Bécassine ou sociologia para crianças e… desintoxicação para adultos

Santo do Dia, 9 de junho de 1984, sábado

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

França, 1913 – Como dar ensinamentos para uma criança, de modo que a entretenha, distraia e lhe proporcione conhecimentos úteis para toda a vida, sobre as diversas regiões “de la France” e suas respectivas características, mas também a respeito do modo de se comportar nas mais diferentes situações? Estas são algumas das utilidades que oferece a coleção “Bécassine”, publicada por Gautier et Languereau / Hachette, e que pode ser encontrada na internet para aquisição, ou então em livrarias de obras usadas, e que é vivamente recomendável.
Em “Santo do Dia” de sábado dedicado aos mais jovens da TFP, Dr. Plinio comenta algumas poucas ilustrações do primeiro volume da mencionada coleção.
“Eles não concebiam, naquele tempo, o conflito de interesses entre o patrão e o empregado. Quanto mais o patrão subia, mais ele elevava o empregado, e mais o empregado se sentia honrado. (…) O marquês fala como se não percebesse que está falando com um camponês e como se tivesse diante de si outro marquês. E ao mesmo tempo com muita bondade, dando explicações com muita bondade. De maneira que reina, entre eles, uma concórdia completa, que é o contrário da luta de classes que os comunistas querem fazer a todo o momento“.

 

Aqui está a Bécassine. Esta é a capa do álbum chamado “A Infância de Bécassine”. O que é que há nessa capa? Um mundo de intenções e de coisas que fazem sorrir…

Primeiro, a própria Bécassine. Como os senhores veem a Bécassine é uma pessoa bem diferente dos meus inteligentes “enjolras”, dos meus ágeis, dos meus combativos , dos meus fogosos “enjolras”. Bécassine representa o tipo ideal do camponês daquele tempo. Qual é o tempo? Eles situam a coisa, mais ou menos, entre 1910 e 1914, portanto, em plena Belle Époque, antes do começo da I Guerra Mundial.

No período em que uma pessoa que tem o gosto de lhes falar tinha assim 2, 3, 4 anos… é neste período que esta coisa apareceu, e os camponeses desta parte muito pitoresca da França, chamada Bretanha –  da qual eu direi uma palavrinha daqui a pouco para explicar o contexto  –  se vestiam assim.

Por que isso? Na Europa, a História tem uma durabilidade e uma consistência da qual nós americanos do sul, do centro ou do norte – temos dificuldade de nos dar ideia. A França foi-se constituindo como ela é hoje, pelo casamento dos reis da França com moças herdeiras, feudais, das principais partes da França de hoje. A Bretanha foi das partes que mais resistiram, era uma parte muito regionalista do atual território francês: eles tinham seus costumes, sua língua, tinha uma origem racial que não é bem exatamente a do povo francês, uma mentalidade, uma psicologia diversa, eles tinham um feudo fortemente autônomo e não queriam se fundir com a França.

Afinal, no século XV essa fusão se fez pelo casamento de Ana, duquesa de Bretanha com o rei da França. Então, os reis da França passaram a ser duques da Bretanha. Mas a condição foi – a condição no século XV, antes de ser descoberto o Brasil – que a França não procurasse absorver a Bretanha e deixasse a Bretanha com os seus costumes, com o seu modo de ser tradicional. A Bretanha era muito tra-di-cio-na-lis-ta!

Resultado é que a zona mais tradicional dos países naquele tempo era a zona onde menos penetrava as vias de comunicação. Não havia rádio, não havia televisão, havia jornais e havia trens. As estradas de automóvel quase não existiam.

Os trens tinham um contato superficial com a cidade, que os senhores conhecem [como se dá com] as estradas-de-ferro de hoje. Os jornais eram feitos para pessoas que sabiam ler e escrever, evidentemente. E o saber ler e escrever não era muito geral lá. Naturalmente sabiam escrever o nome: abe-aba… essas coisas sabiam. Mas o ter o hábito de tomar um jornal, ler e entender é uma espécie de alfabetização multiplicada pela alfabetização. Eles não tinham esse hábito.

(…) e o resto não lê!

Quer dizer: não é comum ler jornal. Então, naquela Bretanha, servida por poucos trens  –  trenzinhos raquíticos, asmáticos e velhos – num canto da França, Bretanha pitoresca e tradicional… neste nosso século ainda, os camponeses se vestiam assim.

