Plinio Corrêa de Oliveira
Relatório sobre a situação do catolicismo no Brasil (1935-1950)
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Relatório enviado a Monsenhor Domenico Tardini e Monsenhor Luigi Valentini, ambos da Secretaria de Estado do Papa Pio XII (julho de 1950)
A carta dirigida pela Sagrada Congregação de Seminários ao V. Episcopado brasileiro, recentemente publicada pela imprensa diária de meu País, demonstra que a proverbial e materna vigilância da Santa Sé não precisa ser informada sobre a existência de importantes desvios doutrinários em nossos meios católicos. Os presentes apontamentos não visam, pois, insistir sobre um assunto já tão luminosamente focalizado. Seu objetivo é muito mais limitado, e consiste somente em expor à consideração superior algumas observações sobre nosso ambiente, colhidas in loco, pelo contato constante com os meios católicos de São Paulo (cidade em que resido) e dos principais centros do Brasil. Para maior clareza da exposição, seja-me lícito dividi-la em capítulos inteiramente distintos. I - O ponto central da crise Os erros que, a partir de 1935 aproximadamente, tão a fundo penetraram no Brasil, relativos ao Corpo Místico de Cristo, à Sagrada Liturgia, à Ação Católica, às relações entre a Igreja e o Estado, às relações entre as classes sociais, à atitude dos católicos perante os comunistas, não constituem entre si fenômenos inteiramente paralelos, e sem qualquer interdependência recíproca. Todos eles, pelo contrário, têm um denominador comum, que é o igualitarismo. Em matéria de Ação Católica: Exagerando e deformando as noções de ‘participação’, de ‘mandato’, de ‘responsabilidade’ dos leigos na direção da AC considerada enquanto res laicorum, as doutrinas novas reivindicam para os dirigentes da AC uma verdadeira função governativa dentro da Igreja. Como, de outro lado, segundo estas doutrinas novas, todos os leigos seriam obrigados a inscrever-se como sócios nos quadros da AC, praticamente essas funções governativas seriam estendidas a todo o laicato. Em matéria de Liturgia: Exagerando e deformando igualmente as noções de ‘sacerdócio dos fiéis’, e ‘participação dos fiéis na Missa’, as doutrinas novas fazem do fiel um verdadeiro concelebrante. Assim, pelos exageros relativos à AC e à Liturgia, tende-se a apagar a noção de que a Igreja é uma sociedade de desiguais, dos quais uns têm a incumbência de ensinar, governar e santificar, e os outros de se deixar governar, ensinar e santificar. Em matéria de Corpo Místico: Considerando a expressão ‘Corpo Místico de Cristo’ não apenas como uma metáfora para designar uma realidade sobrenatural, mas como uma verdadeira incorporação física, as doutrinas novas caem no panteísmo, que é o nivelamento estabelecido entre o homem e Deus. Considerados em seu conjunto estes três itens, vemos que eles exprimem o velho ideal revolucionário de igualdade, tentando transformar profundamente o dogma e o regime da Igreja. Esta tendência niveladora se manifesta igualmente em outros campos: No capítulo das relações entre a Igreja e o Estado: A estrita igualdade jurídica da Igreja Católica com as demais é em si mesma um bem (dizem os inovadores), uma conquista da evolução natural da sociedade humana. A indiferença religiosa do Estado não é apenas um mal menor que se pode tolerar em certas situações, mas uma posição de perfeito equilíbrio entre a esfera civil e a esfera religiosa. Os privilégios legais com que os antigos Estados cristãos asseguravam a livre expansão da Igreja e reprimiam as heresias, são próprias de Estados farisaicamente cristãos, e não de Estados ‘vitalmente cristãos’. No capítulo das relações entre as classes sociais: Como se sabe, a Igreja é formalmente contrária às concentrações de fortunas verdadeiramente exageradas, de nossos dias, máxime quando essas concentrações estão em doloroso contraste com a pobreza da massa. Esses abusos