Reunião Normal – 8 de agosto de 1975
A D V E R T Ê N C I A
Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios da TFP, não tendo sido revista pelo autor.
Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Na reunião de hoje à noite, eu deveria complementar a reunião passada mostrando aos senhores como é a vida de um homem que aceitou catolicamente a tragédia.
Eu tive a ocasião de descrever aos senhores na reunião passada qual é o estado de alma do homem que não aceita a tragédia –– isso então do homem ruim, que se coloca mal diante da vida, e que se atira no despenhadeiro dos prazeres para fugir da tragédia.
Mostrei também, em comparação, qual é o estado de alma do homem bom, mas tentado, que não se atirou no despenhadeiro dos prazeres, que, portanto, tem alguma coisa de tragédia só para consigo, mas que acredita em que os outros são felizes, e que a tragédia é uma coisa que acontece para ele e mais para alguns poucos infelizes, mas que para a grande maioria dos homens não acontece. E procura, portanto, obter de qualquer maneira a felicidade nesta vida.
Eu não respondi à seguinte pergunta: como é a vida de um homem que se tenha colocado claramente diante da tragédia; ele tem a sua tragédia e ele aguenta a tragédia que tem diante de si. Desde que esse seja um homem católico, como é a vida dele? Não sei se está bem posta a pergunta ou desejam algum esclarecimento.
Então eu vou tomar fatos, situações da vida quotidiana.
Por exemplo, um homem, um moço ou uma moça que se casa. E que algum tempo depois de casado, como é tão frequente, que o esposo ou a esposa não corresponde senão incompletamente àquilo que tinha pensado. De tal maneira que se sente rondado pela tentação do divórcio. Que o divórcio é uma tentação é evidente. É mesmo um dos argumentos contra o divórcio o fato de que a vida de casado, mesmo quando feliz, é tão diferente, impõe uma tal limitação para as ambições, para os desejos da carne, que o homem ou a mulher casados, com facilidade excessiva tendem a abandonar a outra parte, já não com razão, mas sem razão. E a engajar novas uniões que nós poderíamos erradamente chamar de novas núpcias.
Quer dizer, é de tal maneira o freio que o casamento representa para a sensualidade humana, que ainda que um homem, segundo a razão, seja bem casado. Quer dizer, reconhece que sua esposa é muito boa, que está à altura dele, ou está mais alta até do que ele moralmente, que cuida muito bem, educa muito bem os filhos, dá a ele assistência, o carinho que deve dar, cuida da casa como deve cuidar, apresenta-se em público de modo razoável, de um modo digno para ele, etc. etc, ainda quando acontece tudo isto e ele pode dizer que ele de sua esposa não tem queixa nenhuma –– ainda quando acontece tudo isso ele é tentado pelo impulso humano do homem concebido pecado original, ele é tentado a abandonar a sua esposa e tomar uma outra. E se ele for seguir seu impulso ele não fará isso apenas uma vez na vida, fará duas, fará cinco, fará dez vezes na vida.
O mesmo será a mulher. A mulher que teria todas a razões para estar satisfeita com o marido, imaginemos, que pensa do marido todo o bem possível, mas quer um outro.
Eu me lembro de ter ouvido uma conferência muito interessante de um padre francês que esteve aqui no Brasil, naquele tempo em que o clero combatia seriamente o divórcio, e que ele falava então a respeito de uma cena de casal.
Naturalmente ele era europeu e a cena se passava no espírito dele numa sala europeia, num living europeu, tendo por centro uma lareira. Ele imaginava uma sala tendo por centro uma lareira, no alto da lareira um relógio artístico dando as horas, de um lado uma poltrona, doutro outra.
Os dois chegam do cinema, sentam-se junto à lareira para descansar um pouquinho enquanto não chega a hora de irem dormir. Crepita o fogo, ouvem-se os pequenos estalidos das brasas que saltam, o fogo está agradável, a sala está amena, cada um tira os agasalhos, os abrigos, se estica do seu lado na cadeira e olha para o outro, e o relógio marcando tic-tac-tic-tac-tic-tac.
Eles não têm assunto para conversar porque já conversaram tudo, mas ele pensa: “que bom seria se aqui em frente de mim estivesse a atriz do cinema”; e ela pensa: “que bom seria se em frente de mim estivesse o ator do cinema”. É evidente que é uma coisa que pode suceder. E é evidente que pode suceder um número enorme de vezes.
E a doutrina católica manda que a pessoa reprima esse desejo e reprima até esse pensamento. Ora, em determinado momento esse pensamento e esse desejo podem assaltar o homem com uma solicitação que o toma por inteiro. Como é que ele fará? É trágico saltar em cima daquele desejo e estrangulá-lo. É preciso e se não for isso é pecado mortal por pensamento, pecado mortal de adultério.
Mas isso não é apenas uma crise de um minuto, uma crise de um instante, é uma crise que vai além, é a crise da vida inteira. Porque acaba sendo que, cronicamente, cada parte descobre na outra alguns defeitos que de modo algum quereria ter visto no seu cônjuge, e esses defeitos existem.
Descobre também – e notem bem, porque o que vem agora é a parte mais importante – descobre também qualidades e qualidades muito apreciáveis, mas ao lado de defeitos dificilmente suportáveis.
Aí está posta a matéria prima para uma tragédia.
