Conferência proferida em maio de 1968
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Crucifixo venerado no Santuário de São Damião, em Assis (Itália)
Nosso Senhor, pelo menos em duas passagens do Evangelho, fala de sede. A mais notável foi quando Ele, do alto da Cruz, disse: “sitio” – Tenho sede (Jo. 19, 28). Isso queria dizer que Ele tinha sede das almas. É claro que tinha também uma sede material, física, ocasionada pelo muito sangue derramado. Mas essa sede material, que O levou a lamentar-Se e a pedir água, era um símbolo material da enorme sede das almas que Ele tinha. E todos os intérpretes do Evangelho que eu li ensinam esse “sitio” com este sentido.
Também há um outro momento, quando fala das bem-aventuranças, em que Ele se refere à fome e sede de justiça (Mat. V, 6). A justiça, no Evangelho, não é apenas a virtude pela qual se dá a cada um o que é seu, mas é o conjunto das virtudes, é a santidade. São bem-aventuradas as almas que têm fome e sede da santidade, porque elas serão saciadas.
O valor das almas
Aplicando esses ensinamentos à nossa vida, concluímos que, para alguém fazer um apostolado fecundo, precisa ter sede das almas; quer dizer, precisa ter uma noção de qual é, em tese, a beleza de uma alma; de como a virtude dá à alma o complemento necessário para ela ser efetivamente bela, porque a virtude é a ordem da alma. Embora a alma seja bela por sua natureza espiritual, fica desordenada sem a virtude, e portanto se torna hedionda, pois a corrupção do ótimo é o péssimo. Portanto, a natureza espiritual, como qualquer coisa, só encontra a verdadeira beleza quando é ordenada. Desse modo a virtude é, por assim dizer, a fina ponta da beleza da alma. A alma tira sua beleza da virtude.
Se é verdade que o universo inteiro foi criado para que o homem o conhecesse, e através dele subisse a Deus, a obra-prima do universo sensível, que temos diante de nós, é o homem. Mas o homem principalmente enquanto alma, mais do que enquanto corpo, porque não há nada na natureza mais belo do que as almas.
Insistimos em que não há nada de mais belo do que as almas em estado de virtude, como não há nada de mais horrendo do que as almas em estado de pecado. Desse modo, a pessoa que queira verdadeiramente ter uma formação católica bem feita deve conhecer a virtude das almas e embevecer-se com isso. Deve ter sede de que essas almas se assemelhem a Deus, se unam a Deus. Essa pessoa, verdadeiramente apostólica, deve ter a sede que Nosso Senhor Jesus Cristo teve dessas almas, deve ter em si o “sitio” dEle.
O que é a sede das almas
Essa sede tem uma circunstância peculiar, por onde dizer-se sequioso de tal alma é menos que dizer-se sequioso de uma alma. Porque ter sede de algo é querer como que beber, incorporar aquilo à própria pessoa. Assim, devemos ter verdadeiramente sede das almas. Devemos ser tais que a nossa virtude tenha sede de unir-se à virtude das outras almas.
O melhor de nosso instinto de sociabilidade é a apetência que tem nossa virtude de encontrar-se com a virtude das outras almas, e de corroborar-se ali, para assim crescer no amor às virtudes e crescer no amor de Deus. Quando duas almas virtuosas se conhecem reciprocamente, saciam a sede que uma tem da outra, de acordo com o princípio metafísico simile simili gaudet – Ao semelhante agrada o semelhante.
Compreendemos com isso certas grandes efusões dos santos, quando se encontravam. Por exemplo, o famoso encontro entre São Domingos, São Francisco e Santo Ângelo, carmelita. Eles se encontraram numa sacristia de Roma, parece-me, e não se conheciam. Quando se viram, caíram os três de joelhos, um diante do outro. Embora fossem para lugares diferentes, para missões diferentes, caíram de joelhos, cada um diante dos outros, e cantaram louvores a Deus. E um deles – creio que foi Santo Ângelo – previu o futuro dos outros, com tudo que lhes ia acontecer.