Os senhores prestem atenção na roupa da Bécassine: É uma roupa que indica o estado camponês. Indica simplicidade, indica fartura, mas indica ao mesmo tempo, assim, uma qualquer coisa rústica.

Os senhores olhem o rosto de lua dela. É uma criança que não sofreu nenhuma necessidade de víveres, nem nada. Foi bem tratada. Olhem a touquinha que ela tem. É uma touquinha de linho, muito bem lavadinha e bem passada. Olhem essa espécie de asas do lado, supõe um pouco de goma para manter aquilo direito etc., supõe um pouco de cuidado.

A roupa dela é bem cuidada, o busto é coberto por um tecido de uma camisa branca cujas mangas aparecem, cuja gola aparece, mas também por uma espécie de mais grosso de um verde profundo que não deixa de ser interessante. A gola e o que aparece das mangas é muito branco. O gosto geral da coisa é indiscutivelmente um vestido engraçadinho e muito feminino.

O avental no meu modo de entender, é lamentável. É um pano de lavar roupa, de lavar pratos de cozinha.

Agora, olhem o guarda–chuvão! É um guarda–chuvão abundante que a cobre contra a chuva numa circunferência larga. Não economizaram pano. O cabo é um cabo de madeira esculpido com de uma espécie de cabeça de pássaro ou qualquer coisa, lá em cima… Mas olhem a ponta como é grossona e como o conjunto do guarda–chuva é plebeuzão. Plebeuzão, mas não proletário. É grosseirão, tem um pano grosso demais, é de um vermelho ligeiramente idiota, aquela ponta grossona é um tanto tosca, mas no total, é um objeto que se olha sorrindo.

Agora, olhem para as meias brancas e os sapataços, indicando uns pelões… muito próprios da origem plebeia. As estirpes nobres tendem a ter pés “plutôt” [mais bem] pequenos e finos. Pelão chatão, grandão, que não há sapato que caiba… não é assim que nós imaginamos o pé de um rei ou de uma rainha.

Ali está na sua camponesice inocente, cheia de piedade e de fé, despreocupada, pura, graciosa e rústica – Bécassine!

O nariz dela é um nariz pequenininho, como os senhores veem. O desenhista pintou de propósito para isto, para contrastar com o lunar do rosto, olhos muito pequenos e nariz pequeno. O nariz indica o faro; os olhos indicam a vista, a inteligência. Essas coisas ela tinha pouco, por que ela era filha de Mr. Labornez, e de Mme. Labornez. Um indivíduo “borné” em francês  –  borne é limite  –  “borné” é o indivíduo limitado. Ela se chamava Becássine Labornez, a limitada… Era um personagem feito para as crianças se rirem. O álbum com toda a sua seriedade é feito para as crianças rirem. Eu ri e sorri inúmeras vezes lendo isto… que eu não revejo sem uma certa emoção.

A Bécassine tem nariz pequeno e a “bécasse” é um passarozinho que os senhores viram, o comandante Pinchon imagina que voou em cima da cidade dela quando ela nasceu, Clocher-les-Bécasses. “Clocher” é o campanário… o campanário das “bécasses” é o nomezinho do lugar. É um pássaro que tem um bico muito pontudo. Então, por contraste, para fazer rir as crianças, era Bécassine Labornez.

Não sei se os senhores percebem algo de muito didático dentro disso. A figura faz sorrir as crianças por vários lados, mas ao mesmo tempo vai ensinando, instintivamente, intuitivamente um mundo de coisas a respeito da condição do camponês como era, ou como devia ser, na Europa daquele tempo. Calculem que isto foi feito para crianças francesas que deveriam conhecer as várias regiões da França: era um estudo da Bretanha. Os senhores notarão como forma, mas descansando e despreocupando.

Não se poderia deixar de fazer um comentário sobre a moldura. Isso não é uma fotografia. Ele pretendeu apresentar, aqui, a Bécassine como se fosse pintada a óleo. A moldura era uma moldura sumptuosa, dourada, de madeira trabalhada, como os senhores estão vendo. Dessas molduras, dentro das quais se punha o busto de marquesas, está Bécassine de corpo inteiro e não só de busto aí… com os seus simpáticos pelões… um pouco pata, não é? as suas mãozonas, seu gesto assim um pouco bobo, e o contraste faz acentuar aquilo que depois vai ser mostrado.