Outra coisa de tragédia são as relações pai e filho. Os romances infantis concorrem muito para isto. Por uma série de coisas que estão na psicologia infantil, e que fazem até parte dos aspetos nobres da psicologia infantil, a criança tende muito a idealizar as coisas, a imaginar, portanto, as coisas como elas não o são, a deitar a sua atenção num mundo irreal, que nós debaixo de certo ponto de vista chamaríamos um mundo super-real, e que a linguagem corrente chama apenas de mundo real.
A criança em certa idade começa a imaginar, ou ao menos isso acontece com frequência senão todas as vezes, uma vida de famílias como não tem. E uma família como não tem. Começa por fazer a crítica dos irmãos e das irmãs, dos primos e das primas:
– “Ihh! Esse assim, aquele assado como eu gostaria que fulano do colégio fosse meu irmão e não este tipo que está aqui. Como eu gostaria que minha prima fosse fulana que é irmã do meu amigo e não esta minha prima que está aqui. Como eu gostaria que minha casa fosse a casa que eu vi passando em tal lugar assim quando eu vou para o colégio e que é tão diferente da casa que eu costumo ver, na qual eu moro. Como eu gostaria, em suma, que meu pai e minha mãe fossem diferentes do que são. Eu gostaria de um pai idealizado, de uma mãe idealizada, de irmãos idealizados, gostaria de uma família que é completamente, ou senão completamente diversa, diversa em pontos capitais da família na qual eu vivo. Eu reconheço o valor, a qualidade, o tônus da família na qual eu vivo, mas não é inteiramente o que eu quereria. Eu quereria uma coisa diferente, eu quereria uma coisa mais alta, eu quereria uma coisa melhor”.
E o romance infantil deita lenha nessa fogueira, e começa então a criança a imaginar mundos irreais e vidas irreais.
Entre esta concepção irreal da vida e o aspeto real da vida, há o mesmo desencontro. A vida real, atraente, boa, digna por vários lados, mas recusável por vários outros lados, e criando uma situação que eu chamaria manca, em que a pessoa claudica com um dos pés. Isto quando as coisas correm bem. Quando não é uma situação que eu vou descrever daqui a pouco.
Eu não vou perguntar aos senhores – seria pouco discreto da minha parte – se em meninos passaram por estados de espírito assim, mas só por interrogatório, levantem o braço aqueles que conheceram meninos passando por estado de espírito assim… Os senhores estão vendo que é a sala inteira.
Quer dizer, é uma coisa que existe, que evidentemente existe, e que evidentemente também supõe, da parte do menino, a aceitação de uma tragédia. Daqui a pouco nós vamos ver como é que a pessoa se deve conduzir nessa tragédia.
Isso muito mais é assim com o colégio e com os colegas. Todo menino quando vai para o colégio nos primeiros dias, ou tem uma decepção brutal, ou tem um entusiasmo colossal. De qualquer maneira, ao cabo de algum tempo embirra com os professores, percebe as lacunas dos professores, atribui também falhas aos professores que às vezes eles não têm. Isso se estende ao funcionalismo. Eu não sei se os colégios de hoje ainda tem bedéis, no meu tempo tinha os bedéis que batiam o sino, que mantinham a disciplina etc, etc.
O colégio passa a ser muitas vezes uma cocheira para o menino. Ele detesta. E assim acaba sendo que a própria cidade natal também acaba decaindo do conceito dele, e aparecia, ao menos no meu tempo, duas espécies de meninos: os meninos que sonhavam com a Europa, e os meninos que sonhavam com os Estados Unidos.
Os que sonhavam com a Europa, sonhavam com uma viagem à Europa e poder ficar morando na Europa. Os que sonhavam com os Estados Unidos sonhavam numa viagem aos Estados Unidos, e não propriamente ficar morando nos Estados Unidos, mas ali fazer uma proeza qualquer, ficar boxeur, artista de cinema, Tom Micks, sei lá que besteira, e de lá ter um prestigião no Brasil, e depois vir recolher os aplausos aqui no Brasil. Aqueles dos senhores que conheceram meninos assim levantem o braço para eu ter uma ideia disso. Os senhores estão vendo, é caudaloso.
Essas imaginações infantis se prolongam depois pela mocidade e pela idade madura. O indivíduo fica moço e tem o problema da sua própria localização na sociedade. E a sociedade é constituída de tal maneira que sempre há uma camada mais alta. E quando o sujeito é da mais alta das mais altas camadas, ele acha cacete pertencer àquela camada e pensa numa camada mais baixa, mas nunca há satisfação completa na classificação social do indivíduo.
Se o indivíduo é da pequena burguesia, para ele enche a medida o rapaz da média burguesia que ele vê passar num Volkswagen perto dele, mas se ele é da média burguesia e vê passar um rapaz da alta burguesia diante dele, ele fica ralado de vontade de ser aquele rapaz, mas o rapaz mais rico da cidade “X” acha que a cidade onde ele mora é poca e que ele deveria morar na cidade “Y” ou “X” vezes cem, onde ali ele encontraria o ambiente para verdadeiramente morar. E esse rapaz vai pensar: Ah! Ah! Ah! a coisa chega conforme o estado de espírito, chegava no meu tempo a Paris, mas era a mania de morar na Europa. Na Europa queria ser um grande homem na Europa, e assim para a frente. Até o indivíduo colocado nas culminâncias da organização social.