Quando se pensa nesse encontro, gostaríamos de ocupar o canto da sala, qualquer lugar minúsculo, e ficar cem anos apreciando a cena, porque é realmente maravilhosa. Vê-se que esses santos tiveram sede um do outro. Por assim dizer, a alma de cada um penetrou na alma do outro, uniu-se a ela, e ali se satisfez e se dessedentou.
É claro que, por detrás dessa sede de almas, o que existe realmente é uma sede de Deus. Isso não é a amizade romântica, em que uma alma tem sede da outra para satisfazer seu sentimentalismo, seus gostos e caprichos. Muito menos uma espécie de simpatia utilitária, para servir-se do outro como de um instrumento, para alguma utilidade, mas é propriamente uma sede desinteressada, em que a alma deseja a outra por aquilo que ela é, pela semelhança de Deus que há nela. E por causa disso ela procura a santidade daquela outra alma.
Esse é o ponto sensível do apostolado. Nós temos senso apostólico quando percebemos as outras almas. Às vezes, num indivíduo desprezível que possa andar pela rua, olhamos e percebemos: “Esse homem, se fosse virtuoso, seria de tal jeito. Como seria belo que ele fosse desse jeito! Como eu estaria disposto a trabalhar, a lutar, a rezar, a sofrer para conseguir que ele fosse desse jeito! Ainda que ele não me conhecesse e não soubesse quem foi que lutou, que rezou por ele, pouco importa. Eu o veria passar regenerado, e compreenderia que a obra de Deus, tendo-o em vista, se realizou”. Então exultaria do fundo de minha alma, ao ver essa obra, porque eu amo as obras de Deus em si mesmas, por que elas vêm dEle, e por elas subo até Deus.
É uma forma de amizade que não exige retribuição. Eu não faço questão de que aquele que ficou bom, tendo eu servido de instrumento, me agradeça. Não faço questão de que me estime por isso, a não ser na medida em que a estima é uma virtude que ele deva ter. Mas se for melhor que ele nunca saiba que fui eu, também fico satisfeito. O que eu quero, o que eu tenho, é sede da alma dele para o Sagrado Coração de Jesus, para o Imaculado Coração de Maria; para satisfazer essa sede de almas que Eles têm, e que me comunicam. Tenho a sede de que a alma dele seja santa.
Propósito da nossa sede de almas
Faço questão de desinfetar – no sentido literal da palavra – esse resumo introdutório de qualquer odor de uma “piedade” meramente sentimental e dulçurosa. Quando um de nós tem sede de almas, tem sede de que a alma seja verdadeiramente católica. Não de que ela tenha os bons sentimentos langorosos daquelas formas adocicadas e sentimentais de piedade que, no fundo, a pessoa usa sem nenhuma visão da realidade. Não é isso. Nós temos sede de que o verdadeiro espírito da Igreja Católica, no que ele tem de grande, de sério, de sábio, de sublime, de ordenado – vamos dizer tudo numa palavra só: de Sabedoria – exista nas almas.
É disso que se tem sede. Todas as virtudes particularmente consideradas – a castidade, a veracidade, a piedade, a honestidade pecuniária – não são senão aplicações da Sabedoria a campos concretos. E nós temos sede é de que essas almas tenham a Sabedoria, essa sabedoria séria, grave, sublime, calma, ordenada, super-combativa, super-dinâmica, mas super-contemplativa e super-plácida, que dá verdadeiramente a nota do espírito da Igreja Católica.
Quando, por exemplo – e a essa luz tal consideração fica até impressionante – temos diante de nós um auditório cheio, quando olhamos para um grande número de almas e podemos imaginar o que há de sabedoria em cada uma delas, qual é o plano divino de sabedoria completa nessas almas, não podemos nos dispensar de ter sede de almas. De tal maneira percebemos qual seria ou qual será a beleza da obra de Deus, quando o católico completo, o escravo de Nossa Senhora, o Apóstolo dos Últimos Tempos (nota: para aprofundar o assunto, vide por exemplo: Catolicismo Nº 53 – Maio de 1955 – Doutor, Profeta e Apóstolo na Crise contemporânea, Catolicismo Nº 55 – Julho de 1955 – O REINO DE MARIA, REALIZAÇÃO DO MUNDO MELHOR, e o artigo na “Folha de S. Paulo” de 20-9-1980, Obedecer para ser livre) for construído inteiramente ali, que teríamos vontade de olhar para cada rosto e dizer: “sitio”, eu tenho sede deste. Eu o quero para Nosso Senhor, mesmo que ele não saiba que sou eu quem o quer. Quero-o para Nosso Senhor, bom como ele deve ser.