do regime de propriedade privada, a Igreja sempre os condenou. Para os atenuar quanto possível, a Igreja tem reclamado os salários justos, mínimos, familiares, e tem recomendado a participação dos operários nos lucros da empresa. Abusando de tão justas diretrizes, os partidários das ideias novas vão muito além, reclamando a abolição de toda a propriedade privada que não seja sobre objetos de uso, de todo o regime de salariado como intrinsecamente injusto, e a sua substituição por um tipo de empresa industrial em que o capital e o trabalho sejam associados por força de lei, e sejam regidos principalmente pela opinião e voto do trabalhador. A aplicação de tais medidas viria favorecer evidentemente um completo nivelamento de classes, quer no plano social, quer no econômico. No campo das relações entre católicos e comunistas: Pessoas inspiradas por tais doutrinas não possuem motivos muito sólidos nem muito profundos para se opor ao comunismo. Não espanta, pois, que, quando as autoridades brasileiras quiseram, recentemente, fechar o Partido Comunista Brasileiro, tenham encontrado resistência militante da parte de certos católicos. É a aplicação do que, na França, se chamou a politique de la main tendue. O comunismo é o igualitarismo absoluto, a subversão total de toda a hierarquia de valores divinos e humanos. Como poderiam ter, perante ele, atitude diferente partidários tão convictos de um nivelamento geral na esfera eclesiástica e civil? II - Trata-se de uma crise de mentalidade e não apenas de doutrinas O igualitarismo constitui (demonstra-o a História) não apenas uma doutrina, mas uma mentalidade; e não apenas uma mentalidade átona e inerte, mas o que em linguagem comum se convencionou chamar uma ‘mística’. Uma opinião errada sobre botânica e mineralogia não forma toda uma mentalidade errada. Pode-se ter ideias falsas sobre botânica, conservando embora ótimo espírito em matéria de Fé, costumes etc. Pelo contrário, o ideal da igualdade constituído como força rectrix de todas as ideias, como inspiração suprema para todas as concepções relativas às coisas divinas e humanas, forma por certo uma mentalidade. E a esta mentalidade o homem se apega com todo o vigor do espírito de revolta que sopra em nós pelas tristes consequências do pecado original. Os ideais igualitários radicais, pelo próprio dinamismo de nossas paixões, facilmente se transformam em uma ‘mística’ ardente. Como é fácil ver, as ideias novas desencadeiam também outra paixão humana avassaladora. O ardor desta paixão reforça o apego místico com que as vítimas das novas ideias se aferram a estas. III - Trata-se, também, de uma crise de moralidade Como sempre acontece, esta mentalidade produz seus reflexos na arte, nos costumes etc. Por isto é que os partidários das ideias novas, no Brasil, não duvidam em apoiar as realizações mais audaciosas e extravagantes da arte sacra, e uma certa literatura religiosa erótico-mística das mais perigosas. Por isto também apregoam nos ambientes católicos uma grande liberdade de costumes. Segundo eles, os congregados marianos, as filhas de Maria etc., têm um ideal de pureza farisaico e algum tanto antiquado. É preciso favorecer a intimidade entre os sexos, os passeios e excursões em comum, o uso de trajes de banho hipermodernos etc. Os problemas sexuais podem e devem ser tratados não só em particular e com modéstia, mas em cursos e conferências feitos para ambos os sexos e até pelo rádio etc. etc. IV - Importância do assunto São inteiramente diferentes a atitude mental da pessoa que tem erros meramente doutrinários aos quais as paixões não aderem; e a atitude de quem tem erros doutrinários a que as paixões humanas se apegam ardentemente. O mal da primeira é inteiramente intelectivo e, pois, pode ser debelado por meios meramente ideológicos. O mal da segunda é também (e talvez principalmente) moral. Parece-me que a mera elucidação