Então, esse indivíduo seria por exemplo – em tempos idos e vividos e que os senhores compreenderão que eu não alcancei – seria ser por exemplo Talleyrand. Talleyrand tinha essa expressão curiosa: “Frequentar a mais alta aristocracia, que tédio; não frequentar a mais alta aristocracia, que tragédia”…
É bem isso. Quer dizer, as mais altas classes sociais, quanto mais a gente sobe, mais facilmente corre o risco de elas se tornaram cacetes. Por uma razão muito simples: é que elas são círculos minúsculos de pessoas que não se recrutam a si mesmas pelo atrativo recíproco, mas apenas pela posição que têm. E que, portanto, se acham cacetes. É forçoso. Eu não sei se estou me exprimindo bem. Agora, não pertencer àquela roda é uma tragédia para quem tenha nascido em circunstâncias de pertencer àquela roda. Pertencer é uma caceteação que não tem fim. É uma coisa que a gente pode perfeitamente compreender, e que o suspiro de Talleyrand exprimiu perfeitamente.
Se esta descrição muito sumária da situação é válida para os senhores, então nós podemos dizer que a vida normal de um homem se compõe de dois elementos diversos.
Em primeiro lugar, de alguns elementos francamente bons, favoráveis, auspiciosos e dignos de aprovação. O mocinho, por exemplo, tem boa saúde, vive confortavelmente, seus pais são bons, seus irmãos são bons, o ambiente que ele vive é bom, mas não é paradisíaco, e tem fricções de temperamento com ele. Fricções que podem às vezes ser sérias. Ou seus primos, enfim, o ambiente dele é assim. O colégio etc., tem fricções sérias.
Então os senhores estão vendo que a vida dele se compõe de alguns aspectos muito aceitáveis, e compõe-se depois de outros aspectos que são inteiramente recusáveis.
Ou se não é bem assim, ele não tem saúde boa, ele é meio pobretão, mas depois ele tem suas compensações em outro lado: ele é muito inteligente, e, portanto, tira as primeiras notas do colégio; ou ele é muito engraçado e muito interessante, ele forma rodas de pessoas em torno de si; ou então felicidade que eu invejaria muito menos e que eu nunca quis para mim, dela não seria capaz, mas nunca quis para mim – joga muito bem futebol e tem então o prestigio futebolístico especial, que ao menos no meu tempo tinha o menino que jogava bem futebol, eu não sei se isto ainda hoje é assim, e assim por diante.
Mas a média dos homens tem uma vida em que se compensam os aspectos positivos e os aspectos negativos. Mas o homem, para aceitar esses negativos, tem que lutar duramente, porque esses são aspectos muito negativos, ou em si mesmos ou não em si mesmos, mas porque a psicologia do homem torna negativos aqueles aspectos. Quer dizer, o homem é torto, ele é errado em virtude do pecado original, em virtude dos pecados que ele cometeu pessoalmente, ele deformou o seu temperamento, deformou o seu modo de ser, e implica com coisas com as quais ele não deveria implicar, e que constituem para ele uma tortura.
Então há duas razões que levam o homem a ter uma tragédia na vida: uma é que a vida não é feita para o homem ser inteiramente feliz. E a segunda é que o homem não é feito para ser inteiramente feliz na vida. O homem depois do pecado original.
Essas coisas se somam e o homem tem coisas duras, rudes, difíceis, complicadas para carregar, ainda quando ele pareça um homem feliz, e no fundo deva ser chamado um homem feliz. Felicidade comporta isto. Não sei se está claro. Ou se alguém acha que eu deva me exprimir melhor.
Bem, se isto é assim, então os senhores têm um problema que nasce e que é o seguinte: como é que um homem que aguenta uma coisa dessas pode verdadeiramente ser chamado feliz? Porque parece que isto não é felicidade. Eu dou um exemplo e os senhores compreenderão melhor.
Os senhores imaginem um homem que é coxo de uma perna. Eu conheci um caso assim, um sujeito com uma perna muito desigual da outra. Esse até foi meu colega no São Luís. Morreu há alguns anos atrás. Uma perna muito desigual da outra e usava um calço mais ou menos dessa altura para poder andar, mas como a perna menor era muito atrofiada, esse calço era pesadíssimo para impedir que a perna se atrofiasse mais. E ele era obrigado, portanto, a arrastar aquele peso enorme.
Os senhores imaginem esse rapaz dando uma voltinha para se distrair, por essas ruas. De um lado distrai, é agradável estar andando pela rua. De outro lado, entretanto, arrastar aquele calço é uma coisa desagradável, e pode ser até coisa muito molesta. De maneira tal que para o indivíduo o passeio ao mesmo tempo corresponde a uma necessidade de alma imperiosa – ele às vezes precisa sair de casa – e corresponde por outro lado, a um sacrifício que é de arrastar aquele peso atrás de si.
E assim poderia ser considerada a vida de um homem que pode ser considerado feliz; é um andar através de circunstâncias algumas das quais aceitáveis e até aprazíveis, e outras muito difíceis.
É feliz o homem que faz como aquele aleijado que eu conheci: era habitualmente alegre, corajoso, arrastava a perna dele com força para a frente, tinha desenvolvido muito a outra perna que era uma pernaça colossal para carregar o corpo dele, enfim para fazer o serviço inteiro. Ele arrastava aquela sola enorme dele para a frente, dava risada, conversava, tinha uma companhia potável, e vivia normalmente no meio de seus colegas, nunca fazendo uma queixa e nunca permitindo que alguém se lembrasse do infortúnio dele, para não se tornar molesto a ninguém.
Quer dizer, o que ele fez? Ele se resignou. Tomem bem nota do sentido da palavra.