A moldura fala da família nobre do lugar: a família de Grand-Air [da Grande Categoria], a família dos marqueses de Grand-Air: o marquês e a marquesa do Grande Ar.

Os senhores não devem entender aqui “ar”, ar respirável: é grande estilo, grande categoria, grandes ares. A Marquesa dos Grandes Ares… O ambiente criado por ela é uma espécie de moldura dentro da qual vai viver a Bécassine. Então já está apresentado aí.

O que é esse fundo aqui com essas florezinhas, esse azul etc.? Eu tenho falado uma vez ou outra outra aos senhores, que nas casas daquele tempo, as casas “soignées” [bem cuidadas], boas, etc., se passava papel colorido nas paredes. E este é o papel colorido para o quarto de menina de uma família boa, confortável e de educação. Então, a criança que vai ler…  a marquesa de Grand-Air e a Bécassine, são as peças principais da narração, vem apresentadas na capa.

Eu não sei se consigo tornar claro quanto de pensamento entra numa simples apresentação assim que a gente olha e não entende nada. É pensamento educativo de primeira qualidade!

Vamos abrir…

Aqui estão Monsieur Labornez e Madame Labornez com a Bécassine. É um estudo muito interessante do costume dos camponeses do tempo. Não sei se querem que comece por Mme. ou por M. Labornez?

(Pelo pai)

Pelo pai? Vamos pelo pai!

Eu faço os senhores observarem o seguinte: a diferença entre esse traje do pai, que é um camponês, mas desses de trabalhar a terra com a enxada. O trabalho que ele executava não era muito diferente do trabalho de um bóia-fria aqui do Brasil. Mas um bóia-fria aqui vestiria macacão, digamos. Como a roupa dele é diferente de macacão!

A mim – quando eu era “pré-enjolras”, quando eu tinha 4 anos, 5 anos… seis, sete anos, oito, sei lá quantos… – eu via isto aqui e me encantava. Eu não sei se isto será o mesmo para olhos que viram a luz do dia pela primeira vez tão, tão, tão depois de mim…

A roupa do Mr. Labornez é assim: os senhores olhem para o sapatão! Sapato é tamanco. Agora, por que tamanco? Porque é muito mais barato do que sapato de couro, custa menos e dura mais. Como sempre acontece com os tamancos, aquela ponta levada para cima, é feita para dar um pouquinho de graça, um pouco de charme ao sapato. Até sapato de marajá era assim: sedas, tecidos preciosos e uma ponta levantada para cima. O M. Labornez tinha um sapato que tinha vagamente o esquema de um sapato de marajá…

Magruço… o comandant Pinchon, o desenhista, para divertir as crianças, pintava com as pernas ridiculamente magras. Vinha logo em cima, revestido de um par de meias escuros. Os senhores notação na perna do lado de esquerdo dele, os senhores notarão que tem uma espécie de bordado de lado. Não sei se dá para ver? É um bordado comercial, não é um bordado fino feito à mão, mas que orna a meia dele e indica uma certa preocupação de enfeite nos camponeses da região, porque a linha geral da coisa é standard.

As calças bufantes devem deixar os senhores meio surpresos… Não são propriamente calças, são “culotes” de um tecido muito simples, branco, como os senhores estão vendo, muito branco. Depois um jaleco verde claro com punhos pretos. Depois uma espécie de gola ou de lenço ou coisa que o dera, que também é verde com uma faixa preta, depois branco e que ele passa em volta.

O cabelo dele está cortado daquele jeito, como os senhores estão vendo. Não era um homem que tivesse muito cabelo pelos desenhos do C. Pinchon. O cabelo muito liso, que ele penteia bem chato e escasso em cima de uma cabeça-bola.