doutrinária, sempre indispensável, não é contudo suficiente. À medida que o tempo for correndo, as paixões se vão intensificando e propagando cada vez mais, e haverá que contar com resistências sempre mais obstinadas e generalizadas. É o resultado do dinamismo próprio a movimentos deste tipo. Penso que estas elucidações ajudam a compreender muitos fatos singulares que se tem verificado no Brasil. V - O atual estado de desenvolvimento desta crise A capacidade de expansão desta mentalidade nova se demonstra por um rápido retrospecto da crise. “A invasão destas ideias no Brasil se realizou por etapas que assim poderíamos definir: Período de 1935 a 1940, de incubação. Neste período, as ideias litúrgicas começaram a entrar no Brasil por meio dos RR.PP. beneditinos, na sua grande maioria alemães, formados segundo as ideias muito em voga lá; dominicanos de Toulouse, maritainismo. Período de 1940 a 1945, de difusão e de lutas. De difusão porque, em quase todo o País, e especialmente nos centros mais importantes, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Uberaba, Porto Alegre, apareceram pequenos grupos fervorosos e influentes, partidários das ideias novas. Mas houve igualmente reações, caracterizadas pela intervenção de figuras de relevo na vida religiosa do País, que tomaram a defesa da sã doutrina ofendida. Merecem menção muito honrosa nesta lista os insignes jesuítas Padre César Dainese e Padre Arlindo Vieira, Dom Antônio de Castro Mayer, então Vigário Geral de São Paulo; Dom Geraldo de Proença Sigaud, assistente geral da JEC em São Paulo, Monsenhor João José de Azevedo, Vigário Capitular de Taubaté etc. De 1945 a 1949, o período da difusão pacífica no laicato católico. As reações cessaram porque, à maneira do Cid, ‘la bataille cessa faute de combattants’. Os padres César Dainese e Arlindo Vieira foram destinados por seu Superior, Revmo. Padre Arturo Alonso, a cargos em que automaticamente tiveram que cessar a luta. Dom Antônio de Castro Mayer foi demitido da Vigaria Geral de São Paulo e nomeado por vários anos Vigário de uma paróquia operária de 40 mil almas que lhe absorvia todo o tempo. Dom Geraldo de Proença Sigaud, que pertence à benemérita Congregação missionária do Verbo Divino, foi destinado por seus Superiores, como aliás era natural, para servir em outro país. Monsenhor João José de Azevedo foi afastado do cargo de Vigário Capitular pela nomeação de um Bispo novo, que prescindiu de sua colaboração na diocese. O semanário Legionário de São Paulo, que servira sempre à causa da ortodoxia, passou das mãos de seu antigo corpo redatorial, em 1948, para as mãos da Arquidiocese, por vontade do Emmo. Cardeal Arcebispo, e tomou orientação inteiramente diversa da anterior. Ao mesmo tempo, com o campo inteiramente livre, e postos em posições-chave, os fautores das ideias novas não tiveram dificuldades em difundir largamente e por todos os meios católicos as suas ideias. É preciso esclarecer que, graças a Deus, as antigas associações religiosas se conservam mais ou menos indemnes ao espírito novo. Mas infelizmente este espírito dominou de modo quase completo a AC. O último núcleo importante da AC que reagia contra este espírito acaba de ser destruído: é o de Santos, onde a antiga Junta, que foi presidida por um católico exímio, Dr. Antonio Ablas Filho, foi substituída por Junta nova, e pouco segura. Assim (quanto dói dizê-lo quando se pensa nas generosas intenções de Pio XI) a difusão da AC, que se fez em larga escala, representou igualmente a difusão das ideias novas por todo o País. 1949 em diante. A Ação Católica começa a dirigir-se ao grande público. O problema sai do âmbito estritamente religioso, do laicato católico militante, para penetrar na massa. Sermões, cursos radiofônicos etc., começam a dar a toda a população a nova de uma Religião Católica mais ‘fácil’, mais ‘democrática’, mais ‘igualitária’ do que no