A personalidade de Santa Teresinha numa fotografia
Alguém poderia objetar que, para ter essa sede das almas, é preciso senti-las. Como é que se sentem, como é que se percebem as almas? Qual é a atitude ordenada que a pessoa deve ter diante da alma que percebe?
Para que essa questão muito importante ficasse bem clara, achei que nada seria melhor do que trazer aqui esta magnífica fotografia de Santa Teresinha do Menino Jesus (foto aos 8 anos, com a corda de pular nas mãos). É realmente magnífica; falta apenas o relevo, para se dizer que ela está viva.
Para comentar essa alma, eu pediria aos senhores um esforço um pouco singular, que é o seguinte: não prestarem tanta atenção no que irei dizendo, mas em si mesmos. É um tipo singular de conferência. Procurarei explicitar, não o que eu penso de Santa Teresinha, mas o que uns tantos ou quantos dentre os senhores pensam dela. Quer dizer, que impressão a visão desta fotografia produz em uns tantos ou quantos dentre os senhores.
Naturalmente, vou improvisar; essas coisas, quando são preparadas em casa, perdem toda a vida. É possível que, ao longo da improvisação, eu faça dois ou três quadros sucessivos, de acordo com o que Santa Teresinha possa parecer para esses ou aqueles dentre os senhores.
Primeira impressão
A primeira impressão, ao olhar para ela, é a seguinte: Que menina! A primeira explicitação, o primeiro jorro, deve ser assim. Ela é ainda menininha, cheia de vida, de frescor, saltitante, e com essa espécie de extroversão própria de uma menina ainda na infância. Aí se vê a beleza de uma alma de criança, na delicadeza, na fragilidade, na louçania da natureza feminina. Como essa fotografia é bem apanhada, e como pegou bem essa menina! Essa é a primeira impressão.
Idéia de pureza
Por detrás dessa impressão entra uma outra, pela qual a pessoa reconhece tudo aquilo, mas ao mesmo tempo em que se embevece com a inocência, com a vivacidade e a louçania dessa menina, sente uma idéia de pureza associada a isso. E sente-a mais ou menos em tudo. A pureza vem presente, antes de tudo, no seguinte: nota-se nela, no sentido verdadeiro da palavra, uma boa espontaneidade.
É uma menina que não esconde nada, que não tem o hábito de esconder nada, e que sabe perfeitamente que não tem o que esconder. Ela não tem fraude nem dissimulação. Dela se pode dizer o que Nosso Senhor disse de Natanael: “Aqui está um verdadeiro israelita, no qual não há fraude” (Jo. 1, 47) Aqui está uma verdadeira menina, pura, filha de uma família católica, que tem em si toda a pureza, toda a candura de uma vida de família católica, toda aquela delicadeza virginal que a vida de família católica comunica especialmente a uma menina. E isso sem fraude nenhuma. Ela tem isso inteira, e não tem o hábito de pecar.
Inocência batismal
Olha-se para ela, e ela está inteira. Ela vai falar, vai andar, mas com uma naturalidade, com um elã, com uma espontaneidade que tem muito da leveza e graça francesa, mas sobretudo muito da inocência batismal nunca rompida. Essa alma não foi desfigurada por nenhum pecado. Ela tem uma forma de pureza que não é só o recato. Não situo isso no seguinte comentário aguado: “É verdade: os bracinhos dela estão cobertos, e a saia desce até abaixo dos joelhos”. Refiro-me a uma pureza do olhar. Essa pureza do olhar, essa pureza da alma, não é apenas a pureza da castidade, é a pureza de quem nunca pecou. É o estado de inocência batismal com todo o seu perfume, com uma forma de candura que é mais ou menos como a vida no corpo. A vida no corpo não é localizável: está aqui e está lá, está em tudo, no corpo vivo. Aqui também a inocência batismal está em tudo, está por toda parte.