A expressão de fisionomia dele dá bem para prever o que seria Bécassine. Ele a tem no braço com ar protetor, ela está toda embrulhada. Os senhores verão mais tarde por que… quando os pais iam trabalhar, suspendiam a criança num prego bem encima, num prego forte do qual a criança não podia se destacar. Iam trabalhar e depois voltavam e vinham ver o que é que tinha acontecido com a criança. Davam de comer e de beber antes de irem embora. Na volta desenganchavam a criança…

O fato é que nasciam gerações muito fortes com isso. Não tinha creche, não tinha lactário, não tinha berçário, não tinha taratatário… mas…

Um cachimbo muito ordinariozinho, de madeira também. O M. Labornez, entretanto, é um homem que sente que ele tem sua dignidade. Ele não tem ninguém abaixo de si, mas a sua dignidade lhe vem de cima. Ele é filho de Deus, foi batizado e é filho da Igreja Católica. É católico praticante, sabe que ele é alguém, daí o cuidado com que ele se veste. Os senhores estão vendo que ele está cuidadinho, e seu arranjinho.

Mme. Labornez, como convêm a uma pessoa do sexo feminino, tem um vestido muito mais ornado do que a roupa dele.

Os senhores distinguirão no vestido, primeiro o toucado que é idêntico ao de Bécassine no quadro que vimos há pouco. Uma gola grande branca, ligeiramente plissada (não sei como dizer plissado em português); um vestido verde-escuro com uma barra bege que dão um enfeite, dão uma certa graça. Uma saia de um verde mais claro, muito simples sem outros enfeites. Mas ela está digna e o vestido dela é agradável de se olhar.

Sobretudo, sobretudo, sobretudo é preciso notar! – ela é muito cheia de pudor. A roupa dele é uma roupa de uma moça que foi pura e uma esposa que é fiel. A Lei de Deus está presente: “não pecarás contra a castidade”, “não desejarás a mulher do próximo”, o que para a mulher significa não desejarás o marido da próxima.

Eu chamo a atenção dos senhores para esse móvel que está de lado. É um berço. Nas longas noites de inverno em que o camponês, a camponesa e os filhos  –  que a prole vai-se multiplicando  – ficam sós em casa, eles não têm o que fazer e o marido para encher o tempo, trabalha com o canivete, com coisas adequadas para fazer coisas bonitas em madeira. Há madeira que a região produz e que se vendem ali baratíssima, na qual ele vai fazendo os vários móveis necessários para a casa, para filha quando casar, para o filho etc., etc. e vai embelezando o seu próprio lar nas longas noites de inverno, noites de outono, já muito próximas do inverno, etc., ele vai embelezando o seu lar.

E saíam móveis tão bonitos como esse berço, todo de madeira trabalhada – os senhores vejam como era trabalhado  – que era guardado depois pelas gerações. Hoje, existem museus para guardar esses móveis, tão bonitos são.

Esse é o ambiente dentro do qual se movem os camponeses da Bretanha. É um modo se ser trabalhador manual, completamente diferente do modo empestado e poluído com que Marx concebeu a ideia do trabalho manual. É uma outra questão! Nem pensemos nisso… Vamos adiante!

(Muda o slide)

Aqui é o batizado. Ninguém em São Paulo se batiza com tanta solenidade!… Os senhores veem dois camponeses vestidos do estilo de M. Labornez que precedem (o cortejo) tocando música. E toda a aldeia – ou ao menos as relações deles na aldeia de Clocher-les-Bécasses os seguem.

Podemos aqui analisar a população da aldeia, os notáveis da aldeia e fazer um pouco de sociologia da aldeia. Pelo menos e na medida em que tanta análise não lhes canse…

Então, na frente, este que vem aqui vestido de verde, toca uma coisa que nós chamamos gaita-de-fole, que os espanhóis – eu acho que entra um tom depreciativo nisso, não sei bem, porque não tenho a alegria de ser espanhol… –   chamam “caixa de gemidos” que na Bretanha se chama “biniou”. Os bretões são celtas, era uma população que habitava antigamente a Inglaterra. Por isso é que eles são a Bretanha e as ilhas são a Grã-Bretanha. É por causa disso. É assim que se prendem as coisas.

Bem, os ingleses e os escoceses vão ao combate ao som da gaita-de-fole, tocam “biniou”. Eu gosto do som do “biniou”, acho interessante. Alguns não gostam. Eu acho muito interessante.

O outro toca uma espécie de cornetinha. Mas é também um instrumento de música regional, adaptado a coisas regionais.

