”,
e a lamentar, logo em seguida, as “barreiras” que se lhe opõem.
Na realidade, a mera constatação importa numa subestima do fato. A ocupação
do solo não desbravado tem uma importância capital para o País. É isto
de toda a evidência. E se provas fossem necessárias, bastaria alegar que
o inaproveitamento de extensa área de nosso território preocupa tanto a
certas altas esferas, que se chegou a levantar o projeto surpreendente da
imigração de dez milhões de estrangeiros para ocupá-las. Nessas condições,
e prioritariamente a tudo, deve ser apoiada toda tendência, todo impulso
e todo esforço para que o Brasil seja ocupado inteiramente... por
brasileiros! O IPT deveria assim manifestar sua admiração
pelo espírito de sacrifício e pela coragem dos modernos desbravadores de
nosso sertão, e incitar a que os imitassem tantos outros que parecem
preferir a estagnação na pobreza, no anonimato e na rotina das grandes
cidades. Pois espírito de sacrifício e coragem são virtudes
eminentemente cristãs, e despertá-las na consciência religiosa de nossa
gente é incrementar a vida espiritual do País e assim tonificar sua vida
temporal [6]. TEXTO DO IPT
28 . Em quase todas as unidades da Federação,
sob formas distintas surgem conflitos entre, de um lado, grandes
empresas nacionais e multinacionais, grileiros e fazendeiros e, de outro,
posseiros e índios. Violências de toda a ordem se cometem contra
esses últimos para expulsá-los da terra. Nessas violências,
já se comprovou amplamente, estão envolvidos desde jagunços e
pistoleiros profissionais até forças policiais, oficias de justiça e
até juizes. Não raro observa-se a anomalia gravíssima da composição
de forças de jagunços e policiais para executar sentenças de despejo. COMENTÁRIO “... surgem conflitos”. – O IPT dá a
impressão de que tais conflitos brotam espontaneamente em virtude da
inconformidade dos titulares de direitos lesados. Não seria difícil
provar que a índole tranqüila dos brasileiros é bem diversa do que
poderiam imaginar leitores estranhos a nosso País. A tal ponto que a
grande dificuldade encontrada pela “esquerda católica”, em seu afã
de promover tensões sociais, consiste precisamente em levar esse povo bom
e simples à convicção de que padece injustiças. Sem negar que se possa
encontrar alguma base para semelhante afirmação, a injustiça não é
uma nota preponderante e uniforme em todo o País e sua gravidade varia
segundo as épocas e as regiões. Na terminologia da “esquerda católica”, esse
esforço de sensibilização para misérias reais ou fictícias se chama
“conscientização”. A “conscientização” é a primeira etapa do
processo de descontentamento, de agitações e de reivindicações sociais
promovido pelos organismos da “esquerda católica”. O que, tudo, leva
a reconhecer o caráter artificial e induzido da totalidade ou da maior
parte dessas “tensões sociais”. Ninguém reage contra o mal do qual não tem
consciência. Seria o caso de perguntar aqui até que ponto a
“conscientização” da “esquerda católica”, e os pronunciamentos
torrenciais de membros do Episcopado, de personalidades e instituições
católicas, a favor da Reforma Agrária, contribuem para despertar esses
conflitos, em que proporções os agravam etc. Em Apêndice a este volume, o leitor encontrará a
relação – tão completa quanto possível – dos pronunciamentos em
favor da Reforma Agrária emanados de fontes episcopais. Tais
pronunciamentos procedem de vários pontos do território nacional. O número
destes – 190 – bem prova a objetividade do adjetivo “torrencial” há
pouco usado. * * * “Violências de toda ordem se cometem...”
– Não basta aqui a mera alusão à diversidade dos modos de ser dessas
violências, pois em princípio a violência é um crime, e, hoje mais do
que nunca, crimes “de toda ordem se cometem” em todos os países.