Estamos fazendo um itinerário de impressões: a primeira impressão foi de menina; na segunda impressão entrou a idéia de pureza; da idéia de pureza subimos para a idéia de pureza virginal, que já é uma coisa tão alta; e daí passamos para algo maior do que isso, que é a inocência batismal, o estado de graça nunca quebrado numa alma. Aqui também se poderia aplicar uma palavra francesa que não sei como traduzir: o estado de graça jamais flétri (“murcho”, aqui empregado no sentido de “tisnado”, “manchado”, n.d.c.) em uma alma.
Ordenação refletida
Começo agora uma análise que se faz melhor pelo processo comparativo. Até agora não tinha adotado nenhuma comparação, porque não era necessária. Eu pergunto: é só isso? É uma menina tão viva, mas não é nem um pouco estouvada, irrefletida.
Se ela começasse a brincar com a corda de pular, não pularia de modo ridículo, apalhaçado, irrefletido. Ela de repente sairia correndo, mas não, por exemplo, de um modo bobo.
Todo mundo percebe que essa espontaneidade que há nela é presidida por uma certa regra, por onde ela nunca faz aquilo que não deve. E que, portanto, dentro do seu espírito há toda uma ordenação, todo um pensamento, toda uma reflexão. Naturalmente, reflexão de criança, pensamento de criança, ordenação de criança; instintiva e subconsciente, mas real, por onde tudo o que fizesse seria de criança e de verdadeira criança, nem um pouco uma sabiazinha, uma mulherzinha metida e filosofinha. É o contrário disso. Ela é inteiramente natural, mas sumamente ordenada, possui em si uma grande ordem interna. Não se imagina essa menina fazendo qualquer desatino, compreende-se que ela não o faria. Através disso compreende-se a ordem que existe dentro dela.
O sorriso
Numa parte mais delicada da análise, percebemos que a boca é reta, com os lábios finos e muito firmes. É uma firmeza na qual não existe uma gota de amargura. Pelo contrário, há um certo sorriso indefinível. Falam tanto do sorriso da Gioconda, mas isto é que é sorriso! Ela não está nem um pouco sorridente, mas há um sorriso indefinível nos lábios dela. Há qualquer coisa nela que sorri, sem que se possa propriamente dizer que ela está sorrindo.
Tem-se a impressão de que o fotógrafo disse a ela para sorrir, e ela, para não desatender a ele, esboçou qualquer coisa vagamente à maneira de sorriso. Há algo de sorriso espalhado no rosto dela: está um pouco nos olhos, um pouco nos lábios, está numa afabilidade geral da pessoa. Ela está numa posição muito afável e muito acolhedora, numa posição de muito boa vontade em relação a todo mundo.
No entanto, é uma atitude risonha que indica ao mesmo tempo força de alma e caráter, no sentido próprio da palavra. É o contrário dessas imagens sulpicianas de Santa Teresinha que se encontram por aí: derramando rosas, e sorrindo não se sabe de que jeito. Não têm nada deste sorriso. Aquele é um sorriso de boneca de louça, mas esta aqui não tem nada da boneca de louça. É um sorriso por detrás do qual há um pensamento. E é o lado pensamento que propriamente se deve atingir.
O nariz, a boca e a testa
Vejam agora o nariz: ele tem uma forma um pouco proeminente, tem um pouco de combate, um pouco de luta. Os lábios, apesar do sorriso, são finos e firmes, de quem tem verdadeiro caráter. Analisando-se a testa, vê-se que é ligeiramente bombeada e, aliás, muito alta. A pessoa que a penteou, até puxou o cabelo para baixo, para disfarçar isso. Vê-se que ela tinha até muito cabelo. Eu vi no museu de Lisieux a trança dela, uma trança loura magnífica, de cabelos abundantes. Mas a nascente era um pouco alta.
Os olhos
Considerando agora os olhos, observa-se que é sobretudo neles que reside aquele sorriso. Notem que a expressão de fisionomia, a expressão do olhar, tem um pouco do que o francês chama de espiègle – um pouco de esperteza, um pouco de graça – na expressão do olhar. Concentrando-se a atenção nos olhos, acaba-se percebendo que há nesse olhar todo um firmamento, um mundo de reflexão, de início de reflexão.