Os senhores veem como eles vão na frente ufanos, abrindo a marcha. Eles estão contentes de seu papel. Eles não pensam em ser vereadores, eles não pensam em ser doutores, eles não pensam em deixar de ser camponeses. O mundo camponês oferece ocasião para eles se realçarem. E aqui eles estão em realce. A aldeia inteira está vendo eles desfilarem. Quando acabar o batizado, durante uma semana vão comentar este, aquele, aquele outro e vão comentar estes dois aqui…

A título de festividade, os senhores vejam os laços que pendem dos aparelhos musicais e o chapeleco como é assim de uma forma especial, não é um chapéu para todos os dias.

Atrás as duas mães com as duas crianças. Porque é um cortejo que tem um protocolo como seria numa corte: todo o mundo tem o seu lugar marcado. Então, vêm as duas mães e atrás os dois pais.

Agora, os senhores notem que os dois pais estão cumprimentando, com muito respeito, um senhor.

Como é que se percebe o respeito? Os dois voltaram muito a cara para ele, de um lado; agora, de outro lado, os dois estão com o chapéu completamente tirado da cabeça. M. Labornez suspendeu alto o chapéu e M. Quillouch, do qual se falaria um outro dia, pôs assim de lado. Quem é este indivíduo que está aqui? É o carteiro.

Não é o carteiro, como os senhores poderiam imaginar, da cidade de Clocher-les-Bécasses, não é isso, não! Ele é um carteiro de uma região. As cartas vem para uma central postal e o carteiro distribui, conforme os dias da semana, as cartas pela região. O carteiro é um homem importante porque recebe um ordenado fixo, dado pelo governo, e naquele tempo os funcionários públicos ganhavam bem, o que fazia dele um homem riquinho dentro desse mundo. Um homem de quem depende tudo, porque conforme a boa vontade dele, ele entrega uma carta mais depressa ou mais devagar. Ele exerce uma tiraniazinha postal.

A roupa do carteiro, os senhores veem como é. Não vou me atardar em descrever, os senhores notem simplesmente um saco que ele carrega a tiracolo, onde estão as malas e, clássico da figura do carteiro, uma bengala, para percorrer grandes distâncias a pé. O carteiro trabalha a pé. Ele, para afirmar a sua superioridade, não tira o chapéu para os dois, mas conversa com os dois com muita bonomia. Ele foi convidado para o batizado. Então, ele está saudando os pais que passam.

Atrás deles vem um personagem, que outro dia, quando se comentar acho que ele não aparece mais adiante na coleção de hoje, eu creio, mas é um personagem muito pitoresco. Ele seria, no meio desta gente, mais ou menos assim uma espécie de líder natural, o “oncle” [tio] Corentin.

Por que “oncle”? Era um homem solteiro, mas já velhusco, com sessenta ou sessenta e poucos anos, mas a própria imagem da velhice sadia e risonha. Não é um tipo de velhice hummm… chupada e assim desapontada, mas uma velhice  –  em francês se diz “épanouie”, que se expande, risonha, de um homem que é inteligente, vivo, não muito instruído, mas que pega muito as coisas da vida como são; e que é um conselheiro para todas as situações. Fala bem, exprime-se bem – a la camponês – e se dá, por causa disso, com todos os homens importantes de um nível mais alto da região.

Por causa disso também, todo o mundo em Clocher-les-Bécasses que precisa de algum favor dele, vai procurar por ele. Ele é uma espécie, se os senhores quiserem, do que seria um coronel político do São Paulo antigo: aqueles fazendeirões líderes da zona, era em ponto pequeno, o oncle Corentin. Por isso também, os senhores notem que ele sendo tio da Mme. Labornez e da Mme Quillouch, ele veio sozinho no cortejo, e até um pouco de fora e com ar… vejam o jeito superior dele, como mantêm a cabeça

A roupa dele, fundamentalmente, tem o esquema da do M. Quillouch e do M. Labornez, mas é muito mais enfeitada, de muito mais bom gosto, porque ele já fez a sua vida, fez as suas economiazinhas e leva seu luxinho. É o ideal do trabalhador manual quando ele é trabalhador e econômico.

Lá por detrás, vêm as figuras outras, aos pares, formando uma fila. Os senhores notam bem atrás uma figura que está posta comicamente, naturalmente, mas assim um militar num uniforme… que pretende ser conspícuo: é o comandante do destacamentozinho de 3 ou 4 policiaisinhos de Clocher-les-Bécasses que eles convidaram também e que um avança coifando o bigode com muita solenidade. Os senhores veem o espadagão dele.