Ele se resignou e enfrentou a situação. Por causa disso ele até certo ponto habituou-se a ela. Debaixo de outro ponto de vista ele compreendeu que devia carregá-la de qualquer jeito e tentar fruir o que ele tinha de bom sem se deixar abater pelo que ele tinha de ruim. Com isso ele viveu. Viveu, casou-se, fez algum dinheiro. Fez uma carreira não propriamente como funcionário público, mas ele fez-se nomear diretor de uma alta repartição pública, onde – eu não conheço pormenores da vida dele, mas sou levado a achar que ele serviu bem, que ele deu bem conta do recado dele – e depois morreu inopinadamente, está acabado, não foi de desastre nem de nada, não sei de que doença foi, quando eu cheguei da Europa ele estava morto.
Esse homem praticou a virtude em termos naturais – e não sobrenaturais, porque ele não tinha religião, ao menos não notei que tivesse – ele praticou a virtude da resignação.
O que é a virtude da resignação?
É o seguinte: o indivíduo se coloca diante de determinada situação e diz isto – eu vou fazer o raciocínio terreno, depois eu vou fazer o raciocínio sobrenatural, mas segundo uma sabedoria puramente humana ele disse isto:
“Eu tenho esse defeito, e vou carregar esse defeito a vida inteira, já está visto que eu não vou consertar esse defeito; primeiro ponto.
“Segundo ponto: eu não vou me matar. Nem é o caso de eu me matar só por causa disso. Logo eu tenho que aceitar que isso é assim como uma coisa normal a respeito da qual eu não vou choramingar. É, é um fato consumado que é, e está posto isto assim, eu vou, portanto, adaptar-me a esta ideia, quer dizer, tomar como uma coisa positiva, sobre a qual eu não vou estar fazendo queixas a Deus, não vou ter pena de mim, não vou me julgar um pobre coitado, mas enfrento a vida. É, tem que ser, eu vou viver sem choramingo, vou viver sem fraqueza, vou enfrentar. Para isso minha alma tem força. Para isso meu corpo tem força. Carrego a sola de sapato desse tamanho como provação da alma e provação do corpo. Vamos para frente num passo tão rápido como o dos outros. Esse esforço eu arranco de dentro de mim mesmo. Eu presto esse esforço.
“Mas eu serei mais feliz assim do que vivendo lamuriento, triste, aborrecido, inconformado, queixando-me contra Deus, queixando-me contra todos, pateando, dizendo: fulano, vem cá, deixe-me apoiar em você, me dá o braço porque está muito pau, ai como ou sou infeliz. Nada disso. Eu vou com força de alma, suportar essa situação.
“Mais ainda: eu sei que está natureza humana habitua-se a tudo e que a todas as coisas o homem se habitua. Se o homem se habitua a todas as coisas é positivo que para ele, a coisa à qual ele se habituou, dói menos do que aquela que ele não se habituou. O homem é feito de tal maneira que a coisa ruim e desagradável a qual eu me habituo, eu acabo sentindo pouco, ou não sentindo nada. Como a coisa à qual eu me habituo ou acabo também não gozando ou quase não gozando nada”.
Os senhores querem ver isso?
Eu tive um primo que era muito asmático. E eu assisti a uns acessos de asma do pobre coitado. Era uma coisa horrorosa. Ele tinha uma espécie seringa com vaporizador e ah, ah, e respirava e sossegava, e lá ia aquilo para a frente. Era um drama.
Eu via que quando ele acabava o acesso de asma, e ele começava a respirar normalmente, ele achava aquela respiração uma delícia. E eu pensava de mim para comigo: você Plinio tem essa respiração que ele tem de modo intermitente. Você tem de modo normal. Veja como ele se alegra com os primeiros austos de ar normais que seus pulmões ingerem. Como você não se alegra. Quem é mais feliz? É ele que conhece a alegria de respirar ou você, para quem respirar se tornou uma coisa tão banal, que você dirá: tal será que eu não respire bem! É claro que eu vou respirar bem! E já perdeu o gosto da boa respiração?
Quer dizer, o hábito cria uma virtude, e cria um vício. A virtude que ele cria é nós nos habituarmos, sentirmos pouco os nossos infortúnios; o vício que ele cria é nós não sermos capazes de gozar daquilo que nós habitualmente temos.
Eu me lembro – os senhores me desculpem de falar de minhas recordações, mas é que para exemplificar eu tenho que exemplificar com que eu vi, e, portanto, como sou eu que vi eu tenho que falar de mim – eu me lembro que em frente de minha casa na rua Barão de Limeira, quando eu era menino, havia toda uma fileira de casas de gente pobre e que até prestava serviços à minha família, minha família protegia, eles eram muito dedicados, etc., etc. e havia um rapaz de minha idade, exatamente de minha idade.
E uma ocasião, eu não sei que serviço ele prestou me na rua, apanhou alguma coisa para mim, não me lembro mais o que foi, uma coisa menos fugaz do que isto, foi um serviço qualquer que ele me prestou e que eu agradeci.
Era gente um pouco mais colocada, a quem não ficava bem eu dar um dinheiro para agradecer. Ele ficaria ofendido. Então eu agradeci de modo muito amável. E como morávamos em frente, habitualmente quando eu saía de minha casa e via ele na rua, eu cumprimentava ele. É natural. Fiquei conhecendo por um incidente qualquer – e eu sempre fui da teoria, que suponho que seja da própria doutrina católica, que não se deve negar cumprimento a ninguém. A gente não deve cumprimentar todos igualmente, quer dizer, do mesmo modo, com o mesmo cumprimento, mas a gente deve cumprimentar de um modo afável a todo mundo, com um respeito maior ou menor a este ou aquele, mas de um modo afável a todo mundo – de maneira que eu que via muitas vezes esse rapaz, nunca, absolutamente nunca deixava de cumprimentar o rapaz.