A contemplação
Para quem é que esse olhar está mirando? Ele não olha para nada definidamente. Mira um ponto vago, indefinido, mas com uma espécie de enlevo, de consideração, de contemplação enlevada, afetuosa, respeitosa. Em última análise, é o próprio de um espírito possantemente contemplativo. Na sua aurora, na sua primavera, é verdade, mas possantemente contemplativo, meditativo, interior, próprio a olhar as coisas do espírito, a olhar as coisas metafísicas, a olhar horizontes mentais mais ou menos infinitos.
É um olhar que paira no infinito, numa esfera completamente diferente daquela onde paira comumente o pensamento dos homens. Santo Agostinho disse de si, nas “Confissões”, a respeito da sua infância: “Tão pequeno menino eu era, já tão grande pecador”. Dela se poderia dizer: “Tão pequena menina era, e já uma tão grande santa”. Porque o seu olhar tem qualquer coisa que me custa exprimir adequadamente, mas que é aquela impostação da alma em coisas que são inteiramente superiores. Não indiferentes, nem hostis, nem alheias, mas superiores ao concreto, ao contingente, ao transitório, ao passageiro, ao individual.
Não é uma pessoa preocupada consigo. Ela aqui não se importa com o efeito que vai causar no fotógrafo; está de pé, do modo como ela é. Disseram a ela que fosse posar para uma fotografia, e ela foi, obediente como os meninos do Evangelho, que Nosso Senhor acariciou, e aos quais é reservado o Reino dos Céus (Mat. XVIII, 3). Não é uma menina filósofa, nem um pouco. Seria uma caricatura. Ela não é vesga, está numa pose e prestou atenção na máquina fotográfica, mas é como numa parte do rés-do-chão da alma dela.
Por cima desse rés-do-chão, que funciona perfeitamente bem, há toda uma outra construção. Nessa idade, ela poderia dizer a nós aquilo que Nosso Senhor disse, pela boca do profeta Isaías, e que é uma das frases mais tristes, uma das suas queixas mais bonitas, onde a divina superioridade dEle se afirmou do modo mais magnífico: “As minhas cogitações não são as vossas cogitações, nem as vossas vias são as minhas vias” (Is. LV, 8).
É magnífica essa ligação das idéias de cogitação e via: a cogitação do homem como que dirigindo a sua via, e sendo prenúncio de todas as harmonias da via. E a elevação das cogitações dEle! Pensem um pouco no Santo Sudário. Que cogitações! Aquilo é cogitar! Que vias! Aquela face do Santo Sudário não poderia dizer para nós as mesmas palavras de Isaías? Poderia, perfeitamente.
Santa Teresinha aqui também poderia nos dizer – Christianus alter Christus – que “as minhas cogitações não são as vossas cogitações, nem as vossas vias são as minhas vias”. Caberia que ela o dissesse. Por quê? Porque ela está numa impostação de alma supinamente meditativa, pouco comum. Ela aqui é toda sacral (nota: a palavra “sacral” é aqui empregada no sentido do sagrado posto na ordem temporal ou profana). Não é a meditação de uma filósofa ou de uma teóloga, mas de uma santa. É a oração – que propriamente é o convívio da alma com Deus – que está posta aí.
A infância meditativa
No livro “História de uma Alma” isso se confirma em numerosos trechos. Ela tinha, por exemplo, o costume de subir a uma parte mais alta da casa, para ver as estrelas à noite, etc. E o livro fala das infinitudes que havia no pensamento dela, dos espaços que havia ali.
Tem-se a impressão de que Santa Teresinha tinha em si toda a doutrina contra-revolucionária, mas não tinha a missão de explicitá-la. Ela tinha a missão de morrer pelos contra-revolucionários, de viver, de traçar a Pequena Via que torna a Contra-Revolução acessível ao grosso dos que a seguem. Mas havia todo um firmamento de idéias nela, o qual já desde essa idade se prenuncia.