E ao lado vem um velho, muito velho, recurvado, apoiado num bastão e que procura manter assim… uma certa… acompanhar o passo do cortejo.

Depois, dois “enjolras”… E para indicar que a família vivia numa grande intimidade com o porco, com o pato etc., que eram criados no quintal da casa – tudo meio de ganhar dinheiro, era uma família que não perde tempo, que não corre e que não perde tempo – vive sossegada, mas sossegada de um modo vivonão de um modo desmaiado. Vêm também em fila: um porco – vejam um porcão grandão – (eu não distingo uma figura que está de quatro? um menino… não é?)

(Não, é um aleijado…)

Um pobre aleijado, depois um casal de patos… o ganso e a gansa, depois um peru e o cortejo se perde…

Não sei até que ponto interessa entrar no intuito educativo da coisa?

(Sim!… sim)

Tudo isto é um pouquinho caricato com os senhores veem; mas é uma caricatura sem vontade de debicar, sem hostilidade; é para fazer sorrir as crianças. Mas ao mesmo tempo fica ensinando às crianças, a sociedade hierárquica até no nível muito pequeno. E isto é o que nós chamaríamos aqui o “zé povinho”.

Se os senhores quiserem o contrário do “zé povinho” hierarquizado, é o “zé povinho” que os senhores podem encontrar em certos metrôs. Coitados! Aquilo é massa humana, anônima, esmagada, tirada de um lado para o outro, não são nada!

Pelo contrário, estes, cada um tem o seu papelzinho nesta sociedadezinha, cada um é “elinho” e é contente de ser “elinho” e tem o estímulo, para dentro do seu próprio ambiente, afirmar-se e ser mais por ter tal corpo e ser menos. Mas ninguém pensa em deixar de ser camponês; o carteiro não pensa em deixar de ser carteiro; o comandante do destacamento não pensa em deixar de ser militar. É para a vida inteira, dentro desse ambiente, eles vivem satisfeitos.

Vamos para a frente!…

Festas dessas por ano, várias, porque as crianças vão nascendo e vão sendo batizadas. É pena não figurarem aí as festas do batizado. É uma festa interessantíssima: barricas ao ar livre, mesa, comedoria… é um pic-nicão grosso, onde a camponesada ri, come, discursa e dá risada etc. num ambiente ultra saudável, com arvoredo etc., muito interessante.

Aqui é o teatro. O teatro visa representar o casamento de Ana de Bretanha com o rei da França. Então, os srs. estão vendo os dois… a tal duquesa de Bretanha que casou com o rei, não lembro bem que rei era. Acho que Luís XII [Carlos VIII], se não me engano, que vem. Então, é como o povinho pode imaginar um rei e imaginar uma rainha.

Os srs. veem um rei, assim de opereta, parece um rei feito de marzipan. A rainha também com estilos fenomenais, uma dama da família real com chapéu pontudo e umas fitas que flutuam.

Mais atrás uma espécie de proclamador. Na frente vem os arautos. Tudo lembrando a velha Idade Média. Inclusive aquele homem com chapéu de grandes pontas. E os senhores talvez notem guizos na ponta. Depois um pau com uma figura em cima. Os senhores talvez não imaginem o que é: o bobo da corte, que é encarregado de contar piadas, dizer coisa engraçadas, mas que também de vez em quando diz as verdades para o rei. E que viaja ali perto do rei. Não sei se ele seria o bobo da corte do rei ou da duquesa de Bretanha. O fato é que ali está, segundo a imaginação camponesa, a pompa real que se desenvolve.

Para os senhores terem ideia como estas instituições duram, e como o passado ainda viveu, eu sei que nos engenhos – quer dizer, portanto, plantação de cana-de-açúcar, de Pernambuco, no fim do século passado [XIX] e início desse século, ainda havia bobos da corte. Meu avô tinha um bobo da corte chamado Marcelo. Quer dizer, no Brasil ainda houve bobos da corte.

Aqui está a festa de casamento. A festa de casamento é esta aqui. Os senhores estão vendo que aqueles homens estão agora em cima de barricas. Os senhores já sabem que proveito a gente tira das barricas para fazer uma proclamação… As barricas como tribuna, como estrado, são uma maravilha!