É indispensável conhecer também o número bem como a curva de ascensão
dessas violências. E a esse respeito, ainda, o IPT não dá informações. * * * “... contra esses últimos [posseiros e
índios]”. – Há atos de violência contra os proprietários, da parte
dos posseiros e índios? Unilateral como de costume, o IPT não parece
interessar-se por mostrar ou detalhar isso. * * * “Nessas violências ...” – Ou seja,
em todas elas (pelo menos se consideradas em seu conjunto), segundo o IPT,
se acumpliciam “até forças policiais, oficiais de justiça e até
juizes”. A afirmação é tão exagerada, que não merece análise.
Convém apenas sublinhar que a repetição, gramaticalmente incorreta, da
palavra “até” exprime, de modo significativo, a sobrecarga da
ênfase reivindicatória que lateja no IPT. * * * A afirmação do IPT dá entretanto margem a
comentário de outra índole. As nações desejosas de ordem e
estabilidade se mostram ciosas, a justo título, de cercar com uma
atmosfera de respeito, em algum sentido quase religioso, o Poder Judiciário.
Pois quando este é vilipendiado e envolvido nas polêmicas da vida
corrente, decai o respeito que lhes devem ter os povos. E o sentimento da
estabilidade se degrada, e por fim desaparece. Assim, só em virtude de causas transcendentais e
com base em provas evidentes, é dado a um indivíduo ou grupo social
investir contra esse poder. Os brasileiros cônscios dessa verdade elementar não
podem deixar de sentir desconcerto e apreensão ao ver que um documento
como o IPT (ou melhor, um organismo como a CNBB) investe aqui contra o
Poder Judiciário, alvejando-o sem qualquer espécie de prova. Desta maneira, o IPT, queira ou não queira,
transborda mais uma vez da esfera espiritual para a temporal. E parece
deixar entrever o intuito de prover o País com uma Reforma Judiciária
que se some à Reforma Agrária e à Reforma Urbana. Reforma Judiciária de que índole? A caminhar até
os confins do horizonte, o olhar discerniria os clássicos tribunais
populares eleitos pela vasa da população agitada, para administrar, não
a Justiça, mas a “justiça” revolucionária. É preferível, entretanto, não olhar tão
longe... * * * “Não raro observa-se a anomalia gravíssima
da composição de forças de jagunços e policiais para executar sentenças
de despejo”. – A referência não poderia ser mais vaga, se bem
que, especialmente no tocante a uma “anomalia gravíssima”, um
documento que se respeite a si próprio deva ser esmeradamente preciso. TEXTO DO IPT
29 . A situação tem-se agravado muito depressa. Tomando
como referência a região de Conceição do Araguaia, no sul do Pará,
podemos ter uma idéia da velocidade e amplitude da situação de
conflito. No começo de 1979, havia 43 conflitos identificados e
cadastrados. Seis meses depois, os conflitos já eram 55. No final do ano
já eram mais de 80. No Estado do Maranhão, tradicionalmente
conhecido como o Estado das terras livres, abertas à entrada de
lavradores pobres, foram arrolados, em 1979, 128 conflitos, algumas vezes
envolvendo centenas de famílias. Em três casos, pelo menos, o número
de famílias envolvidas ultrapassa o milhar, sendo grande a
concentração da violência nos vales do Mearim e do Pindaré. COMENTÁRIO “Tomando como referência a região de Conceição
do Araguaia, no sul do Pará”. – Esta “referência”
deixa entender que a alusão à situação existente nessa região é
suficiente para provar que idêntica situação existe em todo o País.
Ora, Conceição do Araguaia se encontra no sul do Estado do Pará, o qual
por sua vez, se acha no Extremo-Norte do país... numa região equatorial,
úmida e quentíssima (Bacia Amazônica). Admitindo-se, argumentandi
gratia, a objetividade do fato, ele seria radicalmente insuficiente
para justificar a Reforma Agrária em todo um país de 8,5 milhões de
quilômetros quadrados. * * * “No começo de 1979, havia 43 conflitos
identificados e cadastrados. Seis meses depois, os conflitos já eram 55.