E como era o tempo em que todo mundo andava de chapéu na rua, eu saía e cumprimentava ele, ele tirava o chapéu. Quando ele me tirava o chapéu, eu tirava o chapéu menos para ele do que ele tirava para mim, mas tirava o chapéu também. E ia correndo pegar o bonde, pegar o automóvel, pegar o taxi, qualquer coisa assim e saía. Mas eu percebia que ele achava uma delícia ser Plinio Corrêa de Oliveira. E que ele achava que descer – que era a única coisa que ele via de minha vida – descer uma escada de mármore com uma balaustrada, com colunatas, com uns jarros, com uns leões, ir passear num jardim protegido por uma grade trabalhada, e ir correndo tomar um taxi – coisa para mim a mais banal possível, banal como, me perdoem o prosaísmo, é assoar o nariz – que para ele era uma coisa bonita, e que ele teria loucura para fazer aquilo que eu estava fazendo.
Eu naquele tempo não refletia bem, mas depois cheguei a cair em mim, que eu não sabia gozar de uma coisa que de fato era um pouco deleitável. Ele exagerava o deleite disso, mas era um pouco deleitável.
O homem verdadeiramente resignado não só se habitua a carregar o seu infortúnio, mas ele se habitua a saborear as coisas boas às quais ele se habituou, e a respeito das quais ele já não sente o sabor. Ele compreende que não sentir sabor disso é um vício. E que pelo contrário ele deve, cada vez que ele vê uma coisa deleitável, estar em condições de degustar aquilo, por familiarizado que ele esteja com aquilo, ele deve estar em condições de degustar. E que por esta forma é que ele mantém o verdadeiro equilíbrio de sua alma.
Os sonhadores de vidas quiméricas, de felicidades que não existem, são homens fracos e sem resignação. O homem verdadeiramente forte é o que toma diante da realidade esta posição que eu estou declarando aos senhores.
E por causa disso eu fiz um esforço para degustar em minha vida todas as pequenas coisas que a Providência permite que existam em torno dela, mas uma por uma. E de tal maneira que era mais ou menos como se eu pela primeira vez estivesse degustando.
De maneira que eu procurei várias vezes em minha vida deleites agradáveis, várias vezes Nossa Senhora permitiu que eu os tivesse, e os senhores sabem que eu sou de uma natureza – digamos assim, a palavra não está bem empregada, mas digamos – truculenta.
Quer dizer eu gosto de, por exemplo, de panoramas enormes, de coisas colossais, se é por exemplo para ver uma coisa, ver uma coisa magnifica, estupenda! Se é para ter um grande jantar é qualitativamente e quantitativamente um super jantar! Eu sou muito enfático em toda a minha pessoa. Quando as circunstâncias se apresentaram eu degustei o que pude, mas sempre compreendendo que ou esta degustação não estancava em mim a degustação da normalidade da vida ou ela estava me viciando. E que era preciso conservar esse frescor de alma por onde a menor coisinha produz uma satisfação, uma degustação, uma alegria. Do contrário nós estamos nos viciando e nos intoxicando com a nossa própria felicidade.
A vida vista assim, meus caros, continua uma tragédia – eu sou tão truculento que bati com o pé no chão – continua uma tragédia. Precisa não ter ilusão a esse respeito. É a tragédia, primeiro, suportável para o varão forte. E é forte quem quer!
Em segundo lugar, é muito mais suportável do que a vida do indivíduo que não é assim, que vive sonhando com situações que não terá, com diversões que não terá, com honrarias que não terá, com prestígio que não terá, e acaba sendo o “Doutor fracassado” porque fracassou aos olhos de si próprio e não só dos outros. Esse é o zero, esse é o nada!
Mesmo porque, sempre que ele conseguir para si alguma coisa, ele logo depois quererá outra, ele não vai ter um minuto de paz nesta terra, ele não está preparando a alma dele para a paz no Céu. A paz é outra: é carregar essa tragédia e enfrentá-la, está acabado. Assim é que se vive!
Eu posso dizer aos senhores que eu conheci um número incontável de pessoas que viciaram o seu espírito nisso: a incapacidade de se habituar seriamente ao próprio infortúnio – primeiro ponto.
Segundo: o desejo contínuo de uma vida de sonho que não é a vida para a qual nasceram e que não é a vida que a Providência quer lhes dar.
Os senhores me dirão: “Mas então o senhor, Dr. Plinio, é contrário a que um homem tenha uma legítima ambição, é contrário a que um homem por exemplo queira ser um grande ricaço, ou um grande escritor, uma grande coisa qualquer?”
Eu digo: desde que o homem não tenha a nossa vocação, não, não sou contrário. É o melhor da vida terrena da acordo com possibilidades que Deus lhe deu, e desde que ele faça isto desapegadamente, não sou contrário. Mas na nossa vocação nós devemos dar tudo, e não devemos conservar nada para nós. Se nós não fizermos isto, nós estamos errando, estamos fora das vias de Deus.