Os Buissonnets (vista parcial): casa onde viveu Santa Teresinha durante sua infância
Era uma criança altamente meditativa. No fim da vida, quando estava madura para o Céu, e portanto quando tinha atingido a santidade a que a havia destinado o desígnio da Providência, ela contava que quando tinha por volta dos dez anos – quer dizer, um pouquinho mais velha do que está aqui – ia com a irmã a um belvedere lá dos Buissonnets, e tinham conversas em que ela recebia tantas ou mais graças do que as que receberam Santo Agostinho e Santa Mônica no famoso colóquio da hospedaria de Óstia, pouco antes de Santa Mônica morrer. Portanto, quando a santidade de Santa Mônica estava consumada, e ela estava para ir para o Céu.
No fundo, nota-se isso no olhar dela. Não se pode descrever um olhar. Se se perguntasse a São Pedro o que lhe disse o olhar de Nosso Senhor, o que poderia ele responder? Responderia: “Ele disse algo por onde eu chorei a vida inteira. As lágrimas mais amargas e mais doces que jamais se choraram, depois das de Nossa Senhora, chorei-as eu”. E não teria outra coisa para dizer, pois o olhar é algo de inefável. Ou se vê aqui esse olhar e se sente, ou não se o vê, e não posso fazer nada. A um só olhar estava reservado algo que é supra-excelente: ver, olhar com as pálpebras descidas. Este é o olhar do Santo Sudário. Ali Nosso Senhor está com as pálpebras descidas, mas Ele olha. E que olhar! Nós só não choramos porque não somos São Pedro.
Buissonnets: cama de Santa Teresinha
A principal etapa da vida
Quero insistir sobre o seguinte ponto: Santa Teresinha morreu aos 24 anos, e se volta muito para a sua infância. Essa época marcou tão profundamente os rumos de sua vida, que é a mais ilustrativa para se conhecer o seu espírito. Tenho impressão de que na vida de Santa Teresinha os pontos culminantes são a sua infância e o fim, às vésperas da morte.
Um de nossos colaboradores lembrou-me que, quando ela escreveu sob obediência seus “Manuscritos Autobiográficos”, não falou quase nada de sua vida no convento. Só mais tarde, para atender sua Priora, é que falou de sua vida de freira. A infância, para ela, foi tudo. Por quê? Porque foi uma infância profundamente consciente, meditada e raciocinada.
Aqui está, a meu ver, um elemento precioso para o conceito de infância espiritual. Não é bobeira, não é tolice, muito menos irreflexão. É, de dentro de uma alma pequena, de uma alma de criança, ser capaz das maiores coisas; com uma apresentação amável, afável e autêntica, não a pura apresentação do espírito de uma criança. Aqui está a questão, e aqui, a meu ver, está a nota: Santa Teresinha poderia repetir que as nossas cogitações e as nossas vias não são as dela.
Mas não é o que ela nos diria. A sua missão é a de, pela sua presença, e como num “flash”, apresentar a via dela e atrair, arrastar para a sua via. E isso com o afável, com o pequeno, o acessível, o encantador que a infância tem. Mas que infância meditativa! Que infância fecunda! Uma infância que se pode comparar ao fim da vida de Santa Mônica! É uma santa falando de si mesma.
Aí se vêem os tesouros de maturidade, de meditação, de profundidade, e, se necessário for, de atividade, que cabem dentro da verdadeira infância espiritual. Foi ela quem disse: “Para o amor nada é impossível”. Em nossa linguagem isso se traduz: “Para o enlevo, para o zelo do verdadeiro católico, nada é impossível”.
Aqui está Santa Teresinha do Menino Jesus, com todo o tesouro de meditação que tinha, e que pode existir numa alma de criança, como a que ela conservou até o summum de sua maturidade. É preciso ver bem: viveu a infância fiel a si mesma, sendo ela mesma até o apogeu de sua maturidade. É uma coisa magnífica.
Buissonnets: lareira junto à qual se passaram tantos episódios da infância de Santa Teresinha
Diversas atitudes diante das almas
Depois de todas essas orientações de como se analisa uma alma, apliquemo-las ao que vimos sobre a sede das almas.