No final do ano já eram mais de 80”. – Finalmente, dados
concretos! Tirados de que fonte, o IPT não o diz. Até que ponto
esclarecem eles a situação? Para essa galopada ascensional dos conflitos
concorreu exclusivamente o agravamento espontâneo da situação? É
impossível não duvidar disto, tomando-se em conta que a antiga Prelazia
de Conceição do Araguaia (hoje Diocese) é notoriamente uma daquelas em
que a Autoridade eclesiástica mais atuou na promoção do
descontentamento rural. * * * “No Estado do Maranhão...” – Já
quanto ao Estado do Maranhão, a pobreza dos dados volta a acentuar-se. A
referência a “centenas” e até a um “milhar” de famílias
envolvidas em conflitos pode impressionar a quem não conheça o Brasil.
Por vezes, grandes áreas de terra permanecem incultas ou semi-incultas, e
nelas se vão instalando posseiros, à revelia de proprietários,
desatentos ou mesmo desleixados. Se ao cabo de dez ou quinze anos o
proprietário ou seus herdeiros resolvem recorrer a meios legais ou
ilegais para expulsar esses posseiros ou seus descendentes, com o intuito
de cultivar as próprias terras, não é tão difícil que, de um e de
outro lado da pendência, estejam envolvidas “centenas de famílias”.
No último limite do possível, até um milhar delas. Pelo menos se por
“família” se entende o conjunto formado por pai, mãe e filhos
(pormenor este, capital, a cujo respeito o IPT também é omisso). * * * Ainda como ponto de “referência”, o
IPT menciona de modo especial os “vales do Mearim e do Pindaré”,
acerca dos quais afirma que é “grande a concentração da violência”.
“Grande”: não se poderia ser mais vago, particularmente em se
tratando de pontos de “referência”. TEXTO DO IPT
30 . Estudos recentes mostraram que a cada
três dias, em média, os grandes jornais do sudeste publicam uma
notícia de conflito de terra. Comprova-se que essas notícias
correspondem a menos de 10% dos conflitos cadastrados pelo movimento
sindical dos trabalhadores na agricultura. Um levantamento do número de vítimas
que sofreram violências físicas, feito através de jornais, indica
que mais de 50% delas morrem nesses confrontos. COMENTÁRIO “Estudos recentes...” – De quem?
Publicados onde? * * * “Os grandes jornais do sudeste publicam
...” – O que prova isso, quando é notório que a maior parte
desses jornais têm, infiltrados nos respectivos corpos redatoriais,
numerosos esquerdistas e comunistas que dão vazão a todo noticiário próprio
a apresentar como instável a ordem sócio-econômica vigente no País? [7]
E em que medida cada conflito é noticiado em vários lances por um mesmo
jornal? Ou então é publicado um lance de um deles em vários jornais?
Tudo isso deixado no escuro, o que prova essa referência ao noticiário
dos “grandes jornais do sudeste” quanto ao número absoluto dos
conflitos? A referência especial a “jornais do sudeste”
ainda dá motivo a outra consideração. Os conflitos assim noticiados
ocorrem na sua maior parte no mesmo Sudeste? Ou no Sul? Ou no Centro? Ou
no Nordeste? Ou, por fim, no Norte? Por que o IPT não foi procurar
o noticiário dos conflitos nas próprias zonas em que eles ocorrem? * * * “ ... comprova-se”. – Quem comprova?
Onde estão publicados esses “cadastros de conflitos”? Qual é esse
“movimento sindical dos trabalhadores na agricultura”? Por que
motivo o IPT não cita outras fontes, por exemplo estatísticas policiais?
Parece que ele considera o “movimento sindical dos trabalhadores na
agricultura” como insuspeito, e a Polícia como suspeita. Ainda uma
vez, a unilateralidade característica do IPT. * * * “Um levantamento do número de vítimas ... ,
feito através de jornais, indica que mais de 50% delas morrem ...”
– É lamentável que a CNBB omita de informar o leitor que critério
seguiu para apoiar essa dolorosa porcentagem. a)
“dos jornais”: quais? Só os jornais geralmente tidos por sérios?
