Plinio Corrêa de Oliveira

 

Sou Católico: posso ser contra a reforma agrária?

 

Ed. Vera Cruz - Fevereiro de 1981

Parte I – Análise de conjunto do documento “Igreja e problemas da terra”

 

Capítulo I – A CNBB encaminha o País para a luta de classes e a revolução social? Perplexidade dos católicos e da opinião pública em geral

 

1 . O método de exposição do documento

Antes de entrar na análise do documento Igreja e problemas da terra (o qual, daqui por diante, será designado pelas iniciais de seu título IPT e citado pelo número de seus parágrafos) importa apresentar dele uma visão global. A necessidade disto decorre do próprio método de exposição usado pelo IPT.

Com efeito, o insucesso da Reforma Agrária claramente socialista, igualitária e confiscatória pleiteada por numerosos membros do Episcopado e órgãos da CNBB no início da década de 60, tornou aconselhável, para fazê-la prevalecer agora, evitar novo sobressalto geral da classe dos agricultores (cfr. Prólogo, 6).

Assim, o texto do IPT não se apresenta com a afirmatividade ostentatória que caracteriza os pronunciamentos agro-reformistas dos anos 60. Pelo contrário, pode-se dizer que, à primeira vista, ele deixa nos leitores uma impressão variada e indefinida. Porque se, de um lado, apresenta tópicos muito inquietantes, de outro lado abundam nele tópicos confusos (alguns, é verdade, só à primeira vista...). Como nele se encontram, também, algumas afirmações tranquilizadoras para os fazendeiros (cfr. IPT, nos. 74, 83, 89 e 101). Estas últimas, na realidade, se bem examinadas, mostram-se contudo imprecisas e inconsistentes.

Assim, no total, embora o IPT, bem analisado, insinue ou até pleiteie formalmente a Reforma Agrária socialista, igualitária e confiscatória, em um ou outro ponto afirma, de algum modo, princípios tradicionais, o que dá ao leitor a impressão de que o documento se contradiz. “De algum modo”, é bom insistir, ou melhor, “a seu modo”, pois aferidas cuidadosamente uma por uma suas palavras, a contradição desaparece, e o leitor se vê em presença de um pensamento que, até quando ambíguo, se apresenta pejado de insinuações esquerdistas.

Sendo tão ambíguo o IPT, em que pode sua publicação servir à causa da Reforma Agrária? – O IPT é próprio a ser explanado por líderes agro-reformistas a eclesiásticos ou leigos, em simpósios, cursos ou círculos de estudo para pregadores, diretores de obras e associações católicas etc., já predispostos a não se chocarem conhecendo-lhe bem os meandros. E assim informados, podem estes, por sua vez, apresentar verbalmente ao público católico, em nome da CNBB, o pensamento audacioso que a esta parecia imprudente enunciar com toda a clareza no IPT.

Se alguém do público estranhar esse pensamento, sempre será fácil tranqüilizá-lo, alegando que se trata de interpretação pessoal e pouco matizada, do Sacerdote ou do leigo de esquerda encarregado de comentar o IPT, e não de ensinamentos da CNBB. De maneira que o IPT, muito eficiente para soprar por debaixo do tapete a indignação agro-reformista, é também muito útil para anestesiar e adormecer a vigilância das classes a quem essa indignação agro-reformista deve alvejar.

Sem embargo, como se verá no decurso desse trabalho, o IPT, fortemente socialista em sua contextura geral, deixa entrever, em vários tópicos, uma indisfarçável influência especificamente marxista.

Não parece que o pensamento socialista – máxime tão radical – e até marxista, seja participado por cada um dos Srs. Bispos que aprovaram o IPT. Presumivelmente, tal pensamento se esgueirou em determinada altura da elaboração do IPT, através de certos pólos de influência. A que altura ocorreu isso? Que pessoas ou grupos constituem esses pólos de influência? Até que ponto estão essas pessoas conscientes do pensamento que veiculam? Estas são questões alheias ao objeto do presente trabalho. Pois este visa analisar o IPT segundo seu texto definitivo e oficial. E nada mais.