Para isso, imaginemo-nos num hotel, e que estamos saindo de nosso quarto. Do quarto em frente ao nosso, onde está alojada uma família, sai uma menina. E a menina é essa aqui da fotografia. É bom saber que desconhecemos que essa menina vai ser Santa Teresinha: é a jovem Teresa Martin. Daqui a alguns anos, será Mademoiselle Martin, e mais nada. Qual é a nossa reação diante dessa menina? Há muitas reações possíveis.
Indiferentismo
A primeira reação – e creio que seria a mais freqüente – seria a de não perceber: “Hum! uma menina…” Ou então: “Que bobagem, essa corda na mão”. Ou ainda: “Essa menina vai brincar com essa corda”. Ou qualquer pensamento ultra-rasteiro desse gênero. A pessoa passaria por Santa Teresinha e não perceberia.
Temos bem certeza de que nós perceberíamos? É uma pergunta que podemos nos fazer, porque o normal seria que percebêssemos. Não é normal que um santo passe por nossa vida e nós não o percebamos. Santa Teresinha, no entanto, passou despercebida. Ninguém no convento, nem as próprias irmãs dela, imaginavam que ela fosse santa. Era um convento deplorável, com uma priora cheia de caprichos. Diga-se entre parênteses que Santa Teresinha sabia o que a aguardava ali, porque quem tem esses olhos tem radiografia dentro da cabeça, e vê para além dos muros de um convento. Mas deviam tê-la percebido, e foi um sinal de tibieza desse convento não ter percebido Santa Teresinha. Perceberíamos nós?
Egocentrismo
Vamos virar a página. Não estamos mais num hotel, mas nos Buissonnets, alojados por Monsieur Martin e pagando, por exemplo, dez francos-ouro por casa e comida. Teríamos percebido essa menina? Que impressões a menina nos teria causado? Talvez uma vaga impressão de santidade, vaguíssima. Essa impressão, nós a externaríamos com algumas reações. Nós a acharíamos engraçadinha, brincaríamos um pouco com ela, gostaríamos de ouvir um pouquinho o timbre de sua voz, acharíamos graça em alguma coisa que ela dissesse. Quando muito, concluiríamos: “As filhas de Monsieur Martin são todas muito agradáveis. A que mais me distrai é a Teresinha”. E não iríamos adiante.
Não acham possível que isso acontecesse, pelo menos a um ou outro dentre nós? Essa é uma reação egoística, utilitária. A gente percebe vagamente a santidade, ela nos agrada, pensamos no agrado que ela causa, e a tomamos como instrumento de agrado. Um agrado santo, legítimo, sem nada de censurável contra o sexto mandamento. Equivale a considerá-la como uma bonequinha, um gatinho, um ratinho: é uma criança engraçadinha. A santidade dela não nos atingiria.
De repente, percebemos que a menina fez um insigne ato de caridade para conosco: privou-se do jantar e passou a noite inteira com fome, para que sobrasse comida para nós. Diríamos: “Ah, estou encantado! Como ela me quer bem! Como lhe fico agradecido! É uma menina de coração de ouro!” No fundo: “Ela percebeu o que há de delectável na minha pessoa. Ela, sim, me compreendeu. E compreendeu quanto eu mereço esse ato de abnegação”.
E poderiam seguir-se algumas reações: “Vem cá, menina. Eu comprei um brinquedo para você”. Ou: “Eu gosto muito dessa menina”. Ou: “Essa menina gosta muito de mim”. Ou ainda: “Essa menina tem uma virtude excepcional. Eu gosto de ver a virtude dessa menina”. Em todo caso, gostando mais da menina como distração do que como espelho de virtude.
Atitude desinteressada
Quão poucos chegariam a dizer o seguinte: “Essa menina tem oito anos. Quantos riscos correrá ao longo da vida! Que linda alma ela terá quando chegar ao termo da carreira que Deus lhe estabeleceu! O que poderei fazer para que essa obra-prima não se deteriore? O que poderei fazer para que essa alma suba no firmamento da santidade? Eu desejo isso mais do que tudo. Deus fez essa maravilha. O que eu posso fazer? Rezar, dar um conselho, proteger de todo modo, para que essa maravilha chegue a seu termo? Tenho sede dessa santidade. Quero ver realizado esse desígnio de Deus. Quando o vir, serei como Simão quando viu o Menino Jesus. Ainda que eu seja velho e encanecido, poderei dizer: “Senhor, mandai agora em paz o vosso servo, porque os meus olhos viram aquela que reflete o meu Salvador” (cf. Lc. II, 29).