No caminho dos outros, quando o indivíduo é assim, e ele procede como eu disse há pouco, um homem resignado, ele faz para si um plano razoável. Ele dirá por exemplo o seguinte: eu sou um homem inteligente –– não estou falando de mim, eu não teria coragem de dizer isto aqui –– eu não sou inteligente? Sou. Sou um homem que tenho capacidade de trabalho? Tenho. Sou um homem que posso galgar uma alta posição? Devagar. Uma posição mais alta que a sua, é normal. Uma posição muito mais alta do que a sua, tem-se visto alguns que com a mediania sua, galgam. Talvez você galgue. Galgar uma posição suprema sendo você como é, é muito pouco provável. Acontece. Como acontece que um homem andando pela rua encontra de repente uma nota de dinheiro, ou encontra uma pérola, encontra uma joia, acontece, mas é muito raro.
Então faça um plano para a vida em que você procure ser o que normalmente será, mas tirando proveito das ocasiões que se apresentem, para sem perda de fôlego, sem ambições que devorem, mas com sobriedade, procurar ser mais do que o normal.
Se der certo, agradeça a Nossa Senhora; se não der, já esteja com a alma pronta e preparada para contentar-se com o que você é. Assim você levará uma vida sem tortura, e poderá ter a felicidade do homem resignado. Resignado com o que? Em que você não é Winston Churchill. Quer dizer, não é o homem mais inteligente de seu tempo, nem mais interessante de seu tempo, nem mais agradável de seu tempo, nem mais representativo de seu tempo, e que, portanto, “churchilar” não pode. Pronto, acabou!
Como aquele manco não podia andar normalmente. Não pode! O que adianta? Mete a viola no saco e faz como pode. Está acabado. Aguente a vida como ela é e não venha com bobagem, não venha com fantasias nem delírios. Isso é a posição normal do homem no terreno natural.
Essa posição não é ainda vivível, porque a vida do homem vista no campo meramente natural ainda é uma vida invivível. Eu vou mostrar aos senhores daqui há pouquinho o papel do sobrenatural dentro do problema o qual nós estamos tratando. Eu queria perguntar aos senhores se o que estou dizendo é claro ou se algum dos senhores me queria fazer uma pergunta.
Do que eu estou dizendo, meus caros, deveria decorrer exame de consciência! Deveria haver um exame de consciência em que a gente se perguntasse duas, três vezes por dia se faltou resignação, se choramingou seu infortúnio, se aceitou com moleza uma coisa má que aconteceu, se está na disposição de aceitar bem e de fruir as coisas boas que tem, se está disposto até a renunciar a essas coisas boas se um infortúnio vier e obrigar a renunciar, mas carregar a vida sempre com ânimo!
Isto deveria ser um objeto de exame de consciência. Pura e simplesmente um exame de consciência.
Agora, que papel tem o sobrenatural dentro disto?
Tem o papel que os senhores estão vendo desde logo. O sobrenatural nos mostra a razão de ser desta tragédia. Quer dizer, eu sofro esta tragédia nesta vida, mais depois terei a vida eterna. E eu não nasci para esta vida, eu nasci para a vida eterna. Em face dessa eternidade, a minha vida por mais longa que seja – a vida terrena – ainda vai ser curta. Isto aqui é um minuto, é um nada. Quando eu vir isto do Céu, eu terei a impressão de que minha vida passou como um hiato. E eternamente eu serei feliz.
Mas, além disso – a fé me dá… a fé faz parte da vida sobrenatural, é a raiz da vida sobrenatural, mas não se confunde, não é toda a vida sobrenatural, eu estou falando da fé – a Fé me revela também que eu pequei, que Adão e Eva pecaram, que meus antepassados pecaram, que eu peco e que eu preciso expiar diante de Deus o mal que eu fiz, e que fizeram os meus maiores. E que por causa disso, é justo que eu sofra. E eu devo ter a alegria do sofrimento, própria àquele que sente que a justiça de Deus está se exercendo sobre ele.
Todos os escritores teólogos dizem que as almas do purgatório sofrem muito, mas sofrem em paz. As chamas do purgatório são tais que em comparação com elas, as chamas da terra é como uma pintura, dizia Santo Afonso de Ligório. Quer da chama do purgatório, quer do inferno. Pois bem, as almas do purgatório estão em paz naquela chama terrível, mas que queima a alma. Estão em paz à espera do momento de serem chamadas para o Céu. Porque elas compreendem que pecaram e elas têm uma alegria de recompor a justiça, expiando o mal que fizeram.
Nós temos nos tempos de vida católica muitas vezes exemplos de homens, de senhoras que levaram uma vida de pecado. Chega em certo momento, às vezes no auge do pecado –– ainda em nosso século, uma famosa atriz francesa Yvonne Printemps [1894-1977], que morava perto de um Carmelo e se fez carmelita. Bem, ela compreendeu, ela pecou, ela era atriz da Opera de Paris. Os senhores sabem todas as conotações que na imensa maioria dos casos essa profissão traz consigo. Ela pecou. Quando ela estava no auge da carreira ela disse o seguinte: “eu vou expiar. Esse gáudio, essa volúpia que eu roubei de Deus pecando contra Ele, isto eu vou restituir sofrendo, expiando”. E foi para o Carmelo para expiar. E sofreu mesmo, mas tinha aquela paz de alma, aquela satisfação de alma de quem diz: “eu estou apanhando, mas devo mesmo! Oh que coisa boa!”
Quer dizer, isto a Fé traz ao homem.