Ou também a imprensa subversiva e sensacionalista? b)
por que a CNBB se limitou aos “jornais”? Por que não recorreu às
fontes oficiais, como cartórios, registros de óbitos etc.? Poder-se-ia responder que parte desses óbitos
presumivelmente não chega a ser registrada. Mas, de outro lado,
poder-se-ia objetar que a parcialidade do noticiário de nossa imprensa, tão
freqüentemente infiltrada, também é discutível. A estatística não
oferece pois qualquer segurança. TEXTO DO IPT
31 . Isso mostra a extrema violência da luta
pela terra em nosso país, com características de uma guerra de extermínio,
em que as baixas mais pesadas estão do lado dos lavradores pobres.
Esse processo se acentua na chamada Amazônia Legal, embora ocorra
também em outras regiões. COMENTÁRIO Ao fim de tanta imprecisão, o IPT exclama, com
afogueada e desconcertante ingenuidade: “Isso mostra a extrema violência
da luta pela terra em nosso país”. E acrescenta dramaticamente: “
... com características de uma guerra de extermínio”. Pelo contrário,
“nisso” nada foi “mostrado” com o rigor científico que a
gravidade das acusações lançadas e da reforma proposta exigem
absolutamente. O IPT pode dar a um leitor inadvertido a impressão
de que os conflitos assumem as proporções de uma “guerra de extermínio”.
Mas a linguagem empregada neste tópico é agilmente vaga, pois se refere
a “características” sem especificar se alude a algumas, a
muitas ou a todas as características. E assim nossa certeza não tem como
ir além da triste banalidade quotidiana. Por exemplo, mata-se no Brasil
de hoje por questões de terra. E onde uma luta ocasiona morte, pode-se
dizer que ali está presente uma característica de ... “guerra de
extermínio”! Aliás, no Brasil como em toda a América, de
velha data se matou por questões de terra. Outrora houve lutas de morte
de proprietários entre si, por questões de limites de terras. Hoje, são
mais numerosas as lutas entre proprietários e posseiros. Tudo isto é
certamente lamentável. Mas em que medida cria o perigo de uma “guerra
de extermínio”, ou se identifica com ela? Sobretudo, em que medida prova que uma Reforma Agrária
fortemente marcada de igualitarismo pode resolver os problemas do campo, e
ao mesmo tempo aumentar a produção nas proporções exigidas pela contínua
expansão demográfica e pelas necessidades da balança comercial do País? * * * O IPT faz notar que “as baixas mais pesadas
estão do lado dos lavradores pobres”. Ainda aqui pode acompanhá-lo
um coração cristão, pois a desventura do que já é desventurado é própria
a atrair mais compaixão do que a do homem feliz. Mas o IPT, absorto na
luta de classes, esquece de mencionar uma categoria de baixas que devem
despertar especial compaixão e além disso sincero respeito. São os
policiais e militares, o mais das vezes dedicados soldados, cabos ou
sargentos, mortos nessas emergências, no cumprimento do dever, e ao serviço
do bem comum. Morrer na defesa de um direito próprio é morrer
bem. Morrer na defesa do bem comum é
morrer nobremente. Seja dado registrar, de passagem, a frieza do IPT
– sempre unilateral – em relação ao patriotismo desses defensores do
bem comum contra as arremetidas do comunismo. * * * “Esse processo se acentua ...” –
Proclamada com estrépito triunfal a conclusão, eis que o IPT aduz
extemporaneamente mais uma alegação em favor desta. À maneira de alguém
que construiu uma casa, soltou um rojão festivo, mas, analisando depois o
edifício, julgou prudente apoiá-lo com mais uma estaca. Só assim se
explica a referência, por assim dizer póstuma, do IPT, ao “processo”
que “se acentua” (desde quando? Em que proporções?) “na
chamada Amazônia Legal” (em toda ela? Em partes dela? Em que
partes?) Esta estaca, por sua vez, é apoiada em outra menor. Com efeito,
sentindo a insuficiência de mais esse dado, o IPT acrescenta, por via das
dúvidas, que o processo ocorre “também em outras regiões”.