Esse último é que tem o senso e a sede das almas. As observações dos outros poderiam ser etapas para um caminho, mas etapas para se percorrerem rapidamente. O ponto terminal – mesmo que se tratasse de uma filha nossa – não era que aquela alma nos quisesse bem, ou que nos devolvesse o afeto que como pai nós lhe déssemos, mas que fosse, como alma, aquela obra-prima criada por Deus, e que Deus quis elevar a tal grau de perfeição. É isso que faz de nós apóstolos: é o vermos uma alma e termos sede da perfeição dessa alma.
Consideremos a fotografia de Santa Teresinha no fim da vida, quando ela está diante do cálice para bebê-lo, ou quando já o está bebendo: ela tem uma fisionomia de tristeza, mas ao mesmo tempo de uma simplicidade, de uma candura, de uma naturalidade, de uma afabilidade, de uma força e de uma elevação, de uma capacidade de contemplação levada à plenitude, ao supra-sumo. Ali nós vemos esse desígnio de Deus que chegou à perfeição. Então, acompanhando a trajetória dessa alma, nós vemos que ela se santificou, e podemos cantar o Magnificat.
A Basílica de São Pedro em todo seu esplendor durante a canonização de Santa Teresinha
Exemplo da canonização de um santo
Eu assisti da tribuna do corpo diplomático, na Igreja de São Pedro, em Roma, à canonização de São Vicente Strambi. No momento em que tocam todos os sinos e se descerra a tapeçaria que cobre o quadro do santo, em que o Papa declara que ele está na glória dos Céus, junto a Deus, etc, há uma alegria de toda a liturgia, de toda a Igreja Católica por causa disso. Qual o sentido daquela alegria? Não é o que pensa muita gente: “Esse felizardo está agora na boa vida”. É claro que nós nos regozijamos em que ele seja feliz, mas isso não é a nota dominante, nem de longe. A nota dominante é: “Realmente, o plano de Deus sobre esse servidor bom e fiel foi realizado. Ele atingiu a santidade para a qual foi criado”.
Isso, para quem tem o zelo, o senso das almas, é grande em si, independente do efeito que possa ter no povo, do bem que possa fazer para a humanidade, etc. Isso é tão grande, só por si e em si, que basta para repicarem os sinos de todas as igrejas de toda a Cristandade, de toda a catolicidade. O desígnio de Deus se realizou numa alma. Uma alma foi inteiramente fiel. Ela, de fato, carregou a cruz ao alto do Calvário e se fez crucificar com amor, e por amor de Deus Nosso Senhor. Ela se tornou um outro Cristo, é a alegria dos Anjos e a alegria da Terra.
Isso independe de outros dizerem: “Que bom, agora o exemplo de São Vicente Strambi vai fazer muito bem em toda a região de Nápoles, porque os napolitanos vão ficar muito satisfeitos”. Eu estimo enormemente que isso faça bem para os napolitanos, mas não é essa, nem qualquer outra desse tipo, a razão principal da alegria. Ela é o seguinte: a sede de Nosso Senhor, num ponto, foi satisfeita. A alma de São Vicente Strambi foi como uma taça cheia e odorífera, para matar a sede dEle na hora da Paixão.
Catedral de Lisieux: Foi aqui que, no final da Missa, em julho de 1887, Irmã Teresa do Menino Jesus recebeu de Deus a revelação de sua Missão: salvar as almas pela oração e pelo sacrifício. “Experimentei, então, um sentimento inefável. Resolvi-me a me manter ao pé da Cruz. Eu me sentia devorada pela sede de almas” (“História de uma alma”, capítulo V)
Nota: A grande maioria das fotos utilizadas na presente matéria foram fornecidas por um dos colaboradores deste site que fotografou, em uma de suas peregrinações à Lisieux.