Os senhores veem aí duas barriconas. Num pano jogado no chão, as crianças. E depois, a dança que madame e monsieur, monsieur e madame fazem ao som dessa música e com compasso marcado pelo oncle Corentin à distância. Os convidados não aparecem aqui, estão mais longe: é a dança festejando o batizado das crianças.

Os senhores veem como tudo isto é saudável, como tudo isto é alegre e que há uma espécie de força camponesa, casta e simpática, em tudo isto, em que se sente o bom odor da civilização cristã.

Para frente!…

O casamento foi honrado – acho que foi isto – com a presença da marquesa de Grandes Ares. Chegou o momento de analisarmos a marquesa e o quadro no qual aparece a marquesa.

Os senhores estão vendo o M. Labornez, que está aqui de costas e acolhendo a marquesa. Enquanto os camponeses  –  pensem um pouco na Bécassine – trabalham com a mão e ficam fortões, grossões, são um pouco árvores humanas…, a marquesa é mais uma roseira humana: ela é frágil, delicada… Como é que ela poderia ter braços tão elegantes e com esses movimentos tão leves, se ela fizesse o trabalho da terra? E se ela revolvesse a terra com as próprias mãos para plantar batatas? Seria inteiramente impossível.

Os senhores veem o busto dela, é um busto ereto. O braço é frágil, mas é gracioso. O gracioso se nota com a naturalidade com que ela carrega o guarda-sol, um pouco pesado. Uma dama de primeira categoria não poderia carregar um guarda-sol com o ar de quem está fazendo força: tem que carregar com aquela leveza. Ainda que para ela esteja um pouco difícil, ela tem que fingir que é fácil; do contrário ela fracassou no papel dela.

Os senhores notem o chapéu, que deixa aparecer um pouco dos cabelos, tem um laço – é um chapéu, assim, de uma marquesa ainda muito moça, ainda muito jovem e que está passeando nas suas terras, no campo; ela não está fazendo outra coisa; ela está num traje alinhado, mas um pouco de descanso. Vestida com uma espécie de blusa verde. Os senhores notem como tudo nela é casto: as mãos estão cobertas de luvas brancas até em cima. Depois, uma saia de listas azuis e brancas.

Ela está sentada do lado direito da carruagem, porque a regra de cortesia antiga mandava que quando um homem andasse numa carruagem, se a carruagem era dele ou sempre que ele estivesse só, ele andava do lado direito; quando ele fosse com uma senhora, o lado direito [sendo] o lugar de honra, ocupava a senhora. Se fossem duas senhoras, ele iria sentado num banquinho que se levantava aqui – ficava encaixado aqui, os senhores não podem ver, uma dessas coisas que se abaixam e levantam, atrás e se chamava “strapontin” [Assento de dobradiça, geralmente usados nos teatros etc.]

Esta carruagem protegia contra a chuva. Os senhores estão vendo esse toldo aí atrás? Era um toldo muito bem forrado de verde. Mas chovendo, o cocheiro salta e põe o toldo para a frente; o toldo desce muito até embaixo, de maneira que protegia a marquesa, o marquês ou os convidados, os parentes deles etc., contra a chuva.

A carruagem é muito leve para que ela possa andar depressa. Ela tem duas rodas pequenas, e duas rodas grandes e as lâmpadas  –  habitualmente as lâmpadas dos carros daquele tempo eram tão bonitas que hoje se compram em antiquário para decorar salas de grande luxo.

Merece um comentário especial o cachorrinho da marquesa. O cachorrinho está correndo… A gente vê que o carro parou e ele saltou. E que a marquesa nem se apercebeu porque está falando com o M. Labornez. Mas o cachorrinho está alegre, contentinho. É um cachorrinho que mais parece um brinquedo do que propriamente um bicho. São raças criadas, especiais, para serem tão delicadas, para servirem de brinquedos para as marquesas. E quem desenhou procura divertir as crianças pondo o rabinho do cachorro em forma de ponto de interrogação.