2 . Perplexidades suscitadas pelo documento

A leitura do IPT desperta nos espíritos atilados uma pergunta a que o presente estudo se propõe responder.

Uma das etapas características da via pela qual a estratégia comunista leva as massas para a luta de classes e a revolução social é a Reforma Agrária.

O lançamento da “idéia bomba” da Reforma Agrária – se apoiada por uma poderosa publicidade – projeta na vida rural de um país toda espécie de estilhaços: discussões, tensões, reivindicações, contestações. A atmosfera se satura assim de germes de discórdia. Torna-se viável para um partido comunista promover, a partir daí, as greves, os atentados e as agitações que caracterizam o auge da luta de classes e conduzem à revolução social.

É pois inteiramente explicável que o Partido Comunista Brasileiro tenha feito da Reforma Agrária um de seus temas prediletos [1].

Ora o IPT conclama todas as coortes católicas do Brasil para a ação em prol de uma Reforma Agrária.

Tal Reforma Agrária, o documento a concebe essencialmente como uma Reforma Fundiária, a ser executada sob a influência do princípio de que, do ponto de vista sócio-econômico, a pequena propriedade de dimensões familiares constitui o padrão ideal, aplicável indiscriminadamente em todo o território nacional e para todas as atividades agrícolas ou pecuárias. Dessa concepção utópica da mini-propriedade-panacéia resulta a tendência invariável do IPT para a fragmentação fundiária. Sempre que ele cogita de alterar a estrutura fundiária, é no sentido de fragmentar propriedades (cfr. Comentário ao no. 89). O que só não se pode dizer com referência à minipropriedade familiar que, fragmentada, se pulverizaria.

“Fragmentarista” convicto, o IPT não se contenta, aliás, com reduzir a estrutura rural brasileira a uma galáxia de minipropriedades. Ele manifesta empenho em alterar também “o regime de propriedade urbana” (no. 100). Isto é, ele pleiteia também uma reforma fundiária nas cidades. Esta será, presumivelmente, um corolário urbano da Reforma Agrária (isto é, fundiária, no campo). Ou seja, tudo leva a admitir que a Reforma Urbana importará em estabelecer nas cidades também a minipropriedade. Quais as dimensões desta? A julgar pela minipropriedade rural, sua congênere citadina comportaria tão-só o espaço necessário para que uma família a habitasse e com suas próprias mãos a mantivesse limpa.

Minipropriedade rural, minipropriedade urbana... sociedade inteiramente igualitária. O IPT parece tender assim para a realização da meta socialista, e também comunista, definida no próprio programa do PC russo: “O comunismo é um regime social sem classes, com uma única forma de propriedade dos meios de produção – a propriedade de todo o povo – e com uma plena igualdade social de todos os membros da sociedade. [2]

Isto posto, é forçoso que um observador atento da realidade nacional se pergunte até que ponto o IPT está eivado de influências doutrinárias marxistas. E também até que ponto favorece a tática comunista.

Tais perguntas interessam antes de tudo ao católico culto e zeloso. Formado pelos documentos tradicionais do Supremo Magistério da Igreja na inarredável oposição ao comunismo, é compreensível seu desconcerto ante a hipótese de estar a CNBB encaminhando o País precisamente pelas veredas há tanto tempo apontadas sem sucesso pelo Partido Comunista Brasileiro. E isto em direção à luta de classes que é, segundo os estrategistas do comunismo, a condição fundamental para a vitória do credo vermelho. O católico esclarecido se perguntará então, a justo título, se a doutrina exposta e as medidas práticas reivindicadas pelo IPT conferem com o verdadeiro pensamento da Igreja.

As mesmas perguntas interessam também a todos os proprietários de imóveis rurais diretamente concernidos pelo IPT. E também aos proprietários de imóveis urbanos, aos quais o documento se apresenta como presságio das nuvens que se acumularão sobre suas cabeças amanhã.