passado. VI - Os documentos pontifícios Não me cabe dizer por que motivo os documentos tão sábios, tão precisos, tão oportunos, da Santa Sé (encíclicas Mystici Corporis e Mediator Dei, e Constituição Bis saeculari) não foram quase estudados e assimilados. Parece inconcebível, por exemplo, que um documento como a Bis saeculari, em que a linguagem humana por assim dizer esgotou todas as suas possibilidades de clareza, ainda desse margem a interpretações e dúvidas. Posso contudo esclarecer o ‘porquê’ disto no que concerne ao laicato. Infelizmente, a instrução religiosa de nosso povo não é grande. Por isto, mesmo a leigos muito fervorosos, é por vezes difícil distinguir entre o joio e o trigo em matéria de doutrina. Assuntos estritamente teológicos como aqueles sobre os quais versam a Mystici Corporis e a Mediator Dei não são do alcance da grande maioria dos leigos católicos militantes, que, portanto, não podem estudar a palavra do Papa em sua própria fonte. Os escritores católicos que quisessem (ainda sem qualquer caráter polêmico) tratar destes assuntos, se exporiam a dissabores muito grandes. Tenho experiência pessoal disto. Assim, os documentos não chegam até os melhores elementos do laicato. Em sentido contrário, a AC lhes fala uma linguagem que eles compreendem. Ela lhes inocula doutrinas sob forma popular e agradável. Ela lhes aparece, notem isto, como inteiramente aprovada pela Autoridade. E como os leigos têm no Brasil uma confiança sem limites na Autoridade Eclesiástica (é preciso lembrar que no Brasil em 400 anos de História nunca tivemos uma heresia, tal a docilidade do povo), aceitam sem prevenção tudo quanto lhes é comunicado pela AC. O mesmo se deve dizer em relação ao grande público, e não apenas ao laicato católico militante. Em matéria religiosa, de uma confiança sem limites na Autoridade Eclesiástica. E, pois, vendo como a AC está credenciada, aceita as palavras desta como se fossem as próprias palavras da Igreja. Tanto mais quanto o que se lhe ensina favorece suas paixões... VII - Conclusão Se nosso povo tivesse meios de saber bem ao certo o pensamento do Pontífice, então, por certo, ele lhe obedeceria. O povo brasileiro é fidelíssimo à Santa Sé. E isto explica que, sendo nós um País tropical, sujeito, pois, à ação dissolvente do clima, e de passado profundamente liberal, temos entretanto uma vida religiosa intensa, e constituímos uma grande nação católica. Enquanto o atual estado de equívoco perdurar, não será contudo possível evitar que a mística igualitária se vá apoderando dos espíritos, o que ela conseguirá especialmente porque parece propagada e difundida pela Igreja. Até aqui a Igreja tem sido o grande dique de nossa moralidade, o fundamento da estabilidade de nossas instituições sociais. Se as paixões da sensualidade e da revolta são semeadas impunemente, à sombra e como que em nome da Igreja, é fácil perceber as proporções do desastre para o qual caminhamos. E, principalmente, quando estas paixões tiverem tomado conta dos espíritos, será muito fácil fazê-los voltar a outros sentimentos? Uma vez que este espírito tenha penetrado em mentalidades de um ardor tropical, pode se duvidar... Resumo Estamos em presença de uma profunda tentativa de mudança da própria mentalidade religiosa do Brasil. Esta transformação vai sendo provocada num sentido que estimula todas as paixões humanas. Já está contaminada grande porção do laicato católico militante. O grande público começa a ser contaminado. Mas em linhas gerais a massa do laicato militante e a população em geral ainda são inteiramente fiéis à Santa Sé, e ainda estão em condições de aproveitar as medidas adequadas que, em sua sabedoria, a Santa Sé julgue dever tomar. Não tenho dúvida de que ainda hoje, embora houvesse possivelmente reações isoladas, a massa geral obedeceria sem dúvida à Santa Sé, fato que de ano em ano se tornará, a meu ver, menos provável. |