Mas a Fé traz ao homem também outra ideia: é expiar pelos outros. Outros estão indo para o inferno, outros estão se perdendo, a Santa Igreja Católica, a Civilização Cristã estão na situação para lá de miserável que eu vejo. Deus não socorre por causa dos pecados dos homens! Genuflexão: “aqui estou eu minha Mãe, disposto a sofrer, aceitando tudo quanto eu sofro para expiar esses pecados, para que as almas não se percam. Sobretudo para que Vossa glória receba uma reparação e para que Vós intervenhais na terra e Vós restaureis o vosso Reino”.
Quer dizer, essa alegria da vítima expiatória que se imola para a glória de Deus, é uma alegria enorme dentro de todas as tristezas.
E quem acompanha por exemplo a vida de uma Santa Teresinha do Menino Jesus, percebe isto profundamente: ela estava no fim da vida dela tão, tão provada, tão sofrida, que dizia que não se deve deixar perto dos agonizantes nenhum remédio que bebido em quantidade grande possa se transformar em veneno. De tal maneira a vida pesa para alguns agonizantes. Os senhores estão vendo sem nenhum consentimento dela, nem sombra de consentimento, qual era a forma de tentação com que o demônio a perseguia.
Ela dizia o seguinte: “apesar disso eu quero o que está me acontecendo. E eu morro na inteira aceitação, eu sei que eu nasci para isto, eu sei que vou morrer para o que eu nasci, a minha vida deu certo dentro do meu sofrimento tremendo. Eu vou até o fim, e até o fim eu irei!” Há nisto uma forma de paz de alma que se revelou de modo magnifico no último momento da vida dela.
Antes de eu me referir mais uma vez a este último momento eu lembro aos senhores um episódio do fim da vida dela: alguém para entretê-la um pouco foi mostrar a ela uma imagem creio que de Nossa Senhora. E ela olhou para a imagem com muita atenção, e a freira que mostrava a ela a imagem disse: “com quanta piedade a senhora olha para a imagem”. Diz ela: “minha irmã, a senhora se engana, eu não estou olhando esta imagem com piedade, eu estou apenas procurando achar bonita a imagem, porque eu estou num tal estado de aridez, que eu não sinto piedade nenhuma olhando esta imagem”.
A gente via que mesmo interiormente falando ela estava como se Deus a tivesse abandonado. Ela estava como Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz.
No último minuto da vida dela, ela teve o que durante a vida inteira ela não teve: um êxtase. E ela estava tão fraca, debilidade por uma tuberculose no mais alto grau, levantou-se de pé na cama com uma alegria única e deu um brado: oh meu Deus! ou alguma coisa assim, e depois caiu morta.
Quer dizer, no último instante Deus fez ver aos homens o mundo de paz que a inundava e que ela mesma não sentia. E fez com que todo mundo percebesse como aquela vida horrivelmente sacrificada era a vida que tinha dado certo, estava sendo vivida pelo que tinha que ser vivida.
Quer dizer, este é o poder do sobrenatural na vida do homem: dar essas convicções que levam o homem a essa atitude. Dá mais do que isto, dá uma força que nós não temos para aguentar isto.
Eu tenho certeza que enquanto eu falo, muitos dos senhores estão pensando o seguinte: se algum dia Deus me pedir isto eu não terei forças. Não desanimemos. Porque a doutrina católica nos diz que para as dificuldades extraordinárias da vida vêm as graças extraordinárias.
Por exemplo, se entrasse aqui um leão para devorar um de nós, é possível que todos nós não tivéssemos coragem de enfrentar o leão, mas se fosse para perseverar na Fé, viriam graças extraordinárias nessa ocasião, e nós aí teríamos recursos para enfrentar o leão. Tratemos de ter em cada momento da vida o nível de generosidade que as circunstâncias nos pedem e nós prepararemos a nossa alma para aceitar as graças extraordinárias nas ocasiões terríveis da vida.
Mas a vida de todos nós passou, passa e passará por ocasiões terríveis. É preciso que nós peçamos desde já a Nossa Senhora que nos faça aceitar essas ocasiões. E que até nos dá vontade dessas ocasiões se for o caso, se esse for o desígnio dEla. Aceitemos tudo, com força e resignação.
O que acontece?
É que para a maior parte das almas, a graça atua no interior delas e dá uma certa felicidade que são os momentos de consolação, são os momentos de “flash”, mas não são só isso. São as horas de um certo bem estar interior, que vem como uma luz muito discreta, muito nobre, muito alta, e compensa na alma o sofrimento que ela sente, embora não elimine este sofrimento.
Eu me lembro que eu vi um santinho muito popular e do ponto de vista artístico o mais mal feito possível, mas que exprimia este pensamento de um modo muito bonito: Nossa Senhora sentada ao pé da Cruz, o calvário representado como o alto de uma montanha, e Nossa Senhora sentada junto a uma pedra ao pé da Cruz, numa atitude de meditação longa, assim como quem pensava, e pensava, tão triste no olhar, mas tão consolada em toda a atitude do corpo, tanta paz, tanta distensão, tanta fé, que a gente via que Ela tinha um bem estar dentro de si apesar do oceano de tristeza que Ela estava considerando e de Ela ter aceitado de continuar no mundo sem ver o Filho dEla diariamente.
Quer dizer, as saudades que Ela deveria sentir deviam ser umas saudades tremendas! Aceito, mas naquela paz que a graça dá e que é como uma luz violácea, uma luz lilás que penetra no interior da alma do homem e que dá ao homem uma certa segurança, uma certa tranquilidade, uma certa normalidade, mesmo dentro das situações marcadas pelas mais duras separações ou pelo mais horríveis revezes, mesmo dentro das situações mais pungentes.