Agora, resta os senhores prestar atenção no cocheiro. Os senhores nunca viram um cocheiro assim em suas vidas. Primeiro, muito dos senhores nunca viram um cocheiro… O cocheiro tem uma espécie de – não sei bem como qualificar, não é um paletó, será talvez um jaleco ou uma blusa vermelha; mas de um vermelho escuro e o resto é verde escuro. Há um banco para ele sentar; ele segura pelas rédeas os cavalos; ele usa uma cartola e uma cartola reluzente, de alta qualidade e umas fitas aqui atrás que quando o carro corre depressa, flutuam ao vento, dando ao cocheiro, assim um ar de…

Os senhores notem que o cocheiro está cheio de sua importância. Ele até está mais cheio de sua importância do que a marquesa. É porque ele tem a honra de ser cocheiro da marquesa. Eles não concebiam, naquele tempo, o conflito de interesses entre o patrão e o empregado. Quanto mais o patrão subia, mais ele elevava o empregado, e mais o empregado se sentia honrado. De maneira que, porque ele está certo de que a patroa dele vai fazer um grande efeito, ele guia como se ele fosse, ele mesmo, quase um marquês. Aí está o jeitão dele.

Os cavalos – eu não sou entendido em cavalos e por isso não tenho nada a comentar com os senhores, a não ser o seguinte pormenor que é digno de algum interesse: notem que os carros não têm pneumáticos. As rodas não têm pneumáticos, o que faria com que a marquesa de Grand-Air tivesse estrada muito mais dura para enfrentar – não tinha asfalto, não tinha pneumático – do que qualquer Volkswagen de hoje, em qualquer estrada de São Paulo. Mas eles aguentavam e quando ela chegava lá, estava nesta atitude, entrando para a festa

Bem , meus caros, podemos ir adiante…

Aqui é uma outra cena do casamento do rei e da rainha. Vem um cortejo precedido por duas crianças. Do lado direito representa a França com flores de lis; do lado esquerdo, a Bretanha com essa espécie – tem um nome heráldico que me escapa no momento, preto sobre o branco, ah, arminhos heráldicos muito bonitos. Não aqui. Aqui estão um pouco exagerados, para fazer brincar a criança, mas que se encontram nos velhos estandartes da TFP. Arminhos na bordadura branca. E o homem que organizou a festa, está pedindo a opinião do marquês de Grand-Air.

Aqui é um modelo de elegância masculina de velho de antes da Primeira Guerra Mundial. São dois velhos que estão falando. Os senhores vejam a diferença entre velho e velho. Se a gente perguntasse quem era o marquês, não era difícil responder.

Vamos analisar ligeiramente os dois: o contraste. O velho do lado esquerdo que é um camponês vestido de personagem da corte de Ana de Bretanha, é um homem gordão, comilão; o marquês é fino e esguio, quase como uma fumaça que se desprende do cigarro.

Agora, o tom dele e o jeito é de um homem que é alguém que está habituado a ser considerado, que sabe mandar. Mas ele está falando, por exemplo, o narigão dele é vagamente na linha de uma ave de rapina, é assim, de quem sabe que conforme o caso, ele manda. Não é um homem com quem se brinque. O chapelequinho dele é de uma palha muito fina, que na América espanhola se conhece, que no Brasil quase não se conhece. No meu tempo de menino, as pessoas de um pouco de folga usavam, chamada palha do Panamá. É uma palha linda!

A gravata dele é uma gravata assim exuberante. Ele tem um colete também – todo o mundo usava colete – e o paletó dele, os senhores percebem que chegava até ao joelho. É um tipo de paletó pomposo que se usava no tempo chamado sobrecasaca. Ali está o M. de Grand-Air, mas falando com o camponês com uma verdadeira benevolência.

O camponês está se abrindo, consultando a ele, sem o menor receio de ser maltratado, de sofrer uma caçoada ou nada. Ele está falando, como se estivesse sozinho no quarto de dormir dele, assim ele está falando com o marquês, mas de chapéu baixo. E inclinando-se um pouco para falar com o marquês.

O marquês fala como se não percebesse que está falando com um camponês e como se tivesse diante de si outro marquês. Vale a pena olharem para a cena para ver, se ele tivesse diante de si outro marquês ele não falaria de outra maneira.

E ao mesmo tempo com muita bondade, dando explicações com muita bondade. De maneira que reina, entre eles, uma concórdia completa, que é o contrário da luta de classes que os comunistas e frei Bettos… – nem falemos! – querem fazer a todo o momento.

Então, meus caros, o que os senhores queriam a mais lhes foi dado. E foi dado…

(Mais ainda)

Mais ainda… aonde é que podemos ir?!

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