Quais?
[1] É significativo que o IPT não faça nenhuma referência ao aumento da produção agrícola, maior que o aumento da população. Nem ao fato de que, apesar de a política governamental ter sido até há pouco desfavorável à agricultura, esta ainda forneça mais de 40% das divisas do País (cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Cap. I, 6). [2] Consta que, em certos lugares, desapropriações feitas em massa com vistas a projetos de grande envergadura determinaram a migração de numerosas famílias. Estas, tendo recebido indenização insuficiente ou paga, por vezes, com grande atraso, foram seriamente lesadas, e lançadas à condição de infelizes migrantes. Tal fato pede uma revisão dos critérios e métodos defeituosos dessas expropriações. Estas abrem o flanco a censuras de caráter moral e também operacional, porém não servem de base a críticas da estrutura agrária. [3] Intimamente ligado ao fenômeno migratório está o tema da mobilidade social; fator, o primeiro, para obter o segundo (cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Anexo I). [4] Renomados economistas afirmam que a política econômica seguida em nosso País a partir da II Guerra Mundial, de uma ou outra forma, prejudicou a agricultura em favor do setor industrial. Segundo eles, algumas das conseqüências dessa política foram uma relativa incapacidade da economia de absorver os contingentes de mão-de-obra não-qualificada, um aumento relativamente pequeno da produtividade da agricultura e a constituição de grandes centros industriais com bolsões de populações marginais (cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Cap. I, 3 e Cap. II, 2). As conseqüências acima são provenientes de uma política econômica errada, e não de problemas ocasionados pela estrutura agrária vigente. [5] Cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Anexo I. [6] Pelo contrário, influentes elementos da “esquerda católica”, vituperam o pioneirismo e seus grandes heróis. Assim, D. PEDRO CASALDÁLIGA, Bispo de São Félix do Araguaia (MT), escreveu sobre Anchieta (recentemente beatificado por João Paulo II): “Anchieta foi, até certo ponto um transmissor de um evangelho colonizador. A Igreja deve se penitenciar... É evidente que a descoberta da América foi em muitos aspectos um crime colonialista” (“De Fato”, Belo Horizonte, ano I, no. 6, setembro de 1976). Em sua autobiografia, D. CASALDÁLIGA é ainda mais enfático: “Acabei, por fim, de entender, e até de sentir, toda a ganga de superioridade racista, de domínio endeusado e de exploração inumana com que foram descobertos, colonizados, e, muitas vezes, evangelizados os novos mundos. “Colonizar” e “civilizar” já deixaram de ser para mim verbos humanos. Como não o são, aqui onde vivo e sofro, as novas fórmulas colonizadoras de “pacificar” e “integrar” os índios. Imperialismo, Colonialismo e Capitalismo merecem, no meu “credo”, o mesmo anátema. Repugnam-me os monumentos aos descobridores e aos bandeirantes. O monumento a Anhanguera em praça pública em Goiânia me dói fisicamente” (Yo creo en la justicia y en la esperanza!, Desclée de Brouwer, Bilbao, Espanha, 1976, p. 176). Sem dúvida a colonização, na América como fora dela, venceu por vezes mediante a prática de crimes execráveis. Isto não obstante, é absurdo afirmar que a colonização é intrinsecamente má. E mais ainda, que o são os descobrimentos. É contra a verdade histórica sustentar que na colonização das Américas tudo não foi senão crime. E que dela não decorreram para a humanidade vantagens consideráveis (cfr. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI, Editora Vera Cruz, São Paulo, 7ª ed., 1979, pp. 120-121). [7] Em novembro de 1978, provocou grande celeuma na imprensa brasileira a denúncia das chamadas “patrulhas ideológicas”, isto é, a censura clandestina feita no interior de grandes empresas jornalísticas com o objetivo de boicotar as produções consideradas “reacionárias” ou simplesmente não “vanguardistas”.
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