A esta altura, outra pergunta inevitável se põe aos proprietários: como explicar que eles e seus antecessores tenham exercido, até há algum tempo, o direito de propriedade com todo o apoio da Igreja, e agora vêem erguer-se contra tal direito – ou seja, contra eles e suas famílias – a CNBB? Em nome da Igreja, sim, pois que o documento se intitula precisamente Igreja e problemas da terra, e foi aprovado por 172 Bispos. É explicável que aflore então mais uma pergunta no espírito dos proprietários: onde está a imutável Igreja de Jesus Cristo, com os Pastores Supremos que sempre lhes ensinaram a legitimidade e a santidade do instituto da propriedade individual, ou com a CNBB?

Aos homens de Estado e aos políticos – como aos católicos esclarecidos e aos proprietários – ocorrerá ainda outra indagação: terá a CNBB suficiente influência sobre a opinião pública para obter que o País seja sujeito a uma reforma a qual, durante cinqüenta anos, o comunismo reivindicou em vão?

A estas importantes perguntas visa responder o presente estudo.

3 . Resposta do presente livro

Nele se demonstrará que:

1º) A reforma fundiária rural é reivindicada pelo IPT com base em uma análise da realidade brasileira e em argumentação doutrinária nas quais é clara a influência marxista;

2º) Pela força das coisas, e especialmente na atual conjuntura nacional e internacional, essa reforma fundiária ajuda possantemente a consecução do alvo comunista, isto é, a luta de classes seguida da revolução social. Nesse sentido, a CNBB se conduz como “companheira de viagem” do comunismo internacional;

3º)Caso não haja oposição de monta contra essa instrumentalização da influência da CNBB pelo PCB, é muito de recear que o Brasil seja arrastado – pelo próprio fato de ser uma nação católica – à conseqüência extrema aventada no parágrafo anterior.

Estas graves afirmações resultam de uma análise detida do presente panorama nacional e internacional (Cap. II), das táticas de exposição e de persuasão características do proselitismo comunista (Cap. III) e, por fim, do próprio texto do documento da CNBB.

Por sua vez, a análise desse texto é aqui feita em duas distâncias:

1ª) panoramicamente, considerando o IPT em sua globalidade (Caps. IV, V e VI);

2ª) em “close”, estudando-lhe detidamente, e quase palavra por palavra, os tópicos mais significativos (Parte II).


[1] Na sua Carta aos comunistas, lançada em março de 1980, Luís Carlos Prestes declara: “A solução dos problemas fundamentais da Nação exige transformações sociais profundas, que só poderão se iniciadas por um poder que efetivamente represente as forças sociais interessadas na liquidação do domínio dos monopólios nacionais e estrangeiros e na limitação da propriedade da terra, com o fim do latifúndio” (“Voz da Unidade”, no. 2, de 10 a 16 de abril de 1980, p. 4).

Comentando essa declaração do ex-secretário-geral do Partido, o “Coletivo de Dirigentes Comunistas” observa que “essa formulação, usada por Prestes, foi elaborada pelo CC [Comitê Central] e encontra-se em seus documentos. Portanto, ele apenas reafirma o que está expresso em resoluções do CC ao desenvolver a linha política do VI Congresso” (“Voz da Unidade”, no. 8, de 22 a 28 de maio de 1980, p. 13).

Entretanto, para marcar a sua diferença em relação ao camarada Prestes, os novos dirigentes do Partido esclarecem que esse programa (a liquidação do domínio dos monopólios e do latifúndio) “corresponde a uma fase ulterior da vida política brasileira, que certamente verá chegar o seu tempo, após a derrota concreta da ditadura” (“Voz da Unidade”, no. 8, de 22 a 28 de maio de 1980, p. 13).

[2] Apud E. MODRZHÍNSKAYA – TS. STEPANIÁN (direção), El futuro de la sociedade / Crítica de las concepciones político-sociales y filosóficas burguesas contemporáneas, Editorial Progreso, Moscou, 1973, p. 374.


 Atrás   Índice   Adiante

Página principal