“Ecce in pace amaritudo mea amaríssima” disse o profeta Isaías, se não me engano, de Nosso Senhor, mas essas palavras se aplicam a Nossa Senhora também “eis na paz a minha amargura muito amarga”, mas está na paz. É uma espécie de auxílio especial que a graça introduz dentro da alma e que é a luz sobrenatural que ajuda o homem a ser resignado. É a resignação vista no seu lado sobrenatural. É, tem que ser assim, aceitemos bem, aceitemos com tranquilidade.
Quem pudesse ver Nossa Senhora rezando… parece que no prédio do Cenáculo enquanto Nosso Senhor estava sepultado, teria uma ideia disso. Outra pessoa que teria uma ideia disso é Nossa Senhora no momento de morrer. A morte é um horror. Ela quis morrer. Nosso Senhor ofereceu a Ela de Ela ser levada ao Céu em vida, mas para imitar o Divino Filho dEla, Ela quis morrer.
Eu não conheço nada de mais belo do que chegada a hora da morte, Ela com toda a doçura, com toda a paz, fechar os olhos e rezando, esperar o momento em que seu ser fosse destruído. Caminhando na doçura, na simplicidade, na facilidade, na bondade para a destruição de si mesma, à espera de que Deus consumasse nEla o sacrifício. E o sorriso dEla quando Ela sentiu aquilo que nós poderíamos chamar a foice terrível da morte começou a cortá-la. Logo depois estava tudo preparado para a alma dEla ser recebida no Céu com alegria e ressurreição. Ela subiu com o próprio corpo para o Céu, levada pelos anjos, assunção etc. etc, grande, grande, grande apoteose! Mas antes, essa paz: me toca a mim agora sofrer isto, meu cálice ainda não está cheio, está cheio de tudo quanto eu sofri, inclusive da morte de Meu Filho Divino, e depois esses longos anos de separação, esses anos de decadência da Igreja.
Ela ofereceu a vida para salvar a decadência da Igreja nascente e Deus disse que não, que queria que Ela continuasse viva na terra para lutar pela Igreja. No fim, Ela morreu.
Quem sabe se Ela, ao morrer, pensou em cada um de nós que estamos no auditório, e Ela ofereceu a vida dEla como Nosso Senhor Jesus Cristo ofereceu por todos os homens, portanto, por nós. Quem sabe? É uma coisa que é possível.
De qualquer maneira, aquela paz, aquela tranquilidade, como um cordeiro que é imolado sem fazer protesto nenhum. Assim morreu resignada e na paz, a Mãe do Cordeiro de Deus.
Vamos tomar um contraste tão violento que chega a ser estúpido. Mas os senhores imaginam a Jaqueline gozando agora do dinheiro do marido que a deixou, provavelmente sem saudade nenhuma dele, porque ela é o que ela é.
Comparem com a paz de Nossa Senhora, na pobreza e na morte, qual das duas é feliz? Um teve tudo que o mundo podia dar. Outra não teve –– ó expressão brutal ! –– a não ser Nosso Senhor Jesus Cristo e a Fé. Qual foi mais feliz?…
É esta felicidade, a felicidade das almas que são fáceis de se imolar, que se entregam ao sofrimento e à dor como um cordeiro, como verdadeiros seguidores do Cordeiro de Deus.
Aí está o que eu teria que dizer a respeito de como o homem resignado leva a sua vida.
Eu sei que no meio disso entraram coisas que os senhores já sabiam. Eu sei que entraram, portanto, banalidades. Não seriam também verdades esquecidas? E verdades que precisariam ser reabilitadas diante de nossa atenção, havendo alguém que com coragem as lembrasse?
Agora, qual é o “lendemain” [dia de amanhã, o futuro próximo] dessas conferências?
Elas vão ser ouvidas e depois provavelmente –– eu digo resignadamente –– provavelmente vão para o lixo. Quer dizer, vão ser guardados e ninguém mais se lembrará delas… Ah, ah, ah! e depois ninguém mais se lembra.
Por quê? Porque nós não temos o hábito de anotar as coisas necessárias e rever as nossas anotações para efeito de nossa vida espiritual! Nos falta muitas vezes seriedade para isto. Levamos a vida de pagodeira, não temos bastante seriedade para isto.
Eu peço a Nossa Senhora que, se for do desígnio dEla, faça com que intensificando algum tantinho a tragédia em cada um, Ela obrigue, nos obrigue a sermos sérios. O homem que nunca passou por uma grande dor, não é sério! É um mondrongo [abobalhado]! Não é sério. Que se for esse o preço, Ela nos faça passar por alguma dor, contanto que depois nós tomemos a vida a sério, tomemos nossos apontamentos a sério, levemos uma vida espiritual com vigilância, e com a capacidade de não fazer dessas conferências um frêmito de momento, uma causa de um frêmito de momento, mas fazer delas uma despretensiosa recapitulação de princípios muito sabidos e sobretudo muito esquecidos, e que por isso precisam ser, com insistência, lembrados.
Aí está, meus caros, numa hora que infelizmente também se superou a si própria, são meia noite e doze, o que eu tinha para dizer aos senhores sobre isso.
Se os senhores tiverem dúvidas, tiverem perguntas me mandem por escrito, na reunião que vem se Deus quiser eu tenho a intenção de encerrar o assunto, terminar o assunto. Portanto, terça-feira respondo a essas perguntas e depois nós trataremos de outra questão. E com isso eu dou por encerrada a reunião de